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2. UMA DEFINIÇÃO DO TERMO “FICÇÃO CIENTÍFICA”

2.1 UM MODO DE FAZER

2.1.1 O ponto de diferença

A denominação “ficção científica”, segundo Roberts - e como já pontuado com a definição de Gernsback - começou a ser utilizada nos anos de 1920, quando as histórias até então denominadas de histórias fantásticas, contos góticos, romances científicos, entre outros, foram agrupadas arbitrariamente numa mesma família (ROBERTS, 2001, p.3). Entretanto, nem todas as obras de ficção imaginativa são FC. Para Roberts, é necessário que a ficção denominada científica funcione dentro de um contexto de racionalização, ou seja, que para o fenômeno desenvolvido na história seja dada uma explicação plausível ou verossímil, mesmo impossível no mundo do leitor, e essa explicação precisa ser possível dentro da lógica do texto e através disso tornar-se possível imaginativamente fora dele.

Dessa forma, se pode separar a literatura fantástica e a literatura de ficção científica. Provavelmente, uma obra como, por exemplo, As cabeças trocadas, de Tomas Mann (1988 [1940]) dificilmente seria classificada como FC. Em determinado momento de uma viagem, os indianos Nanda e Shridaman, um após o outro, entram num santuário e por razões que envolvem o amor de Sita, cortam cada um a própria cabeça. Mais tarde, Sita descobre o ocorrido e a ela é dada a chance de recolocar as cabeças de volta aos corpos e retornar à vida ambos Nanda e Shridaman. Porém, por razões também de amor, ela resolve trocar as cabeças dos dois homens. A consequência dessa ressurreição é uma mudança na personalidade dos personagens que, com o passar do tempo, se adaptam a sua nova condição.

A temática da cabeça na FC concerne mais especificamente ao cérebro, órgão tido como centro da existência por uma tradição dualista que o enxerga como local privilegiado do pensamento, do que à cabeça propriamente dita. Assim, temos obras que tratam dessa troca de cabeças de outra maneira, principalmente com a questão do chip implantado no cérebro, como numa das obras a serem analisadas neste trabalho de tese: The Silicon Mind, de Manikarnika Lagu (2008), onde o chip é colocado no cérebro de Aman, um paciente que, ao acordar do coma – também um tipo de ressurreição – precisa se adaptar à existência de uma nova “cabeça”, dessa vez fornecida pela tecnologia. O fator tecnológico em The Silicon Mind pede o que Roberts chama de uma explicação racional para o novum e, assim, a história se desenvolve primeiramente relatando a cirurgia feita para a implantação do chip e depois as alterações corporais sofridas pelo personagem em decorrência da atividade do chip,

culminando com a nova cirurgia para a eliminação desse chip. Tudo isso provavelmente não faz parte do cotidiano do leitor, embora esteja em discussão no discurso científico contemporâneo de seu mundo.

Em ambas as obras, os personagens ganham uma nova “cabeça” e com isso uma transformação do corpo inteiro ocorre, porém para a primeira há uma explicação mágica, enquanto na segunda a explicação é científica e racional. É claro que um discurso científico que traz o cérebro como centro do humano e permite a implantação de um chip que domina o hospedeiro, como acontece em The Silicon Mind, aparenta estar muito próximo do fantástico, pois não é uma situação corriqueira nem ainda facilmente aceitável para o leitor. Afinal, como já afirmou Arthur C. Clarke, qualquer tecnologia suficientemente avançada é praticamente indistinguível da magia. No entanto, o ponto crucial aqui é exatamente a “explicação racional” – factível ou realista – viável para a o pensamento científico contemporâneo da obra e a importância do elemento técnico na história.

A mudança é viabilizada pelo discurso tecnológico, mas também pelo caráter fantástico desse discurso. Segundo Roberts,

é parte da lógica da FC, e não de outras formas de ficção, que essas mudanças sejam plausíveis dentro da estrutura do texto. Isso significa que a premissa de um romance de FC requeira racionalização física, material, ao invés de uma [explicação] sobrenatural ou arbitrária. Esse embasamento da FC no material ao invés do sobrenatural se torna uma de suas características chave. (ROBERTS, 2003, p.5) É fácil perceber, portanto, essa diferença operada pelo elemento técnico, que possibilita o estranhamento cognitivo pautado por uma explicação factível ou provável. Aquilo que Darko Suvin nomeou novum, que Joana Russ, assim como Steven Best e Douglas Kellner, chamaram de “What if..?”, Adam Roberts chama de “ponto de diferença”. Está baseado num “discurso de possibilidade” (2003, p.6) e aponta a diferença como material e não apenas conceitual. Essa característica, segundo o autor, é a força do modo de pensamento FC.

É preciso, contudo, que esse “ponto de diferença” como desterritorialização seja colocado lado a lado com a reterritorialização do mundo do leitor para que possa funcionar como linha de fuga. Embora a explicação racional seja crucial nesse ponto, o novum não precisa ser necessariamente um aparato físico, como ressalta Roberts: “esse ‘ponto de diferença’ pode ser um objeto material, como uma nave espacial, uma máquina do tempo ou um raio transportador de matéria; ou pode ser algo conceitual, como uma nova forma de gênero ou um jeito totalmente novo de organização social.” (Ibid., p.191)

Quando, por exemplo, um estranho chega à hospedaria “Coach and Horses” em O homem invisível, de H.G. Wells (1897), apresentando-se coberto da cabeça aos pés, os funcionários do local acham-no apenas esquisito, por ter sofrido “um acidente, ou uma

cirurgia, ou alguma coisa desse tipo.” (WELLS, 2011, p.18) É essa a explicação encontrada pela Sra. Hall para satisfazer a própria curiosidade a respeito do hóspede, afinal de contas, chegou segurando um lenço branco que cobria a parte inferior do rosto, sendo que a parte superior e as orelhas estavam cobertas com faixas brancas, deixando à exposição apenas o nariz rosado e brilhoso e o cabelo negro espetado parar fora das ataduras.

Mais tarde, quando o homem invisível move objetos como uma cadeira e uma esponja da pia, a próxima explicação encontrada é sobrenatural: “São os espíritos [...] Eu sei que são os espíritos. Já li no jornal. Mesas e cadeiras que pulam, se mexem...” (Ibid., p.49). Ou seja, aqui e em outros momentos, a obra sofre influência da literatura fantástica, a figura sombria e misteriosa que aparece no meio do inverno toda coberta num local solitário e pede abrigo, sem oferecer muitas explicações para sua condição estranha. Quando o homem tenta explicar a outro personagem, o Sr. Marvel, que é invisível, dizendo “[s]ou feito de ar” (Ibid., p.69) precisa “se mostrar”, mostrar que não pode ser mostrado, provar que não pode ser visto e, assim, convencê-lo dessa sua condição. Ainda não temos uma FC, o novum ainda não se explicou dentro de um discurso racional ou científico, “[s]ou feito de ar” é mais uma constatação do que explicação propriamente dita. Mas quando o homem chega à casa do doutor Kemp e afirma ser invisível, encontra alguém a quem possa anunciar sua explicação. À pergunta do doutor: “Mas que feitiço pode haver que deixe um homem invisível?”, ele responde que “Não é feitiço, é um processo, racional, compreensível” (Ibid., p.113).

Nesse momento, o leitor começa a esperar e chegada do “ponto de diferença” que tornará o fenômeno plausível não apenas dentro da lógica cognitiva do texto, mas também no mundo reconhecido como não-literário. Ao relatar seu trabalho no campo da física, conta sua história:

A luz era o que me fascinava. [...] A densidade ótica! [...]

Descobri um princípio geral relacionando pigmentos e refração, uma fórmula, uma expressão geométrica envolvendo quatro dimensões. [...] Mas não se trata de um método, e sim de uma ideia que poderia resultar num método pelo qual seria possível, sem alteração em qualquer outra propriedade da matéria, exceto as cores, em alguns casos, seria possível reduzir o grau de refração de uma substância sólida ou líquida até deixá-lo igual ao do ar, no que diz respeito a qualquer aspecto prático. Mas considere que a visibilidade de um corpo depende de sua ação em relação à luz. Um corpo pode absorva-la, pode refleti-la, pode refratá-la, ou pode fazer uma combinação dessas três coisas. Se não faz nenhuma das três, ele não é visível. (Ibid., p.126-127)

Diante do entendimento do doutor, o homem invisível segue, exemplificando com o caso do vidro, que se torna mais ou menos visível quando é aumentada sua superfície de refração e reflexão, e dizendo que “qualquer coisa transparente torna-se invisível se for

colocada num meio que tenha aproximadamente o mesmo índice de refração” (Ibid., p.128). E assim a obra leva o leitor à “compreensão” do processo pelo qual chegou à formula de um líquido que torna invisíveis os tecidos vivos. Com a palavra de um doutor no diálogo, confirmando as afirmações do cientista invisível, o leitor reflete sobre o fenômeno e aceita as explicações fornecidas no texto, servindo ou não como lei no seu Mundo Zero. Aceitando também os relatos posteriores do experimento realizado colocando um pedaço de tecido de algodão entre dois centros irradiadores que, alterando seus índices de refração, tornaram esse tecido invisível. Em outro momento, com um gato, dando também um bom resultado. E mais tarde o cientista se tornou sua própria cobaia, resultando no homem invisível da história.

Com todo esse trabalho de convencimento operado pelo discurso da máquina científica, a obra consegue utilizar perfeitamente o “ponto de diferença” que funciona através do estranhamento cognitivo. Por ser uma obra literária, que cria seu próprio espaço, o texto não tem obrigação de tratar da exatidão dos dados científicos; entretanto, por ser uma obra de ficção científica, precisa fornecer essa explicação de maneira que o leitor a identifique como possível no mundo reconhecido ao seu redor. Nesse sentido, a FC se preocupa menos com a verossimilhança dos dados científicos do que com a verossimilhança das possibilidades da Ciência e da tecnologia aplicadas ao mundo não-literário. Um homem invisível decorrente da obra dos espíritos, da feitiçaria ou da bebida, como falam alguns personagens na história, é provavelmente menos pertinente do que um homem invisível resultado de teorias da física, pesquisas e experimentos de um cientista.

Por correspondência com essa premissa da diferença, a FC trabalha também a semelhança – ou identificação. O “outro” que está perto também se transforma no espelho do mesmo que, através da FC é problematizado e abalado nas bases de sua hegemonia. O novum proporciona o encontro com a diferença através da alteridade que, por sua vez, é a marca específica da cultura de FC, seja através do alienígena, do monstro criado em laboratório, do ser humano geneticamente modificado, do robô humanoide ou não, do ciborgue, do vírus de computador ou da captura da realidade virtual.

Quando os robôs de Asimov entram em cena, suas crises estão perigosamente próximas das crises humanas; as leis obedecidas por eles são como três mandamentos divinos (onde a humanidade tem dez), ditados pelo seu criador; suas ações questionam as ações humanas; sua existência é possível somente por causa da humana. Os três mandamentos para os robôs são, na verdade, bases condicionais para seu comportamento, inscritas em sua

programação. Além disso, o elemento técnico nessas histórias, sem perder a característica de “outro”, é a máquina que atua na construção do “mesmo” através de seu questionamento.

É difícil acreditar que os marcianos de Ray Bradbury sejam realmente alienígenas, ou habitantes de outro planeta, pois a descrição de seus corpos, seu contexto e sua existência são extremamente humanas, a ponto de muitas pessoas não classificarem suas histórias como FC (e ao procurar a explicação racional para o “estranhamento cognitivo” em As crônicas Marcianas, ela não é encontrada).

O ser criado pelo doutor Frankenstein, na obra de Mary Shelley, revela-se mais compassivo e sensível do que seu criador, que o rejeita e, embora apresente suas emoções de culpa, raiva e medo, quando comparado à criatura de seu laboratório, parece frio e pouco racional. Enquanto isso, a criatura sem nome, vaga pelo mundo buscando respostas para as questões que mais afligem a humanidade, como sua origem, seu destino e a razão de seu sofrimento.

Nas obras de Philip K. Dick, a paranoia e a plasticidade do tempo são temas trazidos através de um aparato tecnológico, um elemento técnico, aparentemente vindo de uma realidade distante no tempo ou no espaço. Porém a proximidade desse elemento e suas aplicações e consequências, na obra de Dick, são encontradas dentro da casa de cada um de seus leitores. Em um de seus contos, publicado em 1969, Dick relata como Garson Poole acorda ferido e descobre que não pode ser atendido pelo hospital onde se encontra porque é um “robô orgânico” ou uma “formiga elétrica” – expressão que dá título ao conto. Poole fica indignado, pois não tinha ciência desse fato e passa então a questionar a veracidade de sua memória e de seus sentimentos.

O robô começa a se enxergar como uma aberração, desacreditando de sua falta de aptidão para perceber que não era um ser humano feito de carne, mas de fios e circuitos revestidos por uma pele artificial quase idêntica à pele humana. “Sou [...] um objeto inanimado que pretendia ter vida. Mas o pior é que se sentia vivo.” (ASIMOV et. al., 2010b, p.87) afirma Poole em meio a uma profunda crise existencial, a partir da qual passa a buscar sua liberdade através do controle de seu corpo. Refletindo sobre a subjetividade da realidade, conclui que a única realidade existente é a subjetiva, mas ao mesmo tempo acredita que sua liberdade virá através do alcance da “realidade absoluta e definitiva, durante uma fração de segundo. Depois disso, nada mais importa, porque ficarei sabendo de tudo; não restará mais coisa alguma para compreender ou ver.” (Ibid., p.101)

Toda essa ânsia pela resolução de conceitos como “verdade” e “realidade” são manifestações do mesmo através do “outro”, é quando o leitor se identifica com o robô

orgânico, pensando o que sentiria estando em seu lugar. E quando um dos técnicos da oficina de consertos explica a Poole: “Sabe por que você não desconfiou? [...] Você nunca desconfiou porque foi programado para não desconfiar” (Ibid., p.87), é possível uma comparação com o condicionamento dos embriões descrito em O admirável mundo novo, de Huxley, e talvez um paralelo com o condicionamento social humano apresentado por Nietzsche em A genealogia da moral.

Assim como a formiga elétrica foi programada para não desconfiar de que era um robô, o leitor é “programado” para viver em sociedade ignorando muitos fatos sobre a própria existência (a natureza da consciência, o funcionamento completo do corpo, a realidade pós- morte), fatos sobre os quais reflete, por exemplo, a criatura do doutor Frankenstein a partir do momento em que olha para o outro – neste caso uma família de humanos – e se permite então olhar para si. Em A formiga elétrica, encontramos a própria condição humana abalada quando Poole descobre que é um robô. De acordo com a lógica interna do texto, nada impede rigorosamente que qualquer ser humano seja uma formiga elétrica sem saber disso. Essa possibilidade – e não necessariamente o robô, como elemento técnico da obra – causa o estranhamento do mesmo, o encontro com a alteridade do leitor: até que ponto é possível ter consciência da verdade do próprio corpo? Até que ponto a tecnologia ajuda a compor esse corpo, com ou sem seu consentimento?