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Naquela quadra, na confluência dos séculos XIX e XX, Febvre se manteve em contato direto com o polêmico Caso Dreyfus e respirou o ar de renovação intelectual que provinha da crescente ascendência da Sociologia de Émile Durkheim e da Geografia de Vidal de La Blache. A essas influências somava-se um dilema: o então jovem universitário hesitava entre prosseguir com os estudos históricos ou dedicar-se à Literatura. Para Wallace Kirsop, esse período de formação eclética, somado ao temperamento pessoal, levaria Febvre para o caminho dos estudos interdisciplinares[373]. O encontro decisivo para a definição dos rumos posteriores da carreira de Febvre seria aquele com Henri Berr, autor que, nos primeiros anos do século XX, mais longe levava o projeto de uma síntese entre as Ciências Humanas. De fato, Henry Berr exerceu reconhecida influência sobre o pensamento do então jovem historiador. As páginas da Revue de Synthèse

Historique, lançada em 1900 e dirigida por Berr, representaram, nas palavras de Febvre, o “Cavalo

de Troia da Nova História”[374], “uma insurreição contra tudo que quebra, separa, corta e isola o espírito humano. Ela foi uma reunião de homens ativos, vivos, conquistadores, um ‘centro de pesquisas’ no sentido mais estrito do termo, um foyer, que aqueceu a todos que precisavam de apoio”[375]. Na construção do seu pensamento, Febvre foi herdeiro de especialistas de diversos outros campos. Segundo a avaliação de Fernand Braudel,

Autêntico leitor de Vidal de La Blache, (Febvre) ficou toda a sua vida tanto geógrafo quanto historiador. Leitor entusiasta de Année Sociologique, como Marc Bloch, assimilou muito cedo o pensamento avassalador de Durkheim e de Lévy-Bruhl e ainda os pensamentos irmãos de Halbwachs, Marcel Mauss e François Simiand. Mas, tranquilizai-vos, também foi um leitor fervoroso de Marx, de Max Weber e de Sombart, sobretudo de Marx, o que nem todos lhe perdoarão. Atento aos estudos, inquéritos e missões dos etnógrafos, saudou com entusiasmo anteontem as teses de Leenhardt, ontem os magníficos livros de Lévi-Strauss. Membro da Comissão de Direção dos Cahiers Internacionaux de Sociologie desde a sua fundação, deu a esta revista o patrocínio da VI Seção da Escola Prática de Altos Estudos. Apaixonado da história da arte, saboreou ao mesmo tempo as audácias de um Francastel e a clássica soberania de um Emile Mâle. Neste domínio, ainda mais, se possível ele procurava as fontes. Vi-o correr ao Louvre, entre duas entrevistas, para ali rever um quadro. Historiador de eleição da vida religiosa, o foi também da vida científica e das técnicas[376].

Essas influências foram decisivas para os desdobramentos posteriores do pensamento de Febvre, bem como para os rumos temáticos e conceituais da revista Annales. Contudo, no que pese suas propensões interdisciplinares, Febvre não deixaria de produzir, em 1930, uma longa crítica a François Simiand. Sem negar os avanços que a Sociologia produziu, ao rejeitar as abordagens individualistas em prol dos estudos pautados por fenômenos coletivos, o historiador francês se perguntava: “Historiadores, que nos resta? Resultados a utilizar tais quais? Processos de investigação a transportar do presente para o passado, sem modificação, ou pelo menos com a preocupação de os modificar o menos possível? Evidentemente que não”[377]. Para Jacques Revel as palavras de Febvre eram sinais claros “da impaciência de um historiador que reivindicava a especificidade da sua abordagem e a necessidade de uma dimensão histórica em toda a reflexão acerca dos objetos sociais”[378]. Acrescentamos: sinais também de um espírito crítico que não se deixava domesticar pelas influências recebidas, que desconfiava profundamente daqueles “historiadores historizantes” que teimavam em falar em nome da história do alto de suas cátedras na Sorbonne.

Mas, afinal, o que constitui um clássico da historiografia? Quais as realizações dignas para uma elevação a alturas tão prestigiosas? A resposta a tais indagações costuma requerer alongamentos desencorajadores. Tentaremos um esforço de simplificação, no intuito de manter este texto nos

parâmetros traçados para definir o perfil didático deste livro, não avançando além do propósito de ser uma discussão introdutória ao pensamento histórico de figuras emblemáticas da historiografia contemporânea. Em nossa maneira de perceber a questão proposta, para fruir a dignidade de autor clássico, um historiador deve preencher ao menos uma de três condições: ter oferecido uma visão suficientemente “forte” de uma dada época histórica, a ponto de torná-la referencial em seu campo de estudos; ter gerado por tempo considerável uma sucessão de discussões em torno de seu estudo; ter concebido instrumentos de análises responsáveis por inovações conceituais em seu terreno de especialidade. Ao que nos parece, Febvre excedeu-se um pouco na última dessas condições, sendo, entretanto, notório nos três aspectos. Como historiador-filosófico, ou seja, na qualidade de inventor de categorias de análise, ou ao menos como o mentor reconhecido pela utilização eficaz destas, ressalta-se em sua obra conceitos instrumentais relevantes como, por exemplo, “utensilagem mental” e “psicologia histórica”. O primeiro conceito nasceu mesmo da imaginação criadora de Febvre, que o tirou de um marco zero e lhe atribuiu os sentidos conhecidos. Já a noção de “psicologia histórica” estava disponível no léxico das Ciências Sociais desde os fins do século XIX ou inícios do século XX. Ambos os conceitos são recorrentes e decisivos em suas análises das sociedades europeias da Época Moderna, sobretudo as do século de Lutero e de Rabelais.