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Cristiano Arrais

Mefisto: O que apostas? Ainda o perderás Se permissão me deres

para, de mansinho, atraí-lo ao meu rumo! O Senhor: Enquanto ele a Terra habitar Isto será permitido.

O homem erra enquanto age [...] E, se dele te apossares,

Leva-o contigo para baixo –

E envergonha-te se tiveres de confessar: Um bom homem, nos seus mais turvos impulsos,

É bem consciente do caminho certo.

J.W. Goethe. Fausto.

Introdução

Há uma cena em O declínio do império americano, de Denys Arcand, lançado em 1986, em que o personagem Pierre, um professor de História de uma inominada universidade canadense, melancolicamente expõe a seu aluno os infortúnios e vicissitudes da carreira universitária, sentenciando categoricamente: “Sei que nunca serei um Arnold Toynbee ou um Fernand Braudel. O que me resta é o sexo ou o amor”. O nome do grande historiador francês Fernand Braudel está indiscutivelmente bem-colocado. Braudel é um dos maiores nomes do cenário historiográfico francês. Maior, talvez, do que o dos pais fundadores, Marc Bloch e Lucien Febvre, se levarmos em consideração a influência de suas obras e a força política de Annales, sob sua direção. A citação do nome do autor de O Mediterrâneo é, portanto, perfeitamente compreensível e justificável na medida em que consagra este historiador para além do ambiente acadêmico europeu e para além das próprias fronteiras intelectuais da Academia. Mas o que torna compreensível a menção a Arnold Toynbee, ao lado de Braudel?

A resposta para essa pergunta deve ser buscada, creio eu, na vitalidade e no forte impacto causado por A Study of History sobre o público, principalmente nos Estados Unidos, entre as décadas de 1950 e 1970. Desde a publicação de seu primeiro livro, Nationality in the War, de 1915, até a data de sua morte, em 1975, este historiador londrino, formado em Oxford, publicou mais de 40 livros autorais, descartados seus trabalhos coletivos e a intensa atividade como editor do mais importante periódico do campo das relações internacionais, Survey of International Affairs, entre 1920 e 1946. Sua Magnum opus, A Study of History[551], publicada em 12 volumes entre 1934 e 1961, conta com aproximadamente seis mil páginas. A obra foi um sucesso de vendas. Somente nos Estados Unidos o

lançada em 1947, vendeu outras trezentas mil cópias. No mesmo ano Toynbee foi capa da revista

Times, além de ter sido tema de inúmeros seminários e conferências não somente nos Estados

Unidos, mas também no Velho Continente.

A alta produtividade desse historiador britânico explica apenas em parte a sua popularidade. Arnold Toynbee teve participação ativa na vida pública britânica, principalmente entre as décadas de 1920 e 1950. No período anterior à guerra, colaborou com James Bryce para a produção de uma série de relatórios e estudos sobre os conflitos regionais na região dos Bálcãs e sobre a Primeira Guerra[552], além de ter participado como delegado na Conferência de Paz de Paris, em 1919.

Talvez em razão da forte impressão causada pelas ideias expostas nos primeiros volumes de seu

Study e de sua posição de editor da Survey o já experiente historiador britânico, em 1936, tenha sido

convidado pelo então chanceler alemão, Adolf Hitler, para uma entrevista particular, pouco antes da ocupação da Renânia pela Alemanha. A entrevista nunca chegou a ser publicada, mas causou forte impacto em Toynbee: “Na maioria do tempo meus olhos estavam seguindo as mãos de Hitler. Ele tinha mãos bonitas. Seus gestos eram eloquentes, bem como graciosos. Sua voz também era, inexplicavelmente para mim, agradavelmente humana em seu tom e cadência”[553]. O desejo de cooperação com a Inglaterra e as intenções pacíficas do governo alemão foram enfatizados no relatório que Toynbee foi encarregado de produzir para o governo britânico acerca daquele encontro. O historiador britânico saiu da entrevista “convencido da sua sinceridade de desejar a paz na Europa”[554].

O jovem Toynbee cresceu numa época de incertezas. Como lembra Arno Mayer, “a ideia de decadência era inseparável da de fin de siècle, que transmitia uma sensação de mal-estar psíquico e incerteza ideológica, uma mescla desigual de esperança e medo”[555]. Além disso, a revivescência do gótico e do neoclássico na arquitetura londrina, o domínio do mundo das artes pelo conservadorismo nativista da Academia Real de Artes e o modelo de ensino fortemente calcado nos padrões aristocráticos tornavam a atmosfera cultural inglesa do início do século XX fortemente conservadora. Segundo Mayer:

O ensino superior estava alinhado com as outras instituições hegemônicas e constituía um pilar sólido nos anciens régimes. Além de serem bastiões da alta cultura tradicional, as escolas superiores estavam encarregadas de mediar a adaptação da sociedade ao presente e o seu avanço para o futuro. No seu conjunto, porém, as escolas secundárias e as universidades eram menos as locomotivas do progresso que as regeneradoras e transmissoras da herança cultural pré-industrial e pré- burguesa que sustentava a ordem estabelecida[556].

Uma das principais missões desse ensino era inserir os filhos das famílias burguesas e de classe média dentro da antiga classe dominante em termos aceitáveis para esta última. Para isso, o domínio da cultura humanística era pré-requisito para a elevação de seu status. “Em Winchester na primeira metade do século XX ainda estávamos recebendo a educação humanista completa do Renascimento italiano do século XV”, lembra Toynbee[557]. Essa ênfase no estudo do grego e do latim era, na verdade, o procedimento padrão para os alunos das poucas escolas públicas existentes na Inglaterra. Nos currículos escolares do início do século, três quartos das disciplinas eram ocupados pelos estudos clássicos, sendo uma exigência para a entrada em “Oxbridge”, até as primeiras décadas do século XX, o domínio do grego, além do latim: “a concepção dominante era a de que apenas o estudo dos textos clássicos poderia fornecer a essa elite as normas e os modelos de ação heroica, serviço

público e perspectiva nobre”[558]. Nesse sentido, o ensino agia como uma espécie de critério recrutador para a inserção desses jovens oriundos da classe média inglesa nas elites locais, de modo a garantir a permanência de um modus operandi no interior da burocracia e da cultura oficial do Império Britânico.

O impacto da Grande Guerra sobre a geração de Toynbee foi decisivo para as mudanças ocorridas em sua trajetória pessoal e profissional. “Nossa falta de preparo psicológico tornou a violência do choque, quando veio, proporcionalmente maior”[559]. Ela marcou o colapso do modelo de civilização ocidental do século XIX, capitalista, liberal, burguesa, cientificista e eurocêntrica, sem que à época isso significasse o nascimento de outra. Esse impacto pode ser quantificado: calcula-se que somente os britânicos perderam por volta de meio milhão de jovens com menos de trinta anos,

notadamente entre suas classes altas cujos rapazes, destinados como gentlemen a serem os oficiais que davam o exemplo, marchavam para a batalha à frente de seus homens e em consequência eram ceifados primeiro. Um quarto dos alunos de Oxford e Cambridge com menos de 25 anos que serviam no exército britânico em 1914 [...] foi morto[560].

A lembrança dessa experiência-limite foi constantemente reforçada nos escritos de Toynbee. Sua dispensa não proposital implicou, segundo parece, um sentimento de dívida em relação àquela geração perdida no front. “A tragédia, a absurda crueldade e futilidade da vida humana – da qual fui poupado por estar doente na época, e não ter podido servir ao exército – tiveram um efeito duradouro sobre mim”, lembra Toynbee[561]. Essa dívida, sobretudo moral, para com os mortos, parece ter influenciado em múltiplos aspectos sua concepção de história, bem como fortalecido os compromissos políticos e principalmente religiosos observados ao longo do período de publicação de A Study of History. Daí por que parto da premissa de que a dinâmica interna dessa obra só pode ser compreendida por meio do vínculo biográfico que se insinua em sua filosofia da história. Essa ideia-força só poderá ser completamente desenvolvida, entretanto, em primeiro lugar, com a exposição dos aspectos centrais de sua filosofia da história, bem como das mudanças epistemológicas observadas ao longo da publicação dessa obra, e em segundo lugar, com o exame das principais críticas atribuídas a Toynbee, tanto no que compete à aproximação de sua filosofia da história de uma teodiceia quanto aos principais conceitos empregados na obra.