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Algumas notas sobre a Estrat´ egia Nacional para a Integra¸c˜ ao das Comunidades Ciganas (ENICC)

Antes de abordar com algum detalhe o documento, conv´em contextualizar e lembrar que esta estrat´egia surge no ˆambito europeu tal como foi o caso dos programas que dizem respeito `as comunidades imigrantes. Ao contr´ario do que pretende a propaganda f´acil, infelizmente, esta iniciativa surge tarde e emana de instru¸c˜oes europeias no rescaldo da ciganofobia crescente na Europa. A pol´ıtica persecut´oria de muitos pa´ıses europeus face `a comunidade cigana, encabe¸cada pela Fran¸ca e It´alia nos ´ultimos anos, que tem dado lugar ao ressurgimento de mil´ıcias de extrema-direita no Leste da Europa, bem como campos de trabalhos for¸cados, que s˜ao na realidade, o pano de fundo em que se desenrolam as t´ımidas respostas pol´ıticas agora ensaiadas.

Do ponto de vista da metodologia tanto como da substˆancia, este docu- mento encerra uma contradi¸c˜ao em si mesmo e uma n˜ao estrat´egia ao pretender responder a problemas cujos diagn´osticos se prop˜oe elaborar a posteriori, num estudo no ˆambito da mesma estrat´egia. Parece evidente a contradi¸c˜ao entre a vontade de responder aos problemas enfrentados pelas comunidades ciganas e a ausˆencia de dados suficientes para pˆor em pr´atica tais respostas.

O Estado pretende implementar uma Estrat´egia Nacional de Integra¸c˜ao das Comunidades Ciganas com base num diagn´ostico emp´ırico sem antes dispor do conhecimento integral das dificuldades sentidas pelas comunidades, que seria a ferramenta principal para a elabora¸c˜ao de qualquer pol´ıtica s´eria nesta mat´eria. Talvez esta incongruˆencia metodol´ogica e substantiva explique por um lado a ausˆencia de pol´ıticas p´ublicas face aos problemas que as comunidades portugue- sas ciganas enfrentam e, por outro, a indefini¸c˜ao da estrat´egia como instrumento de resposta pol´ıtica `a escala nacional e se resuma a um repescar de experiˆencias e dados localizados em interven¸c˜oes municipais ou associativas.

Ou se trata de uma Estrat´egia Nacional e como tal projecta solu¸c˜oes de ˆambito nacional a serem assimiladas e concretizadas a n´ıvel local consoante a realidade de cada munic´ıpio, ou ent˜ao estamos perante um conjunto de boas inten¸c˜oes que ir˜ao depender da boa vontade, da capacidade e/ou competˆencia de cada institui¸c˜ao sem nenhum fio condutor, cujos objectivos e metas seriam

claramente definidos e assumidos como sendo uma prioridade pol´ıtica a pˆor efec- tivamente em pr´atica.

Um outro aspecto bastante revelador da pouca ambi¸c˜ao desta estrat´egia ´e o lugar reservado ao racismo contra os ciganos e os instrumentos a implemen- tar para lutar contra o mesmo. De uma forma eufem´ıstica, fala-se em discri- mina¸c˜ao e de medidas transversais para a combater. Mas a verdade ´e que dentro da estrat´egia apresentada, a problem´atica do racismo n˜ao s´o ocupa um lugar muito pouco invej´avel como n˜ao constitui uma das ferramentas mais determi- nantes para a estrat´egia a implementar. Ali´as, a secundariza¸c˜ao do racismo est´a tamb´em patente nos pr´oprios objectivos da Uni˜ao Europeia que servem de referˆencia `a estrat´egia nacional e que, para al´em de gen´ericos, camuflam o problema da ciganofobia. Neste sentido, a introdu¸c˜ao do documento denuncia a parca importˆancia dada ao problema da ciganofobia uma vez que esta ´e na- turalizada na sua essˆencia e evocada como um fen´omeno do passado: Pode-se

imaginar a estranheza que esta gente t˜ao diferente, a falar uma l´ıngua estranha, vestida de forma ex´otica e com h´abitos totalmente diferentes, causou na socie- dade de ent˜ao. A sua aura de mist´erio atra´ıa tanto, quanto afastava. E durante muito tempo esse afastamento foi real, pois o desconhecido, separa.

Basicamente, os pilares da estrat´egia da Uni˜ao Europeia resumem-se aos quatro eixos abaixo resumidos:

– Garantir que todas as crian¸cas ciganas completem pelo menos o ensino prim´ario – um inqu´erito realizado em seis pa´ıses da UE concluiu que apenas 42% das crian¸cas ciganas completam este n´ıvel de escolaridade;

– Permitir o pleno acesso `a forma¸c˜ao profissional, ao mercado do trabalho e `a actividade por conta pr´opria – as taxas de emprego, em es- pecial para as mulheres, s˜ao muito inferiores `as da m´edia europeia;

– Reduzir a desigualdade de acesso aos cuidados de sa´ude, aos cui- dados preventivos e aos servi¸cos sociais – com uma especial aten¸c˜ao `a redu¸c˜ao das taxas de mortalidade infantil;

– Reduzir as desigualdades em mat´eria de acesso `a habita¸c˜ao, no- meadamente `a habita¸c˜ao social – por exemplo, dando-lhes acesso ao abas- tecimento de ´agua e de electricidade.

E a estes pilares a ENICC acrescentou essencialmenteum eixo transver-

sal, que aborda quest˜oes de Cidadania, Combate `a Discrimina¸c˜ao, Igualdade de G´enero, Justi¸ca e Seguran¸ca; mas a verdade ´e que, se nos determos com

alguma aten¸c˜ao nas metas e objectivos fixados de forma geral nesta estrat´egia, a conclus˜ao ´e que o Estado portuguˆes, em vez de delinear uma estrat´egia assente na realidade e com respostas objectivas, limita-se a cumprir o calend´ario das instˆancias europeias. Sen˜ao, vejamos:

Do ponto de vista da forma,

detectar os problemas que a pr´opria estrat´egia procura resolver. O Estado tem a obriga¸c˜ao de conhecer a realidade sobre a qual planeia estrat´egia pol´ıtica e agir em consequˆencia, consoante os resultados obtidos pelo conheci- mento da realidade, atrav´es de estudos ou compila¸c˜ao de dados j´a dispon´ıveis e trabalhados;

b) os instrumentos previstos na estrat´egia s˜ao autocentrados e verticais e as- sentam numa l´ogica que pouco ou nada privilegia a participa¸c˜ao, o envol- vimento e a interac¸c˜ao dos sujeitos na estrat´egia, nem na defini¸c˜ao, ela- bora¸c˜ao e execu¸c˜ao da mesma. A pouca representatividade das comunidades no conselho consultivo e os modelos de constitui¸c˜ao do mesmo s˜ao disso pa- radigm´aticos.

Do ponto de vista da substˆancia:

1. O facto de o estudo a realizar ser um elemento importante para imple- menta¸c˜ao da estrat´egia denota de duas, uma coisa: desconhecimento pelo Estado da situa¸c˜ao real das comunidades ciganas e m´a f´e e incompetˆencia, porque alguns servi¸cos p´ublicos, nomeadamente a Seguran¸ca Social, pos- suem dados a este respeito e o facto de n˜ao estarem centralizados e analisa- dos demonstra o casu´ısmo que imperou at´e agora na defini¸c˜ao de pol´ıticas respeitantes `as comunidades ciganas;

2. Se a estrat´egia ´e nacional, ela deve definir as prioridades e agenda das mesmas, tendo evidentemente em conta as especificidades territoriais da presen¸ca das comunidades, mas n˜ao pode depender nem das experiˆencias dos munic´ıpios e muito menos da sua boa vontade ou n˜ao em implementar uma pol´ıtica de inclus˜ao efectiva dos ciganos;

3. Se o objectivo ´e superar as dificuldades com que se defrontam as comuni- dades ciganas, ent˜ao o enfoque e prioridades das ac¸c˜oes devem maiorit´aria e positivamente incidir nelas, n˜ao numa l´ogica de controle social como pa- rece ser o caso, mas sim como parte integrante da procura da solu¸c˜ao. A aposta excessiva na qualifica¸c˜ao dos agentes do Estado que estabele-

cem o controle da rela¸c˜ao da comunidade com o Estado em detrimento da qualifica¸c˜ao dos ciganos ele(a)s pr´oprios como agentes de transforma¸c˜ao da sua condi¸c˜ao ´e, no m´ınimo, suspeit´avel!

4. A ausˆencia da dimens˜ao (anti)racista na estrat´egia a n´ıvel das institui¸c˜oes p´ublicas, nomeadamente nas for¸cas de seguran¸ca, na justi¸ca e noutros sectores p´ublicos revela duas lacunas graves:

• A banaliza¸c˜ao da ciganofobia que se manifesta no racismo instituci- onal quotidiano, de que s˜ao v´ıtimas os ciganos na sua rela¸c˜ao com as institui¸c˜oes, e legitima a tese de que o problema est´a do lado dos ciganos e que os problemas de inclus˜ao s˜ao assim´etricos e dependem quase exclusivamente do grau de capacidade social dos mesmos; • Iliba os actores p´ublicos das pr´aticas discriminat´orias e desiste de

v´ıtimas as comunidades ciganas. N˜ao faltam motivos para tal, por- que para al´em de m´ultiplos casos de violˆencia policial sobejamente conhecidos, tivemos ainda recentemente o caso do F´orum da GNR; 5. A abordagem `a quest˜ao da media¸c˜ao social ´e minimalista e pouco s´eria,

porque ela ´e feita sem ter em conta o vazio legal em que se encontra a figura do mediador s´ociocultural, fixa metas rid´ıculas para o territ´orio nacional e mete o enfoque n˜ao nas comunidades mas nos agentes do Estado, uma forma de manter o controle social sobre as comunidades; estando previstas at´e 2020, apenas quatro (4) ac¸c˜oes de forma¸c˜ao para mediadores para as comunidades e vinte e quatro (24) para outros. N˜ao se prevˆe nenhum enquadramento legal para as/os mediadoras/es e continua-se a encarar a media¸c˜ao como um instrumento de remendo e n˜ao de ac¸c˜ao pol´ıtica; sem assim se equacionar a sua empregabilidade claramente definida num estatuto jur´ıdico consentˆaneo;

6. Para a educa¸c˜ao, para al´em de minimalistas, as metas est˜ao desfasadas e quase que assumem apriori, o encravamento do trajecto educativo das comunidades, porque de facto, entre os 75% inscritos na pr´e-escolar, os 30% no terceiro ciclo, os 10% no Secund´ario e os 3% no Superior, muitos ter˜ao ficado pelo caminho! O minimalismo desta meta ´e o sinal de uma desistˆencia num esfor¸co colectivo para n˜ao deixar nenhuma crian¸ca cigana para tr´as e revela uma desconfian¸ca na capacidade destas comunidades em realizarem um percurso educativo de sucesso normal´ıssimo; para al´em de que estas metas n˜ao prevˆeem nenhum mecanismo (bolsas, regimes espe- ciais em sede de pagamento de propinas, etc.) de facilita¸c˜ao de acesso ao sistema educativo cada vez mais fora de alcance de popula¸c˜oes com parcos recursos;

7. A problem´atica da habita¸c˜ao continua estigmatizante ao prever como solu¸c˜ao priorit´aria o realojamento social e n˜ao prevendo nenhum meca- nismo de dissuas˜ao, por exemplo, em caso de recusa de venda ou aluguer de casa por motivo de ciganofobia;

8. As solu¸c˜oes para o emprego s˜ao vagas e indeterminadas porque numa altura em que todo o com´ercio tradicional ´e amea¸cado pelas grandes su- perf´ıcies, para al´em de medidas de promo¸c˜ao do modelo tradicional das feiras, ´e imperativo criar mecanismos, n˜ao s´o de forma¸c˜ao profissional cl´assica, mas tamb´em de reconvers˜ao profissional como alternativa para aqueles que assim o entenderem dentro das comunidades;

Por fim, podemos dizer que as metas estabelecidas na estrat´egia, na sua larga maioria, variam entre o irris´orio e incongruente. E foi por isso que, a t´ıtulo de exemplo, destacamos apenas algumas, n˜ao querendo entrar muito na habitual querela dos n´umeros porque, de facto, os n´umeros reflectem a estrat´egia e no que respeita `as comunidades ciganas, a pol´ıtica dos n´umeros sempre foi um instrumento de demagogia pol´ıtica para fomentar a ciganofobia.