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Fernand Braudel (1902-1985)

Diogo Roiz

A obra de Fernand Paul Braudel é das mais importantes e representativas que foram feitas no século passado. Seu autor é considerado um dos maiores historiadores do século XX, ao lado de Henri Pirenne (1862-1935), Johan Huizinga (1872-1945), Lucien Febvre (1878-1956), Marc Bloch (1886-1944)[625], Christopher Hill (1912-2003), Eric Hobsbawm (1917-) e Edward Palmer Thompson (1924-1993). Sua obra está entre aquelas que mais contribuíram com o desenvolvimento dos estudos históricos, na segunda metade do século XX. Contudo, como entender a produção de uma obra tão extensa e complexa? Em que medida os diferentes lugares que o autor conheceu, estudou e trabalhou contribuíram para o desenvolvimento de seus métodos e para a escrita de seus textos? Como suas ideias foram recebidas? Qual o tipo de herança intelectual que deixou na história da historiografia? Essas foram as indagações que nos serviram de base para a produção deste texto.

De imediato, convém destacar a pluralidade de olhares surgidos acerca de sua obra e sobre o próprio autor. Já em meados dos anos de 1970, quando o movimento Annales afirmava-se na mídia francesa, com certa hegemonia no plano da história da historiografia internacional, o texto coletivo

Fazer história (de 1974), organizado em três volumes por Jacques Le Goff e Pierre Nora[626], apenas faz menção à obra de Braudel, cuja importância não é deixada de lado, mas sequer este faria parte do empreendimento, que se tornaria o manifesto de apresentação da nova história francesa (o que talvez justifique sua ausência), por meio de “novos objetos”, “novos problemas” e “novas abordagens”. Na avaliação que Boutier e Julia[627] fizeram no final dos anos de 1980 sobre os campos da pesquisa histórica, além de retomarem essas questões, acrescentariam que no lugar de uma evidente dialética entre os tempos (curto, médio e longo) na escrita da história, parecia haver maior propensão em se pensar o processo histórico mediante a primazia de um tempo estrutural, quase imóvel, no qual os homens seriam meros agentes (quase passivos) no interior do funcionamento das engrenagens do sistema político, econômico e cultural. Não foi por acaso, acrescente-se, todas aquelas escolhas, pois aquele foi o momento de auge do pós-estruturalismo na França[628], e cujas marcas não deixariam de ficar amplamente evidenciadas na própria escrita da história, que então era praticada pelos historiadores – e não somente os franceses[629].

Poucos anos depois, em 1978, noutra obra coletiva organizada por Jacques Le Goff[630], cujo título emblemático A nova história sinalizava as novas opções do grupo ao redor da revista Annales, Braudel figuraria ao lado de Febvre e Bloch, numa tentativa de ajustar a compreensão que deveria ser feita a respeito do movimento na história da historiografia. Nesse caso, dos fundadores do periódico (Febvre e Bloch) alocados numa “primeira geração” do movimento, seguir-se-ia Braudel na liderança da “segunda geração” e seus herdeiros e críticos, que comporiam a “terceira geração”

do movimento. Os elos que dariam prosseguimento a esse tipo de leitura do Movimento Annales ficariam cada vez mais evidentes na história da historiografia ao longo dos anos de 1980 e 1990[631].

Nessa linha argumentativa poderíamos definir uma primeira chave de leitura da herança de Braudel, ora colocando-a como um instrumento válido e imprescindível para se estudar e conhecer o passado entre aquelas historiografias que foram se tornando críticas da nova história francesa (a exemplo da historiografia espanhola e latino-americana), ora definindo-a como ineficaz para compreender a composição das estruturas mentais, das mudanças e permanências culturais de um grupo e do jogo das representações, especialmente naquelas onde a nova história (e seus desdobramentos com a nova história cultural) floresceu rapidamente e ainda são entendidas como operacionais e válidas para o estudo das sociedades do passado (como é o caso da historiografia portuguesa e da brasileira); ou ainda, o que é mais complexo de expor, estando num jogo tenso com o(s) marxismo(s), onde a primeira e a segunda geração dos Annales, junto com os marxistas, apareceriam em disputa direta com a nova história, em certos casos, demarcando até um campo de competição entre paradigmas rivais[632] (como é possível notar na historiografia inglesa, italiana e norte-americana). Mas não devemos apressar nossas avaliações, e o caso das historiografias citadas acima deve ser sempre relativizado em função das exceções sempre evidentes em cada uma delas[633]. Muito mais elucidativo é verificar que, se na França essas análises foram sendo compostas mediante um jogo de poder (no campo da escrita da história), não foi diferente o que ocorreu em outras historiografias.

Para Marnie Hughes-Warrington[634], apesar de Braudel não poder ficar de fora numa lista dos 50 grandes pensadores da história, não é nada fácil proceder à análise de sua obra. Para ela seus estudos abriram caminho para se conhecer melhor as conexões entre tempo histórico e mudança social, apesar de ir progressivamente dando maior destaque à “longa duração”, fundamentalmente em razão da disputa que então se travava entre a história e as ciências sociais, em meados dos anos de 1950. Mas, se essas estruturas “relacionais são amplas e funcionam de acordo com regras que as pessoas talvez não tenham consciência” plena, a percepção que se deve ter sobre elas, “acredita Braudel, requer a ampliação e o aprofundamento de nosso olhar por e através do tempo”[635]. Além disso, Braudel é um estudioso da formação dos espaços sociais, das relações entre os homens e a natureza, posto que sua visão da história “exige o estudo de uma série imensa de evidências históricas no decurso” da longa duração, onde as estruturas são formadas, mantidas, ou até refeitas (inclusive, por novas que tomam o lugar das anteriores).

De acordo com Jacques Poloni-Simard[636], ao lado da importância que foi tomando a dimensão da “longa duração” no jogo das temporalidades na obra de Braudel, mediante um intenso debate entre história e ciências sociais, não se deve perder de vista que ele também estava engajado numa batalha em prol da história econômica e social. Prosseguindo as metas de Febvre e Bloch, Braudel daria continuidade às disputas por uma “nova história”, contrária à historiografia oitocentista, e que estava sendo ainda praticada nas primeiras décadas do século XX, especialmente na Sorbonne, em Paris. Por isso “Braudel inscreve-se [...] preferencialmente em concordância com a ‘história-problema’, de acordo com Lucien Febvre”[637].

Contudo, ao longo dos anos de 1970-1980, com a ascensão da “terceira geração” do Movimento

Annales, cujo projeto de uma nova história parecia querer senão suplantar totalmente a herança de

Braudel para a historiografia francesa, ao menos moldá-la de acordo com as novas necessidades do grupo[638], igualmente veio tornar mais complexa a percepção e interpretação de sua obra. Isso, aliás, não deixa de ser uma chave explicativa para o entendimento da razão pela qual sua obra passou a gerar tamanha polêmica, instando uma pluralidade de leituras e interpretações, além de ser amada por uns e rejeitada por outros, em certos casos ser amplamente utilizada, e em outros quase totalmente esquecida[639].

Talvez por isso Marcos Lopes e Sidnei Munhoz[640] preferiram não incluí-lo entre os

Historiadores de nosso tempo, em prol de Carlo Ginzburg, E.P. Thompson, Emmanuel Le Roy

Ladurie, Eric Hobsbawm, Eugene Genovese, Georges Duby, Jacques Le Goff, Jean Delumeau, Jean- Pierre Vernant, Michelle Perrot, Natalie Zemon Davis, Peter Burke, Phillipe Ariès, Quentin Skinner, Robert Darnton e Roger Chartier. Curiosamente, aliás, com pouquíssimas exceções (na lista estudada pelos autores na coletânea acima referida), grande parte deles tomou a obra de Braudel como base para suas problemáticas, a composição de seus procedimentos e a formação de um diálogo crítico. Além disso, poderíamos indagar: Por que Braudel não seria um historiador de nosso tempo se sua obra foi a base para o desenvolvimento dos estudos históricos (negando-a ou continuando-a, como indicamos acima) nas últimas décadas? Não estaria nesse exemplo uma opção deliberada pelas escolhas que foram feitas pela “terceira geração” do Movimento Annales preterindo as contribuições deste autor em função do projeto historiográfico que então procuravam desenvolver, ao mesmo tempo em que refaziam o próprio itinerário do desenvolvimento da nova história na França? E no caso da historiografia brasileira, onde a nova história cultural ainda se encontra num auge relativo, vir a justificar até mais esse tipo de opção teórico-metodológica? Evidentemente, não estamos aqui desconsiderando nem a importância da obra dos autores indicada acima, cujos textos são atualíssimos, nem tampouco evidenciando lapsos injustificáveis em suas opções, mas simplesmente, ao tomá-la como exemplo, destacar o modo complexo em que a obra de Braudel tem sido lida e interpretada tanto na França quanto no Brasil. Assim, torna-se fundamental questionarmos o que estaria atual e o que estaria inatual na obra de Braudel. Para tentarmos fazer esse exercício procuraremos inicialmente pensar tanto os contextos de produção quanto seus diálogos para a produção de seus textos. Como já havia salientado Elias Thomé Saliba:

Mas, para além das polêmicas, quase nada se falou, até agora, a respeito do grande tema que marca toda a obra de Braudel: a sua insistência na compreensão de uma história de longa duração e na necessidade constante de pensarmos numa história global[641].

Nada mais evidente no contexto atual no qual a preocupação com a produção de uma história global é cada vez mais evidente, como nos indica o próprio texto de Elias Thomé Saliba, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, então preocupado em indagar de que modo Braudel a havia pensado em sua obra. Por certo, não se deve deixar de lado que o projeto desenvolvido por Braudel dos anos de 1950 aos anos de 1970, virá a ser consideravelmente distinto do que se imaginará, a partir dos anos de 1990, como uma história global. Entretanto, também não podemos negar que há certas ligações entre um e outro, como a preocupação de formação de grupos interdisciplinares, com a participação de profissionais de várias partes do mundo; que fazer uma história global é tarefa lenta, mesmo se for empreendida por grupos; que uma história global deve situar o global e o local, numa

dialética não apenas comparativa, onde as questões nacionais devem ser (a princípio) suprimidas da análise, mas também com vistas a conectar temas e historiografias, questões e hipóteses. Nesse caso, nada mais atual no projeto historiográfico de Braudel do que sua tentativa de prescrever uma história total (ou global), onde a dialética da temporalidade curta, média e longa proporcionaria os elos de ligação para a compreensão do processo histórico mundial, no qual os indivíduos se encontrariam imersos, num jogo tenso e sempre em movimento com a natureza[642].

Não é por acaso, portanto, que a percepção do(s) tempo(s) na história sempre muda de acordo com o contexto, e quase que simultaneamente com a forma pela qual os homens e as mulheres percebem seu mundo, as coisas e a si mesmos. Com base nessa premissa devemos tanto pensar nosso contexto atual (em que a obra deste autor ou é questionada, ou é quase totalmente deixada de lado), quanto àquele que possibilitou a produção da obra de Braudel.

Quando, em 1989, a queda do Muro de Berlim deflagrou a imensa crise estrutural que perfazia os projetos da esquerda no Ocidente, de pôr em prática um tipo de sociedade socialista, e nos anos que se seguiram ao colapso da União Soviética pareceu que iria se concretizar os diagnósticos que então se faziam sobre o socialismo, à esquerda e ao marxismo[643], os neoliberais acabariam, nesse ínterim, por aplaudirem a situação, acreditando que aquele seria o momento em que a sociedade (neo)liberal, capitalista, definitivamente entraria em cena em todas as partes do planeta[644]. Autores como Francis Fukuyama[645] chegariam até a definir a situação como um momento de “fim da história”, por que aquele era o período em que o projeto antevisto por Hegel no século XIX finalmente atingia o seu ápice. No entanto, seja a interpretação de Fukuyama, seja mesmo a do próprio projeto de Hegel, não ficariam isentos de críticas, mesmo naquele contexto que favorecia uma leitura positiva de seus itinerários[646].

Isso por que, ao longo dos anos de 1990, as crises periódicas da economia mundial não somente surpreenderam os mais pessimistas dos analistas neoliberais, quanto solaparam as avaliações até dos mais otimistas, como a de Fukuyama, indicando o quanto a história era dinâmica e seu movimento, por mais que parecesse diagnosticável, apresentava-se consideravelmente imprevisível em sua totalidade. A tal ponto que, nos últimos anos, após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001[647], os Estados Unidos se mostrarem cada vez mais frágeis às movimentações do mercado mundial[648]. Curiosamente, ao mesmo tempo em que se avolumam as críticas sobre os projetos de pôr em prática qualquer tipo de socialismo nas sociedades atuais, um movimento talvez até mais intenso se volta sobre a obra de Karl Marx (1818-1883), em vista da propriedade da análise que empreendeu sobre a formação e o desenvolvimento da sociedade capitalista no Ocidente[649]. Mas, se os projetos da esquerda e da direita se encontram em crise, valendo o mesmo para a própria definição e identidade do que fosse direita e esquerda no Ocidente[650], destacadamente revelando um momento de questionamentos (que já vinham desde as primeiras décadas do século passado) sobre as filosofias seculares da história[651], parece que as filosofias religiosas da história, cujo sentido do processo histórico não se encontrava sobre as sociedades humanas, entre as coisas mundanas, mas sim sobre a promessa de uma vida eterna ao lado de Deus, têm-se renovado de forma intensa entre os mais variados seguimentos sociais e instituições religiosas[652].

Surpreendentemente, enquanto o ano de 1989 daria ensejo a tal conjuntura política, econômica e cultural, aquele também foi o ano em que se comemorou o Bicentenário da Revolução Francesa, justamente quando efetivamente as relações e as tensões entre esquerda (jacobina) e direita (girondina), acirravam-se diante das consequências das manifestações revolucionárias, ficando à posteridade o modo como cada uma deveria se comportar e agir politicamente; isto é, enquanto a esquerda ficaria a função de criticar e sugerir alternativas às estruturas vigentes no poder, a direita tomava para si o papel de efetuar a manutenção e a defesa dos interesses daquelas mesmas estruturas[653]. Além disso, no século XVIII, ao mesmo tempo em que se faziam críticas fervorosas sobre a religião e a monarquia que, aliás, viriam a se tornar ainda mais diretas nas obras de Marx e de Nietzsche no século XIX[654], aquele também seria um período fértil para se pensar a história e a constituição do tempo histórico[655].

Mas, evidentemente, não podemos perder de vista que entre 1789, que daria ensejo à formação de um novo regime de historicidade, e 1989, quando se passou a questioná-lo mais incisivamente, ao mesmo tempo em que se definia um regime de historicidade presentista, teríamos outras conjunturas importantes, como a que culminou com a crise de 1929, ou a que se situou entre 1939 e 1945, com a Segunda Guerra Mundial. No primeiro caso, como nos indica Hobsbawm[656], ao contrário do que muitos supõem, a crise de 1929 que começou com pequenas variações no câmbio, por meio de especulações nas bolsas de valores, especialmente a de Nova York, acabou por fazer com que a economia mundial tivesse que ser totalmente repensada. Quase que programaticamente, o Movimento dos Annales lançaria o primeiro número de sua revista nesse mesmo ano, compartilhando com os estudiosos do período a importância das relações entre História e Ciências Sociais, de pensar os processos históricos numa dialética entre a curta e a longa duração, e, nesse aspecto, como a história econômica e social poderia ser eficaz para pensar o mundo contemporâneo e inquirir o passado. No segundo, quando o movimento começaria a consolidar certa hegemonia na história da historiografia internacional, Braudel igualmente começaria a esboçar sua compreensão da história, numa dialética de temporalidades, como prisioneiro de guerra.