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Os combates contra os vícios da historiografia positivista – em especial a visão acanhada acerca do documento histórico e o predomínio das ações singulares sobre as coletivas, assim como do acontecimento sobre as dimensões conjuntural e estrutural – condenavam o elemento político como síntese dos males a serem enfrentados. Paradoxalmente, os comentadores da obra de Febvre pouco exploraram a dimensão política da obra e da trajetória do historiador francês. E, nesse aspecto, não foram menores ou menos ruidosos os combates em que se envolveu. Um desses casos estava ligado ao patriotismo que o animava. Febvre era um francês, e um francês nacionalista. Como não detectar esse pendor patriótico nas duras críticas que fazia à filosofia alemã da história? Entre os homens ilustres por ele estudados também estavam aqueles que “honram a França”. Admirava Descartes por ter colocado os franceses no caminho da liberdade e, portanto, contra o irracionalismo. Assim sendo, a tragédia do século XX só poderia ter sido produzida pela nação que desprezava esse grande herói filosófico francês, para exaltar a vontade de ação negadora da razão, aproximando-se do primitivismo. Esse humanismo – que Febvre não deixara jamais de reconhecer em Lutero – era o espírito que deveria ser propagado por todos os historiadores, mas que também era um dever nacional francês. No cenário do segundo pós-guerra, o mundo clamava pelo ressurgimento do entusiasmo que animara os primeiros Annales. A tal missão ninguém poderia permanecer indiferente:

os deixássemos respirar? O tempo suficiente para que cada um varresse a frente da própria casa? Trata-se mesmo disso. O mundo os empurra, o mundo sopra em seu rosto seu bafejo febril. Não, não os deixaremos tranquilos. [...] O mundo de ontem está acabado. Para todo o sempre. Caso tenhamos a chance de nos safar, nós, os franceses, será compreendendo, mais depressa e melhor do que os outros, essa verdade evidente[410].

Era, portanto, por intermédio da história – e da história feita segundo o modelo francês – que seria possível a recuperação após a ruína da ocupação nazista. Febvre, de certa forma, retomava o velho tema da crise. Em 1941, em sua conhecida conferência aos alunos da École Normale Supérieure, intitulada Viver a história, recordava que o conhecimento histórico no início do século XX repousava na certeza de haver domesticado o controle metódico dos fatos do passado e na consolidação de sua posição acadêmica institucional. Esse conhecimento histórico à moda antiga desconhecia, por outro lado, os avanços notáveis verificados em outros campos, tais como a Psicologia, a Sociologia e a Geografia humana. A história tradicional mantinha-se fiel ao princípio de que sua função preponderante era restituir, no presente, a literalidade do passado pelo emprego das fontes oficiais e escritas. O historiador não se cansava de ser o sacerdote do culto aos fatos. Dada a realçar acontecimentos de relevo, perseguidos com a pretensão de objetividade própria das Ciências Exatas, além de alheia a hipóteses preparatórias, bem como desatualizada quanto aos progressos de outros campos do conhecimento, essa história só poderia despertar o desprezo e a rejeição das inteligências mais promissoras. Ela, em suma, estava em uma crise cujo enfrentamento obrigava os historiadores a redimensionar as formas de aproximação com as demais Ciências Humanas, reivindicando a interdisciplinaridade como um dos pilares do seu ofício. Não mais o empréstimo acrítico de conceitos de outras áreas, mas “a consciência clara dos laços, quer ela o saiba ou não, quer ela o queira ou não, (que) ligam a História às disciplinas que a rodeiam”[411]. Sem perder a unidade do social, a interdisciplinaridade deve diluir fronteiras, realizar comparações, revelar com amplitude de vistas o que um campo do conhecimento, isoladamente, não foi capaz de enxergar.

O que a crise da história trazia escondida atrás de suas manifestações mais visíveis era uma crise do espírito humano, sinal mais dramático de uma profunda mudança nas formas pelas quais os cientistas se relacionavam com a ciência. Aqui Febvre faz menção ao impacto causado pela Teoria da Relatividade sobre noções secularmente estabelecidas e que pareciam oferecer confortáveis instrumentos de compreensão da realidade. Assim, a Física tinha constituído campos definidos, como a Acústica, a Mecânica, a Eletricidade e a Ótica, e que tiveram aplicações imediatas no mundo da produção técnica. Havia sido anunciada uma verdadeira revolução nas formas de conhecimento natural do mundo, revelação que era também alimentada, de maneira análoga, pelo avanço da Microbiologia. Em conjunto, essas transformações tornavam caducas as velhas concepções científicas deterministas. O que se mostrava aos homens era que

[...] toda uma concepção de mundo se desmoronava ao mesmo tempo, toda a construção elaborada por gerações de cientistas ao longo de séculos sucessivos, de uma representação abstrata, adequada e sintética do mundo. Os nossos conhecimentos ultrapassavam bruscamente a nossa razão. O concreto fazia estalar os quadros do abstrato. A tentativa de explicação do mundo pela mecânica newtoniana ou racional terminava num fracasso brutal. Era preciso substituir as antigas teorias por teorias novas. Era preciso rever todas as noções científicas sobre as quais se tinha vivido até então[412].

A magnitude dessas mudanças, capaz de desfazer as antigas certezas a respeito da caracterização e do papel da ciência, exigia, obviamente, uma rápida resposta dos historiadores. Eles prosseguiriam

acreditando nos velhos pressupostos, agora tão criticados e abalados? Continuariam os únicos a tê- los como verdadeiros? O que estava em disputa não era simplesmente a adequação da história aos novos princípios reivindicados pelos cientistas. Febvre lançava um apelo aos historiadores no exato momento em que o mundo experimentava o que ele chamava de “tragédia do progresso”, ou seja, o desmoronamento do mundo burguês, baseado na crença quase religiosa na razão e no aprimoramento das forças produtivas supostamente libertadoras do gênero humano. A proclamação da falência da velha ciência era acompanhada dos conflitos imperialistas pela partilha do mundo, ocasião em que as “massas se organizam e reclamam cada vez mais imperiosamente um nível de vida mais elevado”[413]. Essas massas se viam agora na dificuldade de devotarem sua mais nobre confiança aos imperativos do progresso científico, que agora se mostravam em estado de decomposição. Consideração lapidar de Febvre: “quando não há no limite do seu horizonte um fim maior a incitar os homens, os meios tornam-se para eles fins – e, de homens livres, transformam-se em escravos”[414].

As experiências de vida e as suas formas de representação historiográfica se encontravam em desajuste. A história, se quisesse se manter fiel ao seu princípio elementar de registrar as transformações, não poderia permanecer indiferente à ordem burguesa, que parecia entrar em colapso. As imagens de ruptura, de destruição, de escravidão e de ruína evocadas por Febvre são recursos narrativos investidos em prol de uma militância intelectual que nunca hesitou em apontar os adversários. Por outro lado, não deixam de merecer registro as referências às novas condições de existência humana, numa mirada em que o diálogo com as tendências mais críticas do capitalismo parece evidente. Febvre conclamou os futuros historiadores a continuar fazendo da história um encontro com a vida, com o mundo concreto dos problemas do presente. Estamos diante de uma inflexão, dizia. Em primeiro lugar, em relação aos propósitos originais da revista Annales, que se pretendia uma publicação aberta o suficiente para abrigar entre os seus leitores aqueles homens de finanças desejosos de compreender o mundo histórico em que viviam. Febvre, agora, não os poupava da responsabilidade pela crise. E, ainda mais importante, diante de outra inflexão em relação às próprias atitudes pessoais do historiador francês, no que diz respeito à missão civilizadora do capitalismo, especialmente em sua versão colonialista francesa. Em um artigo de 1932, elaborado por ocasião da exposição colonial francesa de 1931, e publicado na revista Annales, Febvre se propôs a extrair lições e ensinamentos, do ponto de vista científico, da aventura ultramarina[415]. Os objetos expostos na “feira colonial” fossilizavam essa política de dominação em quadros históricos estáticos. Em cada galeria a evocação das glórias do passado, mostradas com orgulho pelos Estados participantes. Eram as belas decorações pitorescas da história. Mas e os agentes? E os homens? E os capitais? Essas preocupações de Febvre evidenciam a sua crítica à concepção estritamente política, reflexo da velha história, que parecia guiar os objetivos da exposição. A reivindicação das massas, dos homens que trabalharam a terra e mesmo dos dados estatísticos e financeiros dos grandes bancos atestavam a força que a história econômica e social assumia durante os primeiros anos dos Annales. Eram esses atores e documentos que possibilitavam ao historiador tocar o cerne da questão colonial.