• Nenhum resultado encontrado

A história da cultura como Morfologia

Não foram muitas as vezes em que o problema da escrita da história foi formulado em O outono

da Idade Média, mas, nas ocasiões em que esse problema surgia, ele parecia se limitar a uma crítica

à perspectiva do materialismo histórico e aos limites impostos pela pesquisa histórica corrente para lidar com o que havia denominado de “formas de vida e de pensamento”. Durante sua trajetória como historiador, Huizinga reiteradamente falou sobre o seu desconforto em lidar com problemas teóricos do conhecimento histórico. Em sua autobiografia ele chegou a afirmar que “o acesso direto aos detalhes coloridos do passado, não importa como eles são obtidos, é o suficiente para mim”[305]. Contudo, nas décadas de 1920 e 1930, uma série de conferências e artigos parece indicar um caminho diferente. Se o acesso direto aos detalhes do passado era suficiente, Huizinga não deixou de se questionar sobre como esse acesso era possível. Nas conferências Em torno da definição do

conceito de história (1926), A tarefa da história da cultura (1929) e Sobre o estado atual da ciência histórica (1934), Huizinga se propôs a tornar mais claro o que havia fundamentado as

escolhas teórico-metodológicas na sua investigação sobre as “formas de vida e de pensamento” da Idade Média borgonhesa, assim como outros de seus estudos: Qual era, em sua opinião, a tarefa da história e da história da cultura em particular[306].

O primeiro passo para entender o que era a história, segundo Huizinga, estava em se desembaraçar de um “realismo histórico simplista”. Como em 1905, na sua aula inaugural sobre O elemento

estético das representações históricas, o seu ponto de partida era uma crítica severa à ideia de que

a história aspiraria oferecer o relato do passado, “como as coisas realmente aconteceram”. Contra a noção de que a história era uma “imagem mecanicamente refletida do passado”, Huizinga afirmava que a única coisa que “nos oferece a história é uma certa imagem de um certo passado [...]. Não é

nunca a reconstrução ou a reprodução de um passado dado. O passado nunca é dado”[307]. Até a melhor e mais completa das tradições seria por si mesma muda e amorfa se aquele que pretendesse compreendê-la não se encarregasse de transformá-la em resposta às suas próprias perguntas. Para Huizinga era indiferente se essa tentativa de compreender o passado se realizava pelo uso de métodos rigorosamente críticos ou de lendas e epopeias de épocas culturais passadas: “a história é sempre, no que se refere ao passado, uma maneira de dar-lhe forma e não pode aspirar ser outra coisa. É sempre a captação e a interpretação de um sentido que se busca no passado”[308]. A imagem histórica apenas surgiria como o resultado de uma busca por conexões e sentidos que não estavam dados no passado mesmo, mas que eram, em última medida, construídos a partir da atitude cultural de uma época ou de um povo em relação ao seu próprio passado.

As tentativas de transformar a ciência histórica em uma “ciência exata e positiva” teriam falhado precisamente por conta desse vínculo fundamental entre a história e a cultura. “A história, tal como era, com o seu apelo à imaginação, satisfazia a uma necessidade primordial e desempenhava uma tarefa que lhe era imposta pela própria cultura”[309]. Era como “ciência eminentemente inexata”, com noções vagas e indecisas, que Huizinga via a história. Esse caráter “vacilante” resultaria do fato de que, de todas as ciências, a História era a que “mais se aproxima da vida”. Nessa “relação indestrutível” estaria a origem da força e da debilidade do conhecimento histórico. Ao mesmo tempo em que essa aproximação tornava variáveis as suas normas e duvidosas as suas certezas, esse mesmo fato garantiria à história sua universalidade, importância e gravidade. Se por vezes o saber histórico poderia parecer “menos que ciência”, uma vez que havia limites para a “pureza rigorosamente intelectual” de seus conhecimentos, ele era, contudo, “mais que ciência”, pois atenderia a exigências que superavam o interesse intelectual especializado e diziam respeito à aspiração de uma cultura de adentrar pelo passado, em busca de si mesma.

A vantagem de definir a História como “ciência inexata” residia no reconhecimento da inevitabilidade do caráter relativo, subjetivo e potencial que, na opinião de Huizinga, fazia parte “da índole e da essência dos conhecimentos históricos mesmos”[310]. Como desdobramento dessa conclusão, Huizinga tentava explorar as potencialidades oferecidas por essa assistematicidade da história, e sua relação com a cultura, por meio da ideia de que este saber deveria atuar como

morfologia do passado, desenvolvendo-se simultaneamente como uma “necessidade de estudo” e

uma “necessidade de vida”. “Fazer história significa compreender o sentido que o passado tem para nós. Nesta sua característica está já inclusa aquela do ‘dar forma’. Para poder compreender um fragmento do passado refletido no aspecto da própria cultura, a história tem que se esforçar sempre e onde quer que seja para ver as formas e as funções daquele passado”[311].

Nessa operação de dar forma ao passado – em que o historiador teria que desenvolver as conexões e ideais mediante os quais a realidade passada poderia ser compreendida –, residia, para Huizinga, a “orientação morfológica” de todo conhecimento histórico. Não poucas vezes, segundo Huizinga, essas formas poderiam já estar presentes na própria realidade imediata de maneira “precisa e determinada”, bastando ao historiador tomá-las como um problema para a investigação histórica. Esse seria o caso das formas políticas como o Estado ou uma instituição ou, mesmo que em menor grau, das formas econômicas, como as relações comerciais e as de trabalho. No caso da história da cultura, contudo, essa continuidade entre o pensamento espontâneo que se produzia na

vida “comum” e o pensamento teórico seria menos evidente. Na medida em que os seus objetos não eram tão definidos como uma guerra ou um regime de governo, as formas com que o historiador apreendia os fenômenos da cultura dependiam, em maior grau, das perguntas que o historiador fazia ao passado. “A natureza dessas formas não está dada. Elas obtêm a sua configuração em primeiro lugar somente em nossas mãos [...]. A história da cultura é, em uma medida considerável, produto do livre espírito do investigador e do pesquisador”[312].

Haja vista que as formas da história da cultura eram “modeladas” pelas mãos do pesquisador, Huizinga prescrevia uma dose maior de cautela na formulação de seus problemas. Pela fluidez de seus objetos e pela complexidade de seus objetivos, sempre haveria para o historiador da cultura o risco de que os conceitos históricos formulados para apreender um determinado fenômeno do passado acabassem por se tornar “vagos e flutuantes” ou, ainda pior, simples hipostasias. Essa cautela deveria expressar-se na opção por uma “morfologia especial”, ocupada com “a tarefa de determinar as formas especiais da vida histórica”[313].

Nesse campo de uma morfologia especial da cultura encontrar-se-ia tanto o trabalho da história da cultura quanto o de todas as “ciências culturais” especializadas (Geisteswissenchaften) como a antropologia, a sociologia, a filologia, a história da literatura, da filosofia etc. Para muitos poderia parecer que, com o trabalho conjunto dessas disciplinas especializadas, a tarefa da história da cultura já estaria realizada, não havendo espaço, portanto, para a investigação histórico-cultural como um campo de investigação autônomo. Contudo, para Huizinga, essa era uma visão equivocada. Compartilhando com estas disciplinas os mesmos objetos – quais sejam, “as variadas formas e funções da civilização assim como estas podem ser extraídas da história dos povos ou grupos sociais como se condensam em figuras culturais, motivos, temas, símbolos, ideias, ideais, estilos, sentimentos”[314] –, a história da cultura, porém, dedicava-lhes um tratamento de natureza diversa. Se para as ciências especializadas o problema centrava-se em “compreender as formas culturais como tais, isoladas do processo histórico”, para a história da cultura as formas do passado eram expressão de um “espírito” que ela tentava compreender “em meio à corrente dos acontecimentos”. “A história da cultura se volta para seus objetos, concentra neles seu olhar, mas retorna constantemente dos objetos mesmos ao mundo em que estes tiveram lugar”[315].

O objeto do historiador da cultura deveria ser sempre, segundo Huizinga, a cultura como

totalidade. Se o Estado, a vida econômica e a religião existiam como um todo, mas ao mesmo tempo

também em seus detalhes, a cultura só existiria como um todo. Qualquer que fosse o tema específico de sua pesquisa, ele deveria ser investigado do ponto de vista de qual o seu lugar e a sua função na cultura em relação ao contexto mais amplo. Caso contrário a história da cultura poderia facilmente se deteriorar numa compilação de dados curiosos ou perder a sua especificidade em relação às outras disciplinas históricas especializadas. “Apenas quando o pesquisador busca destacar as formas de

vida, arte e pensamento tomadas em conjunto pode haver uma pergunta de história cultural”[316]. Não seria difícil aqui se lembrar de como, para Huizinga, a cultura borgonhesa de O outono representava um todo, “uma cultura em vias de desaparecimento”, no qual as formas de vida, arte e

pensamento – como a arte dos Irmãos Van Eyck, por exemplo – não existiam como entidades

autônomas, mas estavam subordinadas à coerência interna de um período histórico singular, do qual eram parte integrante.

A relação entre a história da cultura e as outras “ciências culturais”, por mais diferentes que fossem as suas abordagens dos “problemas que afetam a forma, a estrutura e a função dos fenômenos sociais”, poderia gerar um ganho para ambas. Por um lado, o conhecimento das formas culturais – tal como apresentadas por sociólogos, antropólogos e estudiosos da religião – representava, para o historiador, a oportunidade de uma melhor compreensão dos acontecimentos especiais. Por outro, o trabalho do historiador da cultura “pode servir de confirmação e de ponto de apoio aos esquemas dessas ciências específicas” ao colocar em relevo a aparição desses fenômenos “no curso multicolorido da história mesma”. As unidades construídas pelo historiador da cultura apontavam sempre para um fator temporal de mudança. Se a forma indicava algo constante (estrutura) – o que a colocava no centro das investigações das ciências históricas especializadas –, o conteúdo dessas formas sempre indicaria uma “evolução”, uma transformação no tempo, um acontecimento contingente que se desenvolveria no “cenário do grande drama da história”[317].

Se a história como “atividade do espírito” consistia em dar forma ao passado, também como produto ela seria, na visão de Huizinga, uma forma. “História é a forma espiritual na qual uma cultura presta contas de seu passado”[318]. Como parte e fenômeno da cultura, também a história, como forma de conhecimento que se voltava para o passado (fosse essa forma científica ou não), teria um efeito sobre a cultura ao iluminar o presente através das lentes de um tempo pretérito, moldando-a. “A vida de uma nação é história, assim como a vida de um indivíduo é história. A cada momento a vida tem formas e sentidos, significado e direções extraídas do que foi antes”[319]. Compreender o mundo no e pelo passado, esta era a ocupação da história para Huizinga. Não para auferir os conhecimentos do presente mediante os do passado ou para revelar uma lição útil para o futuro mais próximo; mas sim para conquistar um ponto de vista seguro na vida, para buscar sentido para a nossa própria existência. O importante para a história era a distância, a perspectiva. “Precisamente da tensão que se produz entre dois polos tão distantes nasce a intelecção da história”[320].

A partir da década de 1930, cada vez mais os problemas da teoria da história e da história da cultura pareciam convergir para uma crítica da cultura contemporânea. Com sua ideia de morfologia, que situava a história no seio da cultura como “forma espiritual”, Huizinga pretendia contribuir para que o conhecimento histórico estivesse à altura das demandas crescentes por compreensão do passado e do presente no cenário da “crise da Europa” no Entre-guerras, com a emergência do fascismo na Itália, a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha e o avanço da “ameaça” bolchevique. Frente à necessidade de “prestar contas” do presente, a única opção, acreditava Huizinga, estava em encontrar as razões que haviam conduzido a Europa a trilhar o caminho de uma “progressiva decadência cultural”.