• Nenhum resultado encontrado

Muito embora no filme de Arcand a referência a Toynbee considere a relevância do autor do Study para o pensamento histórico ocidental, na esfera acadêmica sua filosofia da história angariou pouca credibilidade.

De modo geral sua concepção de história foi fortemente criticada pelo uso de mitos e metáforas com valor factual, por esconder um apriorismo filosófico tão forte quanto o de Spengler, pela fragilidade estrutural de seu argumento sobre o apogeu e decadência das civilizações; e, sobretudo, no que se refere aos últimos volumes do Study, pela ênfase à religião como a força regeneradora da civilização. Walter Kaufman chegou a afirmar, de modo pejorativo, que “o estrondoso sucesso de Toynbee está restrito aos Estados Unidos, onde a opinião pública é fortemente influenciada por semanários”[602]. Em tom jocoso, Lucien Febvre imputou-lhe a pecha de prestidigitador e inseriu a obra de Toynbee no círculo dos “Homens notáveis – poetas, romancistas, jornalistas, ensaístas – que, desviando em favor de Clio alguns momentos de uma vida dedicada a outros cultos, compreendem instantaneamente (pelo menos asseguram-no) o que os anos sucessivos de estudo não tornaram os historiadores capazes de perceber e exprimir”[603].

Desde a publicação dos primeiros volumes do Study, o panorama historiográfico britânico foi pouco receptivo. P. Geyl direcionou suas críticas ao que notava ser uma concepção estreita dos fenômenos históricos, na qual

lhes é inerente e incontestável o significado que lhes atribui no intuito de pôr em evidência a sua semelhança mútua (a semelhança pela qual pretende estabelecer a regra, a tendência ou lei). Concedo que essa comparação tenha, com as devidas reservas, a sua utilidade. [...] Mas, por outro lado, fácil é violar a história quando, para fins de comparação, destaca-se um fato histórico das circunstâncias particulares e insusceptíveis de repetição que lhes são próprias[604].

A defesa de que a proposta de Toynbee não é a de um historiador, mas a de um meta-historiador, e de que, portanto, sua declaração de que os fatos históricos lhes são caros não por eles mesmos, mas “como indícios de alguma coisa situada além deles, como indícios da natureza e significação do misterioso universo no qual todo ser humano desperta para a consciência”[605] é um poderoso arrazoado contra as críticas de Geyl. Mesmo assim, sua concepção de fato histórico sofre de uma fraqueza estrutural. Como notou Collingwood,

todo o seu esquema é realmente um esquema de compartimentos estanques detalhadamente organizados e rotulados, dentro dos quais os fatos históricos prontos podem ser inseridos. Tais esquemas, em si mesmos, não são defeituosos, mas acarretam sempre certos perigos, principalmente o perigo de esquecer que os fatos, assim compartimentalizados, têm de ser separados do seu contexto por meio de um ato de dissecação. Esse ato, tornado habitual, conduz a uma obsessão: ele se esquece de que o fato histórico, como realmente existe e como o historiador realmente o conhece, é sempre um processo no qual algo se transforma em outra coisa. Esse elemento do processo é a vida da história[606].

Além dessa estreiteza conceitual, sua abordagem sobre o processo histórico conduz a sérios questionamentos por parte de Collingwood. Muito embora Toynbee tenha produzido uma severa crítica à separação rígida entre civilizações, como aquelas apresentadas em A decadência do

Ocidente, seu procedimento não é fundamentalmente diferente daquele que critica, uma vez que a

noção de filiação-paternidade não estabelece uma relação interna que associa mudanças e continuidades entre civilizações. De modo mais claro, Toynbee sustenta que se uma civilização se

modifica, ela deixa de ser ela mesma. Isso nos habilita afirmar que Toynbee repudia a ideia de que uma civilização possa se transformar e, ao mesmo tempo, permanecer ela mesma. Nesse sentido, os “contatos” entre civilizações seriam tão somente externos. Essa noção também impõe, juntamente com seu conceito de civilização, uma noção de individualidade histórica que isola a vida humana da coletividade e encerra a cultura em seções, como se estivessem expostas in vitro e não pudessem ser compartilhadas. Nesse sentido, a noção de individualidade histórica é sacrificada em nome do interesse meramente classificatório. Em outras palavras, para Toynbee, o processo histórico está rigorosamente dividido em partes, contradizendo a noção de processo histórico e substituindo-a por uma espécie de justaposição classificatória.

O gosto em “botanizar” a história e em classificar os eventos históricos em gêneros e espécies revela, segundo o julgamento de Rodrigues, o tipo de concepção naturalista que atinge de morte os princípios gerais de seu método e da sua pesquisa[607]. Essa alusão é compartilhada por Collingwood, que percebeu a identidade existente entre o Study e os princípios metodológicos das ciências da natureza. Isso porque Toynbee procede como se fatos distintos pudessem ser isolados para determinar as relações externas entre eles, com o intuito de formar um só fato, “cujas relações com outros da mesma ordem se estabelecem segundo o mesmo princípio externo”[608].

Mesmo os termos utilizados por Toynbee, como “desintegração”, por exemplo, causaram desconforto aos historiadores na medida em que fortaleciam tal compartimentalização e definiam uma condição da experiência histórica que não era sentida pelos contemporâneos. Isso porque o caráter depreciativo desse processo anterior ao desaparecimento de uma civilização foi atribuído, a

posteriori, pelo próprio Toynbee. Do mesmo modo, o termo valora e hierarquiza o processo

histórico (as “fases” da vida de uma civilização são uma consequência dessa hierarquização), ao tomar a “unidade atribuída” (o desenvolvimento do caráter de cada civilização) como modelo (de beleza, de justiça etc.) e sua transgressão como depravação, degeneração, decadência, dentre outros. Como sabemos, o processo histórico deve ser interpretado para além dessas atribuições, já que todo declínio é também uma ascensão.

Somente a falta de conhecimento ou de simpatia do próprio historiador – em parte devido à mera ignorância, em parte devido às preocupações da sua vida prática – é que o impedem de ver este duplo caráter, ao mesmo tempo criador e destrutivo, de qualquer processo histórico, seja ele qual for[609].

Outra importante ponderação à filosofia da história de Toynbee deve ser feita ao desprezo com que trata o conceito de nação ao longo de sua obra. Ora, ao privilegiar o conceito de civilização, Toynbee toma este aglomerado de experiências coletivas como entidades naturais e não como “fragmentos cortados do imenso caudal da história, cortados, sem dúvida, segundo certos critérios objetivos, mas sempre sob um ponto de vista muito relativo e por isso mesmo discutível”, conforme lembrou Besselaar[610]. A mesma dificuldade é encontrada em sua lei de desafio e resposta, visto que o julgamento sobre o nível de dificuldade de um desafio imposto a uma civilização é calculado pelo próprio autor, sem que qualquer critério interno ao próprio evento seja disponibilizado para a verificação do leitor. Dessa forma, na medida em que Toynbee não identifica para o leitor os critérios adotados para calcular o valor de suas segmentações ou desafios, não convence o leitor a aceitar os motivos para optar por outras compartimentalizações – tais como o entendimento de Grécia e Roma como entidades distintas que, por uma contingência histórica, fundiram-se numa aparente unidade cultural. Em outras palavras, é um erro tomar o conceito de civilização como se

fosse uma unidade real. Os princípios explicativos que caracterizam sua unidade funcional, assim como sua tendência cultural (estética, religiosa ou científica) não podem ser comprovados no interior de suas articulações internas, o que torna evidente o caráter eletivo e apriorístico da estrutura explicativa de Toynbee. Ao mesmo tempo, seu desprezo pelo conceito de nação toma cores políticas explícitas quando julga, com indulgência, o imperialismo britânico face às lutas nacionalistas, principalmente na África[611]. Daí a lembrança de Brunet:

O horror que o Sr. Toynbee sente do nacionalismo não é inspirado apenas por motivos desinterassados e humanitários. Ele é inglês e europeu. Em ambos os casos, é difícil aprovar a revolta nacionalista das populações ainda submetidas à hegemonia das duas maiores potências coloniais e imperialistas dos tempos modernos, a França e a Inglaterra. O nacionalismo dos Boers, dos irlandeses, dos eslavos, dos árabes, dos chineses, hindus, finalmente rompeu, depois de uma geração, o velho equilíbrio que permitia à Europa Ocidental dominar o mundo para estabelecer a Pax Britanica aos quatro cantos do mundo[612].

As considerações mais enfáticas advieram da relação que Toynbee estabeleceu entre seu trabalho de historiador e filósofo da história e sua inclinação religiosa. A mais contundente crítica a essa aproximação foi feita, sem dúvida alguma, pelo historiador inglês Hugh Trevor-Roper. Em tom de ataque pessoal, Trevor-Roper direcionou suas energias para as cores fortemente religiosas dos últimos volumes do Study. Em especial ao volume X, no qual o autor recorre às suas experiências pessoais para explicar eventos, decisões e tendências históricas que, na forma de epifanias, posteriormente teriam sido comprovadas ao longo da sua obra. Segundo este crítico, Toynbee havia construído uma versão milenarista do curso da história. Sua obra teria, assim como as Escrituras judaico-cristãs, duas partes essenciais: os seis primeiros volumes, publicados nos anos de 1930, seriam o “Antigo Testamento”; os volumes posteriores, publicados em 1954, seriam o “Novo Testamento”. Não é sem propósito a metáfora, considerando que o primeiro volume da obra de Toynbee trata justamente da “Genesis”, não da espécie humana, mas das civilizações, e o último, o “Livro do Apocalipse”, lança luz sobre o propósito e o caráter de toda a obra.

O abismo epistemológico que separa os volumes publicados também foi percebido por Trevor- Roper. Segundo seu julgamento, esse abismo possuía uma relação imediata com a Segunda Guerra Mundial, pois esse acontecimento exigiu a revisão da tese geral que conduziu os primeiros volumes do Study, mesmo que o autor não tenha reconhecido tal exigência. O “Antigo Testamento”, notou Trevor-Roper, tinha um pedigree alemão, que incorporava uma visão determinista e catastrófica da história, alinhada às propostas de Hegel, Marx, Nietzsche e Spengler. Assim, com suas “certezas sombrias”, escreveu Trevor-Roper, Toynbee tornou-se inconscientemente um aliado intelectual de Hitler no mundo não nazista da época na medida em que pactuava com uma visão similar àquela que concedia à doutrina nazista o potencial de reconstrução da sociedade[613].

Muito embora as críticas de Trevor-Roper fossem extremamente ácidas, elas não são desprovidas de fundamento. Ao comparar o primeiro volume de Study com os últimos volumes publicados, o leitor terá a impressão de que, em algum momento, houve um corte. Esse corte expressa-se na transição de uma filosofia da história com fortes traços nomológicos para uma obra de filosofia moral. O exemplo mais claro dessa ênfase religiosa encontra-se na forma como Toynbee lida com a relação entre lei e liberdade. Ignorando de imediato toda a reflexão produzida, seja pela filosofia clássica, seja pela própria filosofia da história oitocentista, Toynbee observa que o homem não se submete apenas a uma lei (da natureza). Ele “vive sob duas leis, e uma delas é a Lei de Deus, que é a

própria liberdade, com um nome diferente e mais esclarecedor”[614]. Citando a Epístola de São Tiago como prova, Toynbee afirma que a perfeita lei da liberdade é também

uma lei de amor, pois a liberdade do homem pode empregar este dom divino para eleger livremente a vida e Deus, em lugar da morte e o mal, apenas se o homem, por sua vez, ama bastante a Deus para, respondendo a esse amor, transformar em sua a vontade de Deus [...]. “A história é [...] acima de qualquer coisa, um chamado, uma vocação, uma instância na qual os seres humanos têm que ouvir e à qual precisam responder; é, em suma, a interação entre Deus e o homem.” A lei e a liberdade na história demonstram ser idênticas no sentido em que a liberdade do homem é a lei de um Deus que se identifica com o Amor[615].

Nesse ponto, não é mais o historiador ou o filósofo da história quem fala, mas o moralista:

Porque se estuda História? A resposta pessoal do autor seria a de que um historiador, da mesma maneira que alguém que tenha a felicidade de cumprir uma missão na vida, encontrou sua vocação em um chamado de Deus para “sentir segundo Ele, e encontrá-lo”. Entre os inumeráveis pontos de vista, o do historiador é um caso único. Sua contribuição consiste em dar-nos uma visão da atividade criadora de Deus em movimento[616].

Não bastassem essas evidências, seu livro autobiográfico, Experiências, ultrapassa o limite do relato de seu mundo baseado em sua experiência de vida: torna-se um livro de pregações, como demonstram os títulos de seus capítulos: “Deus é amor”, “O amor não é onipotente”, “a imperfeição do universo”, “a imperfeição do homem”. Descreve também – assim como em diversas outras passagens dos últimos volumes do Study e de incontáveis passagens em outras obras publicadas ainda em vida – a sequência de sua preparação e “chamado” para a religião: seu nascimento, em 1889, “em um tempo de angústias que, por definição, era o paraíso de um historiador”, os arroubos místicos que lhe faziam sentir-se ligado a tudo o que havia acontecido e viria a ocorrer na história da humanidade; sua formação clássica, “inspirada no helenismo” e sustentada por quinze anos de estudo de latim e doze de grego, que lhe permitiram tornar-se imune ao chauvinismo cultural do período e se instrumentalizar para o mais importante de todos os eventos de sua vida:

Não poderia viver a experiência da deflagração da guerra em 1914 d.C. sem sentir que a deflagração da guerra em 431 a.C. havia brindado Tucídides com a mesma experiência. Quando pela primeira vez sentiu como suas as palavras e frases de Tucídides que antes haviam significado muito pouco ou nada para ele, o autor compreendeu que um livro escrito em outro mundo, dois mil e trezentos anos atrás, podia ser o depositário de experiências que, no próprio mundo do leitor, justamente começavam a sobrevir nessa geração. Havia uma sensação de que os acontecimentos de 1914 d.C. e 431 a.C. eram filosoficamente contemporâneos[617].

Essa démarche teleológica atinge diretamente a sua concepção de história porque distingue o caráter cíclico das civilizações da linearidade da formação e desenvolvimento das igrejas universais. Essas, portanto, não estão mais associadas a uma fase de desintegração de determinada civilização. Tornam-se, ao contrário, um aspecto justificador de toda a trajetória da civilização que lhe deu origem. Em outras palavras: existe um vínculo funcional entre ciclo de nascimento, desenvolvimento e desintegração de uma civilização e o surgimento das igrejas universais, já que a primeira só existe em função da segunda. Registre-se que tal raciocínio torna a história prisioneira da teologia e o passado servo da religião.

Finalmente, essa associação entre história e teologia e entre reflexão meta-histórica e vida individual parece fornecer uma importante chave interpretativa, tanto para An Study of History como para a própria concepção de história que dirigiu a vida acadêmica de Arnold Toynbee. Essa associação pode ser aludida com a pista fornecida pela referência inicial ao filme O declínio do

Império Americano: “Sei que nunca serei um Arnold Toynbee ou um Fernand Braudel. O que me

filme de Arcand. Essa sutil ironia introduzida pelo diretor conseguiu captar, não intencionalmente, a contradição fundamental que envolve a interpretação que Toynbee deu à sua filosofia da história face à sua trajetória pessoal – é a ênfase autobiográfica que, afinal, tinha pouca relevância nas obras de Braudel e de Toynbee. No primeiro, como demonstra de modo mais detido outro estudo inserido neste livro, justificada pelo desejo de uma história total e pelo horror ao acontecimento. No segundo, pelo sentido apostólico com que revestiu sua maior obra e sua vida. Essa Theologia historici foi fomentada pela interpretação biográfica do significado moral de sua época de crise, projetando o significado profundamente religioso de sua trajetória individual no sentido proposto para a humanidade.

É bem verdade que, em certas ocasiões, Toynbee tenha negado as intenções apostólicas de sua obra[618], muito embora Pieter Geyl e Louise Orr continuassem a lhe atribuir essa identidade, chegando a última a afirmar que Toynbee possuía um “agnosticismo profundamente religioso e se crê como o messias de uma nova fé, sincrética”[619]. Impossível negar é a evidente dependência que sua concepção de história passou a ter de sua visão religiosa: não é sem razão que seu Study finaliza com uma oração sincrética: “Cristo Tammuz, Cristo Adônis, Cristo Osíris, Cristo Balder, ouça-nos qualquer que seja o nome pelo qual o abençoemos por ter padecido a morte pela nossa salvação”, explicada por ele como “a voz de um historiador que acredita que, por meio da estrutura da história, Deus se revela, nebulosa e parcialmente, às pessoas que o procuram sinceramente”[620].