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UM FERIMENTO SEM NOME

A questão do ferimento de Kafka e a superioridade escritural com que faz questão de demonstrar esse seu infeccioso ferimento provocado pelo pai, parece menos de uma ordem moral, o que, se assim fosse, caracterizaria um topos de rivalidade, uma rebeldia, dois pólos opostos, o pai e o filho. Em Kafka, o ferimento da escritura está no debater-se confuso, no

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FOUCAULT, Michel, "Aula de 26 de fevereiro de 1975" in Os Anormais, trad. Eduardo Brandão, São paulo: Martins Fontes, 2001, p.269.

estado em convulsão, estado de gozo, contra o mal do pai, ao mesmo tempo em que essas coisas confessadas são assinadas pelo mesmo sobrenome do pai, "Kafka", e tudo o que se escreve a respeito desse nome, de algum modo, volta-se contra o filho também. Por quais motivos Kafka, que se sentia tão atingido, produziria uma carta que, ao mesmo tempo, atinge e não atinge seu pai? Por quais motivos, como forma de protesto, simplesmente não alterou seu nome de batismo? Não seria essa a mais simbólica forma de eliminar o nome do pai?

Tenhamos em conta que toda alteração de nome próprio é um assunto de discurso legal o que torna contraditório o ponto de vista jurídico que pressupõe uma certa "liberdade" ou "poder de escolha" do nome de pessoa. Todos nascemos já no interior de um espaço público da enunciação pessoal, necessária e inalienável, sendo que estamos submetidos às superintendências legais e administrativas que nos configuram e uniformizam democraticamente no seio das filiações concebíveis. Diz Michel Pêcheux:

Russel acrescenta: 'o nome de um homem, do ponto de vista jurídico, pode ser um nome qualquer, desde que esse homem declare publicamente que deseja ser chamado por esse nome', o que, precisamente do ponto de vista jurídico é um absurdo total, qualquer que seja o tipo de direito ao qual decidamos nos referir. Na verdade, o nome próprio (sobrenome) é identificado administrativamente, por referência à filiação (legítima ou natural); e seu caráter propriamente inalienável faz com que toda mudança de nome seja assunto de discurso legal. Acabamos de detectar um ponto central, caracterizado, por enquanto, por uma "evidência" suspeita...40

Diante desta gerência social dos nomes próprios que está antes mesmo do ato simbólico de nomear, temos a rasura no nome como negação: uma rasura criadora, positivadora de um outro chamamento. A negação (positiva) do nome superior, o sobre-nome, que pesa antes até de nossa vinda física ao mundo, nome metafísico, nome-de-Deus. A rivalidade extrema de uma parcela de nome que atua como "marca" alheia, primeva,

signatura preliminar, e precisa ser exterminada da face da nomenclatura pessoal. Um

fragmento "original", uma perfeição tão intocável que atua antes mesmo do aparecimento do indivíduo nomeado, pedaço descolado de uma rubrica im-própria, a do pai, a do céu. Aquele que entrará para a posteridade do tempo (Krónos), interceptando, cortando, de seu nome, a

mimesis apropriativa do pai, a fala paterna, o "falo". Lembremos o mito da castração de Urano por Cronos41. Um começo enunciativo que é negado pelo sujeito/objeto, pelo

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PÊCHEUX, Michel. "Determinação, formação do nome e encaixe" in Semântica e Discurso. Uma crítica à afirmação do

óbvio. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi. São Paulo: editora da Unicamp, 1988, p.102.

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Lembrando o mito: Urano, ou Ouranós, é o céu, que está deitado sobre Gaia, a mãe-Terra. Após Cronos castrar Urano com a hárpe elaborada por Gaia e poder libertar todos os irmãos, as divindades primordiais, casa-se com Rea e também possui seus filhos. No entanto, passa a repetir a mesma conduta de evitar os seus filhos, por medo que eles o sucedessem em seu

indivíduo/autor, por ordem de uma necessidade de reconciliação com o próprio nome próprio42. A alvorada de um nome que, após sofrer uma incisão necessária, no porvir, quase trinta anos depois, virará uma espécie de tabou para quem quer que pense a questão crítica do nome de autor, como falou Buch-Jepsen, na supracitação.

O nome do filho sempre está designando, além do indivíduo nomeado, a fonte, o tronco particular de que esse sujeito é descendente. "Descendente" remete a uma dupla semântica: tanto pode ser pensado na derivação de uma série passada a qual o sujeito "descende", quanto, também, no senso de uma descensão, uma descida, um certo rebaixamento, um corte - o que oferece um tom vertical ao problema subjetivo do nome próprio. Receber, assim, o seu nome próprio é ostentar um laço, uma secundariedade, uma "baixa". Há uma morte, um cunho da morte, um sinal, uma ferida, uma firma que se escreve, às caladas, no exato instante do nascimento do nome próprio de cada pessoa, o que vem a ser uma discórdia. O fantasma da morte, do apagamento, de todos os outros nomes que se desvanesceram para dar lugar a esse novo nome, no tronco de uma família. O fantasma da descendência que desperta em cada alcunha.

O luto da animalidade e da natureza, da mudez das coisas perante o homem, questão presente em Heidegger e Benjamin, inspira Derrida a pensar o fato de "se ter recebido um nome" como um intenso ferimento, um ferimento sem nome. A essência da natureza circundante, tomada por esse sentimento de privação de uma fala, de uma possibilidade de nomear o mundo, de se emitir o seu próprio nome também, é invadida por uma grande tristeza43. Mas junto a Benjamin, Derrida estipula uma certa inversão, entender que a

reinado, desta vez devorando-os. Ou seja, após castrar Urano, justamente pelos motivos que renegava, passa a repetir todo o comportamento fundamental do pai. O que muda, neste espaço mítico da soberania, dos comportamentos de uma primeira classe divina que nega a perda de seu lugar para uma próxima vindoura, é, em certo grau, apenas o nome próprio daquele que ocupa a função de sujeito de poder, do mesmo modo Zeus se revoltará contra seu pai e passará a dominar o universo, mas de modo oposto, desta vez, a Cronos. Ver isso em: VERNANT. Jean-Pierre. "A Origem do Universo" in O Universo, os

Deuses, os Homens, trad. Rosa Freire d'Aguiar, São Paulo: Companhia das Letras, 2000. pp.17-26.

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"[...] Foucault e Deleuze nos desafiam a pensar os sujeitos fora desse jogo de espelhos, em que a ênfase se dá na repetição, e não na diferença; no contínuo, e não na ruptura. Um sujeito não psicológico, um sujeito sem uma cadeia de significação ligando, sem ruptura nem descontinuidade a obra à vida, a vida a um passado familiar, a família ao Pai, o texto a um acontecimento que é núcleo de sentido - eu nasci e nasci de um Pai - a fala ao Falo. É preciso abandonar esta trajetória que nos leva de um sujeito em germe, de uma promessa de sujeito a um sujeito acabado, fechado, girando em torno de uma identidade, para seguir o movimento pelo qual esta identidade se abre pouco a pouco sobre um espaço no qual outras possibilidades de nomeação tomam volume, revelando, no limite, que a linguagem é a sua possibilidade de existir e de se proliferar. Temos um nome, mas podíamos ter qualquer um. Este nome não nos contém, nos possibilita, nos impede à busca incessante do sentido que, como vórtice, como o redemoinho do sertão, pode nos tragar e nos entregar aos demônios do sem sentido, das mutações diabólicas do mundo, da divisão, das segmentações esquizo [...]" ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de, "Os nomes do pai: a edipianização dos sujeitos e a produção histórica das masculinidades" in Imagens de Foucault e

Deleuze. Ressonâncias nietzchianas, (org. Margareth Rago, Luiz B. Lacerda Orlandi e Alfredo Veiga-Neto) Rio de Janeiro:

DP&A, 2002, p. 120.

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"[...] Conviene entender bien el sentido de la tristeza lingüística benjaminiana, es decir, bíblica. Como el dador de nombres dibujado en el Gênisis no aspira a nada más que a nombrar a la medida del conocimiento humano, la felicidad de las palabras a la que Benjamin se refiere como estado paradisíaco perdido no consiste, como ocurre en la fuente grega de la tradicción occidental, en el conocimiento de la cosa en sí. Por la misma razón, tampoco la tristeza de que habla Benjamin tiene nada que ver con la carencia de este conocimiento absoluto, que sí es, en cambio, como veremos, la que está en la base de la nostalgía

experiência de um não-poder nomear, de um mutismo, não é o que produz o luto, a perseverante afasia, na natureza. Mas, sobretudo, o "receber o nome", o "ser nomeado". Receber um nome - experiência triste em que os próprios homens estão incluídos - é dar-se conta da longevidade do nome, da noção de tempo que um nome instala no psicológico do sujeito designado, da impossibilidade de Krónos evitar ser sucedido pelo filho, tal como sucedeu o pai... E, portanto, não deixa de ser um "luto pressentido", é estar totalmente tomado pela passividade e a consciência do finito, é ter acesso à força da morte.

Luto pressentido, pois parece-me tratar-se, como em toda nominação, da notícia de uma morte por vir segundo a sobrevivência do espectro, a longevidade do nome que sobrevive ao portador do nome. Aquele que recebe um nome sente-se mortal ou morrendo, justamente porque o nome quereria salvá-lo, chamá-lo e segurar a sua sobrevivência. Ser chamado, escutar-se nomear, receber um nome pela primeira vez, é talvez saber-se mortal e mesmo sentir-se morrer. Já morto por estar prometido à morte: morrendo.44

Interessante pensar em como o nome do pai redundado no do filho tem esse senso preciso de evidenciar a propriedade genealógica, a estirpe de onde o nomeado advém, numa sensação menor de réplica, simulacrum. E, também, sublinha-se como a mais evidente e comum deficiência autoral em relação a si próprio, a incapacidade político-jurídica do denominar-se a si mesmo, no que diz respeito ao nome que ganhamos dos pais. Podemos até mudar o nome próprio, seguindo as condições regulamentares socio-jurídicas de cada país, no regimento de cada língua, mas acontece que já estamos tomados como sujeitos nominados no interior de uma sociedade específica. Então o que pode haver é um mero renomeamento, que será, para a totalidade social, simplesmente uma questão de reindividualização, de apagamento e rasura de um significante que dá lugar à emergência de outro, um substituto com o mesmo grau de referencialidade, e uma idêntica ou maior funcionalidade e eficiência. O nome que antes tinha o estatuto de próprio passa a ser um nome-falso, a partir de então. O indivíduo que se renomeia, assumiria a função genética da paternidade enunciativa que antes o havia nomeado, ou seja, é um simulacrum de igual modo.

Aquele que leva o cunho do pai, além do sobrenome, também no nome próprio, apresenta-se como imagística de uma insofismável responsabilidade de eco ou da regeneração

linguística de Heidegger y, antes aún, de Platón. Para Benjamin, como para la tradición bíblica, el estado bienaventurado del lenguage, perdido tras la caída y tras la maldición babélica, habría consistido en la posesión de una lengua única que nombrava las cosas con un mismo nombre para todos, aun quando estuviera sujeta a los limites del conocimiento humano y, por tanto, no se correspondiera con las 'esencias' de las cosas [...]"WAHNÓN, Sultana. Lenguaje y Literatura, Barcelona: Ediciones Octaedro, 1995, pp.20,21.

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desse "nome do pai". Um pacto de dependência com um passado lingüístico, um status natal, uma marca de escrita designativa que pertencia a outro, o que lhe é pai, origem, anterior à própria compreensão pessoal da língua desdobrada no mundo.

É importante ressaltar que no interior de todo grupo há uma necessidade de se instalar o único relativamente ao nome próprio. Numa família não se dá o mesmo nome duas vezes, etc. Aqui se poderia inclusive lembrar que quando se dá o mesmo nome de alguém ao seu próprio filho, acrescenta-se, ao final, Filho ou Júnior.45

Como ensina Eduardo Guimarães, as unidades enunciativas "Filho" ou "Júnior", são, por exemplo, já uma terceira categoria de nome que não tem a ver com o nome próprio ou sobrenome, mas aponta para a distinção de um nome e sobrenome, num indivíduo, que já está inserido no âmbito enunciativo de uma dada família. O que não ocorre na consignação do filósofo.