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Costumo contar um epis´odio profissional que represente ao meu olhar sobre a forma como a sociedade portuguesa, onde incluo os media, se relacionam com as quest˜oes da discrimina¸c˜ao.

Em 2005 entrevistei em Paris um rapper francˆes, Ham´e, a prop´osito dos motins nos sub´urbios nesse ano. Soci´ologo formado na Sorbonne, filho de ar- gelinos, Ham´e respondeu-me quando lhe perguntei se sentia mais argelino ou mais francˆes: Sou plenamente fruto da minha hist´oria, fruto da imigra¸c˜ao

e a imigra¸c˜ao ´e plenamente fruto da hist´oria francesa. Sim, sou francˆes, resul- tado da imigra¸c˜ao argelina, mas sou tamb´em artista, militante e muitas coisas.

Confesso que me senti envergonhada com a minha pergunta, com o facto de pˆor a hip´otese de ele n˜ao se sentir francˆes. E percebi que esse era, na verdade, o ponto cr´ıtico dos discursos, inclusivamente o meu, sobre minorias.

De forma muito simples, Ham´e confrontou-me com o ´obvio: que o facto de os seus pais terem nascido noutro pa´ıs n˜ao faz dele imigrante; que n˜ao h´a uns que s˜ao maisnacionaisdo que outros; que a popula¸c˜ao de um pa´ıs ´e feita de

uma massa heterog´enea de ra¸cas, etnias, religi˜oes, culturas; e que, as pr´oprias

minorias, s˜ao diversificadas.

Ora isto fez-me reflectir na quest˜ao que me traz a este congresso: como ´e que os media em Portugal falam das minorias? O que ´e que est´a a faltar na fotografia? Quais os aspectos em que nos concentramos e quais os que esquece- mos? Que hist´oria ´e que n˜ao estamos a contar? Mas, sobretudo, at´e que ponto vemos esta rela¸c˜ao como de igual para igual, sem paternalismos, nem exotismos? Antes de responder a algumas destas perguntas, julgo ser importante referir um ponto que toca a todos, media, sociedade, academia, entidades oficiais.

Tem sido h´abito ouvir respons´aveis pol´ıticos elogiar as pol´ıticas de imi-

gra¸c˜aoportuguesas e o sucesso dos resultados nacionais comparados com ou-

tros pa´ıses europeus. E ainda recentemente o ministro dos Assuntos Parlamen- tares, Miguel Relvas, disse que em mat´eria de racismo ningu´em d´a li¸c˜oes a

Portugal.

Mas o inebriamento com asboas performances, que s˜ao discut´ıveis e n˜ao

cabe aqui discutir, cai na armadilha do discurso sobre minorias em Portugal: a

associa¸c˜ao intr´ınseca com a imigra¸c˜ao. Por exemplo, a pr´opria forma como se nomeiam os portugueses negros – que ´e em si um termo pol´emico – traz em si colada a palavraestrangeiro: novos portugueses, descendentes de imigran-

tes, imigrantes de segunda gera¸c˜ao. E em rela¸c˜ao aos ciganos, s˜ao raramente olhados como portugueses: quando o s˜ao, normalmente s˜ao ciganos primeiro e portugueses depois.

Temos, como sociedade, medo de falar da ra¸ca, como se fosse uma palavra maldita. Assim como temos medo de falar de etnia num pa´ıs onde a ´unica minoria ´etnica nacional oficialmente reconhecida ´e a cigana. Somos assim t˜ao pouco diversos como popula¸c˜ao?

Tendo vivido em dois pa´ıses, Estados Unidos e Inglaterra, onde as palavras ra¸ca e etnia fazem parte do vocabul´ario do quotidiano e estas quest˜oes s˜ao dis- cutidas de forma desempoeirada na rua, confesso que ´e uma das coisas que

mais me impressiona nos discursos sobre minorias em Portugal. ´E um debate demasiado circunscrito `a academia, como se tivesse que ter lugar em segredo.

Da´ı que seja f´acil os media, mas tamb´em `as entidades oficiais e a pr´opria aca- demia, ca´ıram nas armadilhas do debate sobre o politicamente correcto mul-

ticulturalismo.

Imaginando que estas armadilhas tˆem uma escala de 1 a 10, o n´umero 1 seria a discrimina¸c˜ao, a xenofobia e o racismo, e o n´umero 10 o exotismo e o pater- nalismo. ´E uma escala cheia de al¸cap˜oes onde at´e os mais bem-intencionados caem – inclusivamente eu pr´opria.

Os preconceitos e estere´otipos s˜ao fruto de uma hist´oria social de s´eculos dos quais n˜ao nos despimos de um dia para o outro.

N˜ao se limitam a ofensas verbais e atitudes descaradamente xen´ofobas e ra- cistas, mas espelham-se tamb´em em coisas mais subliminares como assumir que um portuguˆes negro tem de dan¸car bem ou que um portuguˆes cigano tem jeito para o neg´ocio. Estes exemplos s˜ao uma caricatura. Mas o facto de, por exem- plo, o Alto Comiss´ario para a Imigra¸c˜ao e Di´alogo Intercultural (ACIDI) nunca ter tido algu´em de uma minoria a liderar n˜ao ´e.

Isto serve para introduzira primeira pergunta que me trouxe aqui: como ´e que os media portugueses falam das minorias? Usando a analogia das arma- dilhas e sua escala, come¸co pelo n´umero um, quer dizer, pela discrimina¸c˜ao, a xenofobia e o racismo expl´ıcitos.

Segundo informa¸c˜oes do ACIDI, h´a apenas trˆes ac´ord˜aos da Procuradoria- Geral da Rep´ublica que aplicaram o crime de Discrimina¸c˜ao Racial entre 2006 e 2011.

Os dados fariam pensar que a discrimina¸c˜ao n˜ao ´e um problema em Por- tugal. Mas v´arios estudos mostram que as queixas n˜ao podem servir de bitola uma vez que h´a muita gente que tem medo em queixar-se e que muitos n˜ao est˜ao sequer informados sobre o que constitui discrimina¸c˜ao e portanto n˜ao tˆem

a certeza que a sofreram.

Se estes casos n˜ao chegam `as devidas instˆancias, tamb´em n˜ao chegam aos media. O que, obviamente, n˜ao ´e desculpa porque a nossa fun¸c˜ao n˜ao deve ser a de meros agentes passivos.

Seria obviamente limitativo cingir a quest˜ao da discrimina¸c˜ao, da xenofobia e do racismo `as pe¸cas jornal´ısticas que fazem den´uncias sobre o assunto, sem fazer uma reflex˜ao sobre a forma como a pr´opria comunica¸c˜ao social contribui para isso. Recordo o infeliz epis´odio doarrast˜ao em Oeiras h´a uns anos, em

que se falava de um gang de 500 negros que teriam assaltado a praia; a forma como os ciganos s˜ao associados ao tr´afico de droga e `as rixas; as hist´orias de m´afias russas e das redes de prostitui¸c˜ao; a associa¸c˜ao minorias-bairros sociais e por a´ı a fora.

Fala-se de minorias nos media sobretudo quando h´a problemas ou para re- portar problemas; toma-se a parte pelo todo e d´a-se uma imagem homog´enea e generalizada dasminorias, como se, em si, n˜ao fossem t˜ao diversas quanto

as maiorias. Nas poucas vezes em que se fala de casos de sucesso das comu-

nidades negras, por exemplo, eles s˜ao ou o desporto ou m´usica – o que muito facilmente cai no espectro 10 da armadilha, o exotismo.

A maior parte das vezes s˜ao jornalistas, acad´emicos, analistas brancos a co- mentar e raras vezes se procuram dentro das comunidades vozes com discurso articulado para contar e enquadrar estas hist´orias.

O que ´e que est´a a faltar na fotografia? Que vozes ´e que n˜ao estamos a incluir nas hist´orias que contamos sobre Portugal?

Julgo que ´e t˜ao importante centrarmo-nos no espectro 1 como no 10. E aqui h´a um problema de base que ´e o facto de se irem buscar as vozes das minorias apenas para comentar casos relacionados com discrimina¸c˜ao, com as suas comu- nidades.

Esta ausˆencia e invisibilidade tem o perigo de refor¸car estere´otipos e precon- ceitos: se as vozes destas comunidades s´o tˆem visibilidade quando h´a problemas, parece que n˜ao se reconhece autoridade para emitir uma opini˜ao sobre assuntos que s˜ao de todos.

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E neste esfor¸co de diversifica¸c˜ao das fontes, das personagens das hist´orias, nesta rela¸c˜ao de igual para igual que me parece ser cada vez mais importante in- vestir. Da mesma forma, ´e importante introduzir a perspectiva racial ou ´etnica em determinados temas que exijam essa reflex˜ao, assim como desmontar as asso- cia¸c˜oes que se fazem de determinados grupos ´etnicos a caracter´ısticas espec´ıficas da personalidade ou tra¸cos f´ısicos.

Finalmente, e n˜ao menos importante: na maioria das redac¸c˜oes n˜ao existe diversidade racial ou ´etnica alguma. Estamos a contar hist´orias de brancos, escritas por brancos, e para brancos. Perguntar-se-˜ao se esta divis˜ao, assim, faz sentido. O que ´e isso de hist´orias para brancos? ´E ´obvio que a divis˜ao ´e artifi-

cial. N˜ao penso que tenham que existir hist´orias para ciganos, e hist´orias para asi´aticos, hist´orias para negros e hist´orias para brancos. Mas parece-me que num pa´ıs racial e etnicamente heterog´eneo seria natural que os media, fazedores de opini˜ao – assim como o parlamento, e os lugares de lideran¸ca na sociedade portuguesa, assim como a pr´opria universidade – reflectissem essa diversidade. N˜ao o sendo, estamos a deixar de fora vozes que s˜ao uma parte importante da- quilo que somos. Estamos a deixar de fora uma parte importante da fotografia de Portugal.

O associativismo como barreira