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As críticas de Febvre e o embate que elas ensejaram eram, em essência, historiográficos, o que não autoriza a categorizar essa condição como politicamente neutra. O silêncio de Febvre sobre o

que mais tarde ele próprio chamaria de “tragédia do progresso” não era acidental ou uma simples ausência em nome da melhor clareza narrativa dos seus argumentos contra a velha história que a exposição, focalizada no artigo de 1932, reiterava. Os fundamentos estruturantes do colonialismo não eram alvo de questionamentos por parte de Febvre, ainda que não faltassem observações sobre a quase invisibilidade dos colonos para as autoridades francesas. Zelo patriótico? Não nos parece uma tese desconfortável. A Universidade de Estrasburgo era, para usarmos a expressão de Certeau, um

lugar de fala no qual vicejava um nacionalismo orgulhoso em relação à ciência francesa face à

alemã, situação resultante do fato de esta instituição retornar ao domínio da França, após a Primeira Guerra Mundial, com a retomada da Alsácia-Lorena. A lição última da exposição era assim relatada por Febvre, em uma passagem na qual a crítica do sentido histórico dado pelos organizadores juntava-se a dois aspectos recorrentes no discurso dominante sobre o imperialismo: a redução do abismo econômico entre as nações e a superioridade europeia diante dos outros povos.

Cheio de lembranças pesadas, o historiador retorna à cidade meditando sobre tudo o que as variações alternadas de distâncias entre raças e povos já produziram de desordem na história: se, de um lado, as distâncias materiais diminuem a cada dia, de outro as distâncias morais permanecem constantes, enormes e talvez insuperáveis[416].

Não nos façamos os apóstolos da coerência ou os censores das mudanças de opinião. Se Febvre era ardoroso combatente em prol da renovação do pensamento histórico, da mudança nos modos de estabelecermos nossas relações com o passado, como esperar que ele mesmo se conservasse irredutível às transformações de perspectiva e de pontos de vista? O que nos estimula nessa passagem é tão somente a possibilidade de nos contrapormos àqueles que, como André Burguière[417], alegam que as ações e o pensamento do autor de Luther eram indiferentes à política. Ao contrário, fazer da atividade historiadora uma relação inseparável da vida pressupõe o alinhamento entre o pensamento e a experiência: não falar exclusivamente a partir de um plano intelectual abstrato, mas ter em vista também a dinâmica da realidade em constante estado de mutação. É preciso acompanhar o movimento do tempo e observar a obra do mundo um pouco acima da base, como um engenheiro que está sempre em busca da solução de problemas reais. Já em 1920 Febvre destacava esse papel de homem de ação, que cabia ao historiador representar, em consonância com os objetivos da sua pátria:

Como o engenheiro, o grande industrial e o sábio técnico, o historiador deve trabalhar para a glória, grandeza e expansão do seu país, em colaboração e em ligação constante com eles, bem como com métodos parecidos aos deles. Seguir seus progressos passo a passo, prepará-los antes, justificá-los, prolongá-los pelo passado que, de antemão, determina e explica o presente – e, se ele tem algum talento, projetar no futuro a sombra dilatada e plena de promessas do presente. Tal é a sua tarefa, sua função na grande obra de restauração e expansão de seu país. E que tarefa bela e fácil no dia seguinte após a vitória, então que o prestígio do triunfo porta naturalmente a França como protagonista da cena. Que tarefa mais bela e mais urgente, sobretudo nesta Alsácia, privada durante quase meio século de ser a porta-voz do pensamento francês, cercada pelas mil mentiras e astúcias de um vencedor sem escrúpulos, tanto mais ávido a entender, enfim, a verdade francesa?[418]

Lembremos aqui outro episódio em que Febvre enfrentou questões que ultrapassavam os problemas relativos ao conhecimento histórico. Trata-se de sua recusa em suspender as atividades da revista Annales durante a ocupação nazista e a capitulação de Vichy. Tal atitude estremeceu as relações com Bloch, que combatia os nazistas e por eles seria morto, ainda que este não deixasse, sob o pseudônimo de Marc Fougères, de colaborar com a revista. Nessa quadra, o periódico intitulava-se Mélanges d’Histoire Sociale. Muito se responsabilizou Febvre pelo paradoxo de defender com tanto vigor uma história viva e negligenciar um engajamento mais ativo na Resistência.

Apesar de constantemente denunciar as teorias racistas em seus cursos no Collège de France, Febvre jamais chegou a se posicionar incisivamente sobre a escalada nazista, tanto em seu próprio nome quanto em nome da revista que dirigia. Ele preferia dedicar-se ao trabalho de reconstrução do passado para, situado em seu tempo, desvendar os males do presente. O autor percebera que a unidade dos homens estava rompida e desconfiara – como autor dedicado ao estudo dos universos mentais, que impunham limites às ações humanas – que as intervenções individuais seriam inoperantes para restabelecê-la. Se alguma esperança havia, ela ainda era a História, pela qual cada um poderia, por si mesmo, refazer essa unidade “pelo magnífico acordo de seu pensamento profundo com sua ação desinteressada”[419]. Na defesa feita a posteriori de sua opção pela trincheira historiográfica, Febvre assim se expressava, num texto de 1946, no qual conclamava a revista

Annales a prosseguir com sua obra missionária de renovação do pensamento histórico:

Fazer história, sim. Na medida em que a história é capaz – e é a única capaz – de nos permitir, num mundo em estado de instabilidade definitiva, viver com outros reflexos, além do medo, da obrigação de nos refugiarmos nos porões, quando todo esforço humano se reduz a aguentar por algumas horas, acima de nossas cabeças vacilantes, os telhados arrebentados, os tetos eviscerados[420].

Portanto, a preservação da revista Annales alinhavava uma resistência da introspecção, uma reserva não heroica. Nesse sentido, não se deve confundir a atitude de Febvre com passividade. A História, como ciência do mutável, aquela capaz de refazer as combinações infinitas e ricas do passado, as relações móveis e dinâmicas era, antes de tudo, uma ética. E um combate, sempre um combate.