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O estudo dos tempos em gestação

As grandes catástrofes (fala das guerras mundiais) não são seguramente as anunciadoras infalíveis das revoluções reais, e constituem sempre uma intimação a ter que pensar, ou melhor, repensar o universo [...]. Todas as Ciências Sociais, inclusive a História, evoluíram semelhantemente, de maneira menos espetacular, mas não menos decisiva. Um novo mundo, por que não uma nova história? [...] Assim não mais cremos na explicação da história por este ou aquele fator dominante. Não há uma história unilateral. Não a dominam exclusivamente, nem o conflito das raças cujos choques ou acordo teriam determinado todo o passado dos homens; nem os poderosos ritmos econômicos, fatores de progresso ou de ruína; nem as constantes tensões sociais; nem esse espiritualismo de Ranke pelo qual se sublinham, para ele, o indivíduo e a vasta história geral. [...] O homem é complexo de outro modo[657].

De que maneira Braudel passou a inquirir os tempos da história? Como concebeu um tempo curto, do acontecimento, um tempo médio, das conjunturas, e um tempo longo, das estruturas? Como essa arquitetura interpretativa foi gestada e como se alterou ao longo da trajetória do autor?

As indagações que nos servem de baliza são importantes para pensarmos a trajetória de Braudel, ainda mais tendo em vista que sua experiência profissional foi ampla e diversificada, passando por diversas universidades, países e conjunturas. Contudo, todo esse itinerário começa num pequeno

vilarejo no sul da França, entre Champagne e Barrois, que no início do século passado contava com pouco mais de uma centena de habitantes, e onde Braudel, nascido em 1902, passaria seus primeiros sete anos de vida, especialmente na companhia de seus avôs (momento, aliás, que o marcaria por toda sua vida, inclusive, comparando-a com a de Lucien Febvre, que, como ele, também teve uma experiência pelos campos do sul da França)[658]. Com nove anos de idade sua família mudaria para Paris, e lá Braudel faria sua formação entre os anos de 1910 e meados de 1920[659].

Como professor lecionou inicialmente em escolas secundárias em Paris, e por duas vezes esteve em universidades da Argélia (primeiro em Constantina e depois em Argel, locais onde conheceu o Mar Mediterrâneo, e iniciou sua pesquisa que só seria concluída nos anos de 1940), sendo um dos períodos de outubro de 1926 a 1932, com um interregno entre 1925 e 1926 para o serviço militar obrigatório, prestado na Alemanha[660]. Nesse período casou-se com Paulette Braudel. Apesar da importância desse momento para sua trajetória profissional, Braudel destacaria que um momento ainda mais marcante durante os anos de 1930 foi justamente sua estada no Brasil, entre 1935 e 1937, para lecionar no Curso de Geografia e História da recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.

Tende-se, normalmente, a diferenciar certos momentos na trajetória de Fernand Braudel, os quais seriam fundamentais para a composição de sua obra. Não queremos aqui negar a estratégia utilizada por alguns comentadores para fundamentar a interpretação que fizeram da obra desse autor, nem tampouco definir uma outra fase em sua produção, mas tão somente demonstrar a importância desses diferentes contextos para a definição de seus objetos, de suas pesquisas e de suas análises. Note-se que ainda não existe um consenso relativo nas interpretações, mas agrupando parte das principais pesquisas podemos identificar, ainda que não de forma sistemática: a) uma fase de percepção do mundo rural francês, de 1902 a 1908, em que as circunstâncias poderiam ter lhe deixado a lembrança dos modos de vida rural e urbano de seu cotidiano[661]; b) uma fase de formação escolar, de 1909 a 1925, na qual houve uma expansão nas perspectivas de apreensão do social, e em que a projeção do tempo e do espaço vão se definindo e o aproximando da história e da geografia[662]; c) uma fase de intercâmbios culturais, por meio de sua experiência como professor-visitante, entre 1926 e 1937, em diferentes países, como a Argélia e o Brasil, onde capta a pluralidade de tempos que envolviam cada um daqueles espaços sociais[663]; d) uma fase de encontro com a história e a geografia, a partir da sistematização de suas pesquisas sobre o mundo e o Mar Mediterrâneo, no período de 1938 a 1948[664]; e) a fase dos debates e do desenvolvimento dos “projetos políticos” e “intelectuais” do autor, de 1949 a 1968, à frente do grupo Annales e de outras instituições universitárias na França[665]; f) e, por fim, uma fase de revisão da formação pessoal, e das críticas à sua obra, entre 1969 e 1985, que perpassou pelo restante de sua vida[666]. Para Carlos Antônio Aguirre Rojas[667], por exemplo, a trajetória intelectual de Braudel seria marcada por diferentes fases. A primeira corresponderia aos “elementos formativos” e iria de 1902 a 1927, quando o biografado, que foi um homem de fronteira, obteve a sua formação escolar com uma infância camponesa e uma adolescência parisiense. A segunda, entre os anos de 1927 e 1937, quando o biografado esteve lecionando na Argélia e, depois, no Brasil. A terceira perpassaria de 1937 a 1949, e circunscreveria o período de retorno à França, aos anos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em que esteve

como prisioneiro de guerra, e, depois, a defesa (1947) e a publicação (1949) de sua tese O

Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II. A quarta fase se estenderia de 1949

até 1963, quando escreveu diversos artigos metodológicos e ocupou as principais posições institucionais das universidades francesas e da revista Annales. O quinto período, descrito pelo autor, estender-se-ia de 1963 a 1979, época em que se ocupou de sua segunda grande obra, que foi

Civilização material, economia e capitalismo. Por fim, estariam os anos de 1979 a 1985, com seu

projeto inacabado de escrever uma história da França e a escrita de seus últimos artigos. Os textos de Aguirre Rojas[668] são uma bela contribuição para a compreensão da trajetória intelectual de Fernand Braudel, ainda que não se dedique com mais afinco às disputas pelo poder travadas entre o biografado e Claude Lévi-Strauss, primeiro no Brasil e depois na França, e em fins dos anos de 1950, após a morte de Lucien Febvre, com Robert Mandrou, em função da disputa entre ambos pela direção da revista Annales. Ou mesmo os debates do autor com letrados brasileiros nos anos de 1930, como Afonso de Taunay e Alfredo Ellis Jr. (naquele momento, ainda preocupados com o estudo dos grandes homens), em que Braudel já apresentava novos caminhos para a escrita da história, pautando-se nas contribuições de H. Pirrene, L. Febvre e M. Bloch[669]. Evidentemente, a esquematização que se apresentou é meramente didática. Ela não forma um todo estático, porque foram dinâmicas as etapas de formação e a trajetória intelectual de Fernand Braudel, algumas vezes até se cruzando uma fase com a outra. Por outro lado, os períodos foram mais complexos do que se apresenta à primeira vista[670]. Embora a trajetória intelectual de Fernand Braudel houvesse sido muito estudada, há ainda poucas pesquisas sobre o período em que esteve no Brasil e os possíveis diálogos que manteve[671], como ressaltamos há pouco.

O percurso de Braudel pelo Curso de Geografia e História seria marcante para alunos (futuros professores do curso), que o colocariam como o inaugurador de uma forma nova de ensino e pesquisa no campo dos estudos históricos no país[672]. Até para Braudel aquele seria o momento em que passaria a questionar com maior propriedade a historiografia oitocentista, então ainda hegemônica em Paris, especialmente na Sorbonne. Como indicaria muitos anos depois, no prefácio ao seu livro O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II (fruto de sua tese defendida em 1946), quando iniciou a pesquisa que daria suporte a sua tese nos anos de 1920, esta foi “adaptando a forma, clássica e certamente mais prudente”, em função do tipo de exigências cobradas pelas universidades francesas daqueles anos de 1920 e 1930; mas, ao longo dos anos de 1930 e 1940, certamente aquela forma clássica seria totalmente repensada, dando base à composição de uma análise na qual os diferentes fluxos temporais formariam a estrutura de sua interpretação do Mediterrâneo na época de Felipe II; e tendo em vista as longas permanências geográficas que perfaziam as estruturas do mundo mediterrâneo, as conjunturas econômicas e as mudanças rápidas das decisões políticas e diplomáticas[673]. Para ele:

A tentativa de encarar a história do Mediterrâneo na sua complexa globalidade impunha que seguisse a senda desses pioneiros, e, aproveitando a sua experiência (de M. Bloch, L. Febvre, H. Pirenne, E. Labrousse etc.), militar com eles por uma nova forma de história, repensada e elaborada por nós, mas capaz de transpor as nossas fronteiras; uma história consciente das suas tarefas e responsabilidades, e também desejosa, porque obrigada a romper com elas, de pôr termo às formas antigas, ainda que nem sempre com total justiça! [...] E a ocasião era boa, pois tratava-se de estudar uma personagem fora de série, aproveitando-lhe a complexidade, dificuldade, armadilhas e vigor para tentar fazer uma história distante da que os nossos mestres ensinavam [...][674].

Durante o período em que esteve no Brasil, portanto, pelo menos três pontos são importantes para nossa análise. Primeiro, durante o final dos anos de 1920 e no início de 1930, especialmente durante o período de 1929 a 1932, em função das mudanças bruscas na economia e na política vividas no país, estas instigaram muitos letrados do período a pensarem a história do Brasil e as categorias: passado, presente e futuro. Segundo, como o próprio Braudel salientaria, foi no Brasil que ele teve a real dimensão dos diferentes fluxos temporais, onde ao mesmo tempo havia um sudeste vivenciando um tempo rápido e de acelerações constantes com o processo de industrialização, especialmente o que ocorria em São Paulo; ao passo que no Nordeste ainda se sentia facilmente as raízes de um passado ainda presente, no qual as mudanças se faziam de forma bem mais lenta e inconstante[675]. Terceiro, durante esse período o autor iniciou amizades com muitos alunos e letrados de São Paulo e do Rio de Janeiro, e, em alguns casos, mantendo uma correspondência regular com eles ao longo de sua vida.

A importância desse ponto está justamente em evidenciar o perfil das relações sociais que Braudel foi construindo em sua trajetória, especialmente durante os anos de 1950 e 1960, quando esteve à frente do Movimento Annales. Mas, antes de avançarmos nesse ponto, é preciso detalhar melhor seu período no Brasil. E então poderíamos acrescentar um quarto ponto importante: foi aqui e não na França, embora de forma indireta, que começaram os debates entre Braudel e Lévi-Strauss[676], e que marcariam a historiografia francesa nos anos de 1950. Além disso, tal como indica, foi sua estadia no Brasil que lhe “permitiu chegar a uma certa concepção de história que eu não teria se tivesse ficado sempre próximo ao Mediterrâneo”, pois foi no Brasil que todos “os problemas se colocaram de outra perspectiva: a elite, a classe inteligente, a luta de classes [...]”[677].

Assim, instado pelo contexto e pelas peculiaridades dos debates dos letrados no Brasil, Braudel viria a escrever cinco textos durante sua permanência no país. O primeiro, “Cartografia do mundo atual”, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 19 de maio de 1935, Braudel sugere uma indagação interessante: “Já observaram como aqui os intercâmbios intelectuais descrevem grandes círculos e nos fazem viajar pela Terra inteira?” No segundo, “Anatole France e a história”, igualmente publicado em O Estado de S. Paulo, entre 10 e 17 de novembro de 1935, ele indica que seu “mestre Maurice Holleaux, professor de História Grega na Sorbonne, membro do instituto, e um dos homens mais finos e inteligentes que me foi dado conhecer, comprazia-se em dizer: ‘o maior historiador? Ora, Anatole France, naturalmente!’”, justamente para depois enfatizar os méritos do Movimento Annales, já que:

Hoje menos do que nunca, sem dúvida, pois isso seria desconhecer um movimento que renova em profundidade a disciplina histórica – que France conheceu tão estreita ainda e tão arcaica – e a transforma na mais jovem, rica e vasta das ciências sociais da atualidade. A escola nova ( Annales), que luta nesse momento pela renovação, já não estuda apenas os aspectos espirituais e políticos das sociedades desaparecidas, mas ainda seus alicerces materiais ou corporais. Para bem apreender essas bases sólidas do passado, historiadores há que não hesitaram em assimilar os métodos e pontos de vista das ciências sociais, afins, nascidas ontem, em apoiar suas pesquisas sobre conhecimentos profundos da economia política ou, mesmo, da matemática financeira[678].

Apesar de Marc Bloch e Lucien Febvre estarem aqui como os propiciadores do ar renovador, eles não são indicados nominalmente por Braudel nesse texto. No terceiro, “Henri Pirenne”, publicado também em O Estado de S. Paulo, em 24 de novembro de 1935, onde faz uma justa homenagem a este historiador, Braudel o colocaria como o inspirador desse grande movimento renovador dos estudos históricos nas primeiras décadas do século passado. No quarto, “Conceito de país novo”, publicado

no periódico Filosofia, Ciências e Letras da FFCL/USP, em 1936, ele retoma seus apontamentos sobre o Brasil e a América Latina. Mas será em seu quinto texto, O ensino de história e suas

diretrizes, relatório da cadeira de História das Civilizações do Curso de Geografia e História da

FFCL/USP, escrito no final de 1935, que ele irá se posicionar de maneira contundente sobre a escrita da história, tendo como ponto de partida justamente a obra de Pirenne. Apesar de extenso, o texto abaixo citado descreve de que maneira Braudel estava pensando a questão em meados dos anos de 1930, pois:

O historiador não sente todos os dias necessidade de definir a sua disciplina, a sua exata posição no campo geral da vida intelectual: outros se encarregam disso, não o fazendo sempre de bôa fé, ou, o que é a mesma cousa, com competência [...]. Só as ciências sociais, nascidas ontem ou que vão nascer amanhã, é que se procuram definir [...]. No caso delas trata-se da justificação espiritual do seu nascimento; querem viver e é preciso que excluam as outras das suas novas possessões [...]. Não receberam essas ciências, como a História, esta herança secular, êste império, estas colônias, tôdas essas riquezas que tendem menos à ação que à tranqüilidade das velhas potências [...]. Entretanto, simples seria definir qual a finalidade da história, tal como ela se afirma neste acervo de centenas de obras essenciais, aparecidas principalmente no curso dos últimos trinta anos, nas obras de um Henri Pirenne, por exemplo, para não citar senão um grande mestre e dos que já não vivem. A história é a mais antiga das ciências sociais, não a única, como bem se póde pensar. É a impotência do nosso espírito e não a dificuldade do objeto – que todavia tem a sua importância – que nos obriga a fragmentar a realidade. A cada ciência social pertence sòmente um fragmento de um espêlho partido em mil pedaços. Existe, mas muito além das nossas possibilidades, êsse êspelho intacto em que a sociedade reflete a sua imagem móvel e total. Esta sociedade, objeto das nossas pesquisas, a economia política a estuda nas suas condições de vida material, a estatística sob o signo do número, a geografia no espaço, o direito sob o prisma das obrigações contratuais, a sociologia no seu mecanismo, a etnografia e a etnologia nas suas formas ainda balbuciantes [...]. A História, na sua realidade de ontem [...]. O historiador acrescenta assim à sua tarefa mais uma dificuldade. Os outros trabalham sôbre o que é vivo, o que se vê, o que se mede; o historiador sôbre o que já não existe [...] e aí, embora lhe faltem dados, é a totalidade da vida social que êle procura e recompõe, sem ter à sua disposição, nem o objeto nem o êspelho, um que já não existe, outro que não pertence a êste mundo [...]. Mas é para nós mesmos que trabalhamos, para atingir o nosso fim: a reconstrução das imagens do passado, a ressurreição das sociedades de outrora[679].

Foi com esses preceitos que Braudel instruiria as primeiras turmas de alunos do Curso de Geografia e História da FFCL/USP, e que veriam nele o inaugurador da moderna pesquisa histórica na universidade brasileira. Fato marcante, que não se explicaria apenas porque Braudel tenha se tornado o grande historiador do século passado, mas também por ter feito na universidade, durante o período em que esteve à frente da cadeira de História das Civilizações, laços de amizade duradouros, com alunos e professores, a exemplo de Eurípides Simões de Paula, Alice Piffer Canabrava, Eduardo d’Oliveira França e Branca da Cunha Caldeira, com os quais manteve uma considerável correspondência ao longo de sua vida profissional. Não há aqui a possibilidade de detalhar toda a correspondência mantida entre eles. No entanto, vale destacar duas dessas cartas. Uma de Fernand Braudel enviada a Eurípides Simões de Paula, em fevereiro de 1938, na qual recomendava o Professor Jean Gajé para assumir o seu lugar na universidade, e solicitava de Eurípides o envio de notícias sobre a universidade e sobre Eduardo França, e dando notícias de Branca Caldeira, que se encontrava na França[680]. A outra de Eurípides a sua primeira esposa Isabel, em 25 de fevereiro de 1945, na qual dava notícias sobre a guerra, e recomendava que pendurasse o seu retrato ao lado do de Braudel e do de Gajé, que se encontravam em seu escritório[681].

Braudel também teve a preocupação de conhecer o país e quem estava refletindo sobre ele no período. Daí justificar seu empenho em ir da obra dos modernistas de São Paulo à de Gilberto Freyre, de Caio Prado Jr. a Sérgio Buarque de Holanda. E com esse último manteria até certa