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Considerações finais: Paris, capital da história no século XX?

Entre 16 e 18 de junho de 1986, por iniciativa de Karl F. Werner, diretor do Instituto Histórico Alemão de Paris, realizou-se um colóquio internacional na Escola Normal Superior, evento patrocinado pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, ocasião em que diferentes especialistas fizeram um balanço da obra de Marc Bloch. Contemplando a obra e as realizações de Marc Bloch, bem como o papel da revista Annales, constata-se que, se o século XIX foi o século da história, o século XX teria sido o século de uma nova história, no sentido do embate entre as formas tradicionais e o advento de novas formas de investigar, analisar e escrevê-la. Tal assertiva serve de advertência para o falso problema, muitas vezes formulado, de dizer que a história metódica oitocentista privilegiou a dimensão política e a narrativa, ao passo que a história novecentista teria sido mais analítica e social, pois, efetivamente, não foi este o caso.

Provavelmente, a tentativa de apresentar um novo Marc Bloch ou ainda o propósito de realizar uma leitura a contrapelo de sua obra, metas que se encontravam em nosso protocolo inicial de intenções, não constituam novidade nem tenham sido plenamente atingidas. Afinal, é sempre tarefa espinhosa tratar de autores ou obras consagradas já resenhados em análises primorosas. Desse modo é possível concordar com Peter Burke e dizer que, se Bloch não foi o criador das inovações que praticava em sua abordagem, ele possui o mérito de utilizá-las de maneira mais efetiva que seus antecessores[541]. Em relação ao método, ele foi um apóstolo da comparação, da

interdisciplinaridade, do recurso à compreensão e da abordagem regressiva. Para Jacques Le Goff, Bloch teria aberto três campos fecundos para a historiografia contemporânea: a história das mentalidades, a história política renovada e a antropologia histórica[542], e escolhido temas inovadores como as representações do poder, a história rural ou a história das técnicas.

É inegável que Marc Bloch conferiu um importante legado à disciplina histórica, sendo responsável pelo surgimento e expansão da história social na historiografia francesa e mundial. Forçoso, contudo, é reconhecer que tais inovações não eram exatamente criações originais suas, mas recursos mais sistematicamente utilizados e difundidos por ele, empregados por outros autores franceses, ingleses e alemães. E não poderia ser diferente, afinal Bloch possuía uma biblioteca de aproximadamente seis mil volumes e seu cosmopolitismo, marca dos grandes historiadores de seu tempo, contribuiu para que realizasse o difícil diálogo entre tradições historiográficas e de pensamento que estavam em choque. Herdeiro da tradição crítica metódica, Bloch “se impõe como um mediador principal entre a ciência histórica alemã e a história francesa”[543]. Era isso que não o impedia de apreciar historiadores como Fustel de Coulanges, cuja ingenuidade epistemológica foi duramente criticada como uma expressão da velha história científica de caráter historizante[544]. De fato, até meados de 1914, o peso desta velha história no pensamento de Bloch é enorme e a ânsia pela objetividade dos fatos históricos parece-lhe real. Otto Oexle fala de uma atmosfera, de um ambiente intelectual que, do ponto de vista sociológico, o faz oscilar de Durkheim a Weber[545]. Sua trajetória acadêmica, sempre acolhida pelos antigos mestres da escola metódica, abre a possibilidade de se pensar na permanência e sucessão aos metódicos, com os quais mantiveram vínculos e receberam incentivos, cuja herança relativiza a tão falada ruptura ou vitória sobre a velha história.

Ele tinha noção da natureza provisória de suas sínteses, reconhecendo que algo sempre resistiria à análise, mas evitava preencher “as lacunas de seus textos com hipóteses analógicas”[546]. Para Bloch, “a sociedade não é uma figura geométrica e uma demonstração em história não é uma demonstração de teoremas”[547]. Como vimos, o autor costumava comparar o historiador a um juiz de instrução, que trabalha com provas no intuito de descobrir a verdade em meio a testemunhos diversos e às vezes contraditórios. Assim,

os livros de Bloch são ricos de ideias e hipóteses. Entretanto, ele seguia invariavelmente a lei da honestidade que obriga todo o historiador a não lançar quaisquer teses que não possam ser verificadas[548].

Para ele, o primeiro dever de um historiador é, como dizia Pirenne, fazendo coro aos alemães e a Michelet, interessar-se pela vida. O segundo é refletir sobre o presente, sem o qual é impossível compreender o passado. “São esses mesmos hábitos de crítica, de observação e, espero, de honestidade que tentei aplicar ao estudo dos trágicos acontecimentos nos quais acabei sendo um modesto ator”[549].

Bloch vivenciou os grandes debates teóricos de seu tempo, o Methodenstreit alemão vivido na querela dos herdeiros de Ranke e os precursores de uma história mais global e social, identificados a Lamprecht, dentre outros, acompanhou a penetração do marxismo nas universidades, conferindo maior atenção a aspectos econômicos e psicossociais. Procurou integrá-los, entusiasmado com a perspectiva da síntese histórica tal como proposta por Berr[550]. Sua principal virtude foi dotar de

historicidade o arsenal metodológico da sociologia durkheimiana, colocando o instrumental desenvolvido neste campo a serviço da história. E quero crer que seu maior debate não tenha sido travado exatamente contra o positivismo ou contra o historicismo, dos quais foram apropriados em maior ou menor grau determinados pressupostos epistemológicos (do primeiro a reserva ante a teorização abstrata, do segundo o método compreensivo, o cultivo à erudição, a busca pelos nexos) ou certos objetos de investigação (a história das raízes da pátria e da sociedade). Seu maior debate foi travado contra estudos históricos tradicionais incapazes de produzir o diálogo com a historiografia europeia existente ou de indicar novos caminhos de investigação, mais interdisciplinares, mais afinados com as possibilidades técnicas e intelectuais e que respondessem às inquietações de seu tempo. Nesse sentido Bloch, ao lado de Febvre, colocaram Paris no centro do universo historiográfico do século XX.