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Em Fome (Sult), romance de maior sucesso de Hamsun, considerado como uma das primeiras manifestações da "literatura do absurdo"4, o herói alucinado, sem nenhuma utopia social ou estética, ou mesmo desejo de progresso, encontra-se vagabundeando, de bolsos vazios, exercitando exaustivamente um jogo melancólico contra si próprio, seu inimigo próprio, enlouquecido por todos os lugares, apenas tendo Deus como seu interlocutor indiferente. Ele grita por sua amada, o nome próprio inventado "Ilaiali", que não representa nada definido, apenas um nome próprio sem definição, sem beleza ou feiúra. Fantasma do desejo. Neste mundo pantópico, não há mais tabuleiros fixos para o exercício estético, parece que somos todos vagabundos de Knut Hamsun, chamando por "Ilaiali", jogadores perdidos num espaço giratório e não no antigo plano quadriculado em preto e branco dos jornais que nos apontavam os "bons" nomes, os bons lances da arte. Hamsun principía, deste modo, uma afetação mortal no espaço da biblioteca ou do museu (antigos lugares de estabilidade). As paredes desabaram, em certo sentido. Abandonamos os velhos salões brilhosos em cujo chão brilhavam as faces dos admiradores, cerraram-se os portais dos grandes cassinos da alegria ou tristeza, aqueles que distribuíam os prêmios justos... Estamos, agora mais que nunca, numa estranha saleta de xadrez, movendo sozinhos torres atrás de torres, numa lógica estriada

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Podemos afirmar que Hamsun foi um dos primeiros romancistas a trabalhar, de modo intenso e repetido, essa plasticidade mitológica do vagabundo como aquele que se insere numa busca atópica de um nome próprio utópico, o que é bem interessante. Ao mesmo tempo são românticos e desromantizados, transportam uma certa desesperança e orgulho nietzsheanos. Seus vagabundos não estão nesta situação marginal por alguma ordem de engajamento negado, alguma frustração política ou pessoal, apenas sustentam uma dada loucura que os leva a perambulamentos que resultam na narrativa. Um descompasso com o social realmente nietzscheano. [A título de complemento, vejamos que, no plano biográfico, é conhecido o peso da hermenêutica nietzscheana que o influenciou negativamente, junto a muitos alemães, a estar do lado do nazismo, durante a primeira grande guerra. "[...] Influencé par la lecture de Nietzsche, Hamsun est entraîne à défendre avec

acharnement la politique des Allemands durant la Première Guerre mondiale et devient, plus tard, propagandiste du nazisme

[...]" (Ver "Introdução" in HAMSUN, Knut, Rosa, Paris: Gallimard, 1980, p.1)]. No que diz respeito à plasticidade do vagabundo utópico e atópico, quem fará mais ou menos parecido, mais tarde, até mesmo um tanto quanto estilisticamente, será o romancista uruguaio Juan Carlos Onetti, ao criar seu paradigmático personagem Larsen - nome próprio escolhido de alguma língua nórdica, talvez o norueguês, uma vez que sabemos, curiosamente - por informação da viúva Dolly Onetti - que Onetti era assíduo leitor de Nietzsche e de Hamsun. Dado, também, que, no romance Um Vagabundo toca em Surdina, detectamos um personagem chamado "Lassen". (Ver: Um Vagabundo Toca em Surdina, trad. Raquel Bensliman, São Paulo: Livraria Martins, 1960, p.22.). Não seria seguro esse apontamento, mas, havendo ou não influência da leitura de Hamsun, em Onetti, podemos afirmar que o Larsen onettiano é um personagem panteísta, ou pantópico, "errante", de igual modo, bem parecido com os vagabundos de Hamsun.

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Esse dado consta na apresentação anônima do livro. Ver as primeiras páginas de: Fome, trad. Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Abril Cultural, 1985.

(tabuleiro), porém onde amizade e vitória convivem com seus respectivos opostos. Vitória derrotada, derrota vitoriosa. Amizade inimiga, inimizade amiga. O jogador nomeado e sem nome, paralisado e, ao mesmo tempo, em todos os lugares.

Fig. 21. Duchamp, contra uma parede, movendo a torre de xadrez

Mais do que isto, à decepção que vivemos na pele, sucede a fermentação monstruosa e convulsiva de um quase desprazer do privilégio estético. Seria um milagre se de súbito nos penetrasse, tão aguçadamente quanto nos velhos tempos, o desejo de um julgamento seguro, a presença de uma beleza palpável que nos esclarecesse intensamente. Ou então, ao menos, um sentido de feiúra que nos provocasse repulsa e arrependimento, quais o dos objetos deslocados, inocentes e hediondos, como para muitos ainda, por exemplo, o maligno portagarrafas.

Cualquier objeto, cualquier individuo, cualquier situación es hoy una especie de

ready-made virtual, en la medida en que de cualquiera de ellos podría decirse lo que

Duchamp dice de su portabotellas: 'Existe, yo lo encontré y eso es su único modo de existencia'5

A declaração do próprio Duchamp é um fragmento ontológico muito perturbador, pois mostra que não dispôs uma obra em certo lugar, ele a arremessou para o seu modo de ser, ele a encontrou. Quer dizer, algumas obras, como o portagarrafas, constituem-se na ironia de existências achadas. Segundo quais parâmetros, então, julgá-las? Como supor "achar" algo daquilo que por si mesmo já o é, justamente, achado? A priori, isto leva a colocarmo-nos numa postura mais horizontal com a produção, de co-participação, co-autoria, e, portanto,

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BAUDRILLARD, Jean. "La escritura Automática del Mundo" in La Ilusión y la Desilusión Estéticas, trad. Julieta Fombona, Caracas: Monte Ávila Editores Latinoamericana, 1998, p. 80.

subverter o mito canônico que nos conduz a um julgar sobre. (Imagem após o fato, visão anterior à imaginação). A experiência de apreensão estética da coisa (portagarrafas) equivale, para Duchamp, menos a uma mera operação tautológica e solipsista da leitura da obra (no rumo fugaz de uma topoanálise fenomenológica6), e mais a uma relação propositadamente ambivalente com a tradicional crença na superioridade da imagem.