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No conto de Kafka, assim como Schmar chamou duas vezes o nome próprio do amigo antes de assassiná-lo, pois ali estava um amigo/inimigo, ele será duplamente chamado por

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BENJAMIN, Walter. "Rua de mão única" in Obras Escolhidas II, trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa, São Paulo: Brasiliense, 1987, p.43.

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Pallas, alguém que olhava a tudo do segundo andar, como se soubesse o que iria acontecer, mas nada pudesse fazer. Pallas está ali apenas para medir o assassino com o olhar e dizer "Schmar! Schmar! Vi tudo, não me escapou nada!"23. Aqui também o amigo, ao tentar deixar de ser amigo tornando-se um assassino, nada mais é do que um híbrido de amigo/inimigo.

Outra narrativa de bastante interesse neste tema é a de Édipo Rei.24 Édipo vem a ser o portador desse nome próprio que não pode ser revelado pelo adivinho Tirésias, e assim sendo, desse nome inominável, esse nome que não se pode dizer. Após pressionar Tirésias, a fim de salvar a Tebas, Édipo vem a tomar conhecimento de seu próprio nome como o do assassino de seu pai. Então, o acusa exclamando "Canalha, chamei-te de meu irmão, de meu amigo, mas que engano! És ao contrário o meu inimigo mortal!". Mas Tirésias fala a verdade, é o inimigo mortal que ainda merece o nome próprio de amigo, e Édipo não pode perceber que está diante de um amigo/inimigo, e deseja-lhe a morte25.

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KAFKA, Franz. "Um Fratricídio" in Um médico rural, trad. Modesto Carone, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 56.

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Ver: SÓFOCLES, "Édipo Rei" in O teatro Grego. Trad. e adap. Osmar Perazzo Lannes. São Paulo: Paumape, 1993.

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Um ano após a publicação do Antí-Édipo, por Deleuze e Guattari, Foucault demonstra sua atração pelo problema de Édipo numa das conferências do ciclo sobre a verdade e as formas jurídicas. (FOUCAULT, Michel. "Conferência 2" in A verdade e

as formas jurídicas, Rio de Janeiro: Nau, 2001.) Entretanto, por outro enfoque. [Em Michel Foucault tel que je l'imagine,

Blanchot diz: "[...] Et Foucault nous donne à inscrire dans notre mémoire cette sentence d'oracle: "La rationalité de l'abominable est un fait de l'histoire contemporaine. L'irrationnel n'en acquiert pas pour autant des droits imprescriptibles [...]" (BLANCHOT, Maurice. "Savoir, Pouvoir, Vérité?" in Michel Foucault tel que je l'imagine. Paris: Éditions Fata Morgana, 1986.)] Deleuze e Guattari almejavam mostrar que Édipo não é um segredo do inconsciente e sim um modo de coação usado pela Psicanálise na cura do desejo, uma forma ilusória de contenção, por assim dizer, do desejo, um instrumento de poder, de poder médico, psicanalítico. Foucault não meramente retoma isto, explicando o escape do estruturalismo, que, com os outros, é de igual modo operado, como parece acrescentar ainda uma questão, não menos crucial, a questão do saber. Isto estimula toda uma outra instância de análise, preocupada mais em desvendar as relações políticas de poder, do que em detectar a estrutura econômica. Aqui então, o intento lembra muito àquele de Espinoza para com a leitura hermenêutica dos textos sagrados: isso no sentido de ser um desafio interpretativo preocupado com as relações políticas de poder e discurso.(Ver: DELEUZE, Gilles. Espinoza e os Signos. Porto: Presses Universitaires de France, 1970). O tempo todo vemos a extrema preocupação foucaultina, ao desenrolar o novelo da sua proposta, na segunda conferência, para com as políticas do mundo judiciário grego que a tragédia de Édipo suportaria naquela época, as representações que Édipo Rei possui numa determinada instância de transição da Grécia Arcaica para a Grécia Clássica. / Pode-se vislumbrar o quanto Foucault parece partir do mesmo ensinamento contextual de Espinoza, quando ele interpreta procurando conhecer, por exemplo, em que sentido Sófocles foi uma carta decisiva na mesa que constituiu o jogo dos pilares da cultura ocidental até Nietzsche. (Ver: NIETZSCHE, Friedrich. "Dos preconceitos dos filósofos" in Além do Bem e do Mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. 2 ed, São Paulo: Cia das Letras, 1999.) Tal como Nietzsche, o filósofo nos convoca a retomar um outro baralho. Esta antiga mesa de jogos é precisamente a crença branca de nossa civilização de que o poder é cego, crença que perdura milenarmente, e que algumas fenomenologias marxistas ainda teimam sustentar. Nesse horizonte canônico, onde ainda havia um antagonismo que materializava o jogo, avistamos que de um lado acomoda-se o Saber, e do outro, o Poder. Este conflito de formas diz que o primeiro está solitário com o carteado da verdade pura, resplandecendo, em si, uma luz que se acumula, a beleza da verdade e da experiência. E, do outro, joga o adversário, mas este, está com cartas negras, pois o Poder é cego, usa tirânicas mangas, onde esconde seus dispositivos de vencer, seus truques infalíveis e tristes, está no pólo das capacidades macrofísicas, de apreciar o belo e jogar reprimindo-o, ou anulando-o ao embaralhar-lhe as máscaras, blefando sempre. / Eis o que interpreta, portanto, Foucault, nesta outra mesa de cartas: o modo de representação da peça de Sófocles, numa determinada época, na trama de duas metades de um jogo entre o saber e o poder. Este jogo foi sempre fundamental para o trabalho de Foucault, e possibilitou uma nova interpretação do poder que trabalhava sua relação sobre o corpo de maneira microfísca, vemos isso em "Vigiar e Punir", no tema do aceleramento da fabricação dos corpos dóceis, no séc. XVIII (3o parte: Disciplina). (FOUCAULT. Michel. Surveiller et punir: Naissance de

la prison. Paris: Gallimard. 1975). Em "A microfísica do poder", no capítulo "poder-corpo" (FOUCAULT. Michel. Microfísica do Poder. 14. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999, p.148). Foucault evidencia a importância de se entender que o

poder produz o saber e não apenas o impede. Ele está, então, nesta relação poder-saber, preocupado em estabelecer uma crítica ao exagero da noção de repressão para certos marxistas, como Marcuse. / Portanto, foi fundamental para o destino do texto, analisar a autocracia do tirano. Essa personagem era ao mesmo tempo, nos séculos VII e VI AC: homem vacilante, que passou por altos e baixos, e também o legislador justo, que salva a cidade. Édipo é a simbologia do tirano deste período, um

Há, enfim, um duplo sentido que convive no fratricida. Desconfiar do nome próprio do amigo, do leitor, é fugir em direção à própria fuga, é reescrever o acesso da amizade ainda. Por isso, quem sabe se está sublimando demais o caminho, beirando sua fantasmagoria, a sua sombra, apenas: topos inexato, almejado insistentemente, precipitado em seu sono, na forma de pistas, portanto atópico, soprado pela fala fugitiva da própria confusão da fuga. Para Blanchot: "toda palavra, então, é de fuga, precipita a fuga, ordena todas as coisas para a confusão da fuga, palavra que na verdade não fala, mas foge daquele que fala e o leva a fugir mais depressa do que está fugindo"26. Não será o nome próprio do amigo, igualmente duplicado como nome impróprio, como na narrativa de Kafka (o nome Wese)? Porque o desejo de cometer o fratricídio é a vã empreitada de apagar do mapa o nome do amigo, quando somente uma espécie de segundo nome do amigo, que eqüivale a uma sombra negativa do primeiro, é eliminada realmente. Um segundo nome próprio, o que corresponde

período onde possuía-se um saber para ocupar um poder, ou, em outras palavras, onde o desejo do poder é a própria justiça por ser, precisamente, a vontade do saber. / Procurando demonstrar como a tragédia de Édipo se dá mais ao nível coletivo do que individual, Foucault realizou um deslocamento, uma passagem desde a questão do desejo e do inconsciente, para poder estabilizar seu propósito num assunto que lhe interessava mais, uma complexidade poder/saber. Houve, então um abandono da questão clássica do desejo no mito de Édipo, para precisamente resgatar uma questão que ficara abandonada nas teias do passado. Isso é um outro modo de interpretação. Surge, neste outro modo de complexo de Édipo, a referência a outras peças, e um estudo exaustivo dos nomes e suas representações tais quais funcionavam na língua grega da época, o que formula um outro campo, uma outra dinâmica de interpretação da figura de Édipo. Estas outras peças são as peças duplas, de duas metades, na instigante montagem das metades que foi muito bem pescado no procedimento narrativo de Sófocles. Mas, o interessante é que tal transparência simbólica se assemelha muito, também, ao modo genealógico de Nietzsche, que ia ao sentido etimológico das palavras mesmo. Não era isso também que Espinoza, mais ou menos, requeria para com os textos sagrados? Quer dizer: um respeito, no momento da interpretação, para com o quê, especificamente, o hebraico bíblico podia ou não simbolizar, quê metáforas, quais limites possuía, quais "metades" poderiam-se encaixar e, principalmente, os usos da interpretação em paralelo com os abusos do poder. / Tudo isso aparenta ser tão perigoso e delicado para esses autores uma vez que eles notaram que o poder de interpretar é o poder de conferir sentidos. No sentido que, acima, associamos à Nietzsche, recordemos uma parte do texto onde Foucault aponta para um verbo que Édipo usava com freqüência (pag.47) que simultaneamente significava "ver" e "saber". Bem sabemos que o personagem se tornará, quando mendigo, um cego, tal como o adivinho Tirésias; mas quando era rei, ele ainda via, ou seja ele ainda sabia. Saber novamente une-se ao rei, ou melhor, ao poder. Isso é de todo interesse foucaultiano, pois sua concepção filosófica postula a emergência do conceito de sujeito, assim sendo, de um deslocamento do foco interpretativo para uma pulsação imaterial, institucional, dos meios e das falas. "(...) Foucault já esboça a concepção de uma filosofia política. Uma instituição comporta ela mesma enunciados, por exemplo, uma constituição, uma carta, contrato, inscrições, registros. Inversamente, os enunciados remetem a um meio institucional sem o qual os objetos surgidos nesses lugares do enunciado não poderiam ser formados, nem o sujeito que fala de tal lugar (...)" (DELEUZE, Gilles. "Um novo arquivista (Arqueologia do Saber)" in Foucault, São Paulo: Brasiliense, 1990, p.21.) Somente nas duas últimas páginas do texto é que se esclarece, finalmente, a trama da antinomia entre saber e poder atuada em todo o Ocidente. Só ali é que vamos encontrar a outra metade que completa o quadro da sua análise do mito de Édipo. Foucault precisou de todo um longo percurso para chegar em Nietzsche, nas últimas cinco linhas do texto. Temos duas peças de montar aí também. Se ele não definisse, enfim, o mito que ele acredita precisar ser liquidado, o texto ficaria injustificado. Não teríamos entendido a proposta, a aposta, desta outra jogada interpretativa sobre o Édipo Rei, este outro complexo. Entretanto, por outro lado, não seria possível que Foucault falasse o que dominou o Ocidente, e em que sentido do poder e do saber, sem a outra peça, a outra grande metade que foi a análise de Édipo, uma metade que se desdobrou em várias outras metades das metades, por exemplo, as metades dos personagens, dos nomes: servidores e escravos, Édipo e Jocasta, Apólo e Tirésias. Mas também as metades das metades da própria interpretação de Foucault: começando pelas duas metades, os sobrenomes próprios Deleuze e Guattari, e então, complexo individual e complexo coletivo; a inocência inapelável de Édipo e a tragédia do poder em Édipo; o homem do poder (do não-saber) e o personagem do tirano grego (saber-poder). Desde Deleuze e Guattari, até Nietzsche e Platão, temos, de igual modo, uma série complexa de peças delicadas que se encaixilham de metades que, por sua vez, se montam entre si como um micro-mosaico textual, o quebra-cabeças que vem a ser todo texto crítico, uma vez que está, igualmente, sujeito a uma interpretação. / Podemos notar que Foucault nos ensina, além dos assuntos que trata, uma questão de fundo: o que é interpretar? Este texto ensina, no final das contas, que interpretar não vem a ser apenas o gesto de montar o jogo das metades, conectar os pedaços. Tampouco o simples despedaçamento. Interpretar é a singular operação de, por meio da linguagem, ingressar como jogador mesmo na partida infinita das metades.

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ao nome próprio do inimigo também, um nome impróprio portanto, o nome daquele que pode não estar olhando para a mesma direção de quem escreve. O que Schmar, portanto, quereria justificar ao matar Wese, ao chamar duas vezes o seu nome, poderia ser de outro modo dito, por exemplo, assim: "te mato porque és o inimigo do amigo que você me é"... Essa expressão sustenta-se tal como a tentativa de desviar o leitor é nada mais que um encontrar-se com ele. O experimento de perverte-lo é, na verdade, verte-lo para nós mesmos, re-verte-lo à condição de nosso amigo.