• Nenhum resultado encontrado

RELEVÂNCIA DERRIDIANA

Foucault explora a questão da proliferação das várias línguas, num veio filológico, por uma teoria da interpretação sobre a linguagem no pacto de semelhança com o que ela enuncia, em suas origens. Após o desastre de Babel, não mais importaria a função simbólica e radical da linguagem em relação direta com o espaço das coisas. Ele enfatizará ainda que, até o século XVII, a disposição da questão da linguagem estava centralizada na busca de reconhecer um signo legítimo, um nome, na designação com o que significava. Sobrevivia uma utopia genesíaca. A partir daí, da era clássica (lembre-se a organização dual do signo na gramática de Port-Royal), a questão passou a ser a de um distanciamento entre as palavras e as coisas, o significante como composição alheia ao significado.

Entretanto, um antropólogo cultural como Ernest Cassirer afirmará ainda sobre a esperança, justamente no espaço-tempo filosófico e místico do século XVII, de reproblematizar o sonho de uma língua mais pura, uma língua Adâmica, que sustentasse vínculo com os níveis transparentes da representação primeira.

Em muitas mitologias encontramos analogias notáveis da história bíblica sobre a Torre de Babel. Mesmo nos tempos modernos, o homem sempre teve um profundo anseio pela Idade de Ouro em que a humanidade possuía ainda uma língua uniforme. Ele olha para o seu estado primevo como um paraíso perdido. O velho sonho de uma língua

Adamica - da língua 'verdadeira' dos primeiros ancestrais do homem, uma língua que

não consistia apenas em sinais convencionais, mas que expressava antes a própria natureza e essência das coisas - tampouco desapareceu totalmente, nem mesmo no domínio da filosofia. O problema dessa língua Adamica continuava a ser discutido com seriedade pelos místicos e pensadores filosóficos do século XVII.45

No regime da representação dos signos, ocorreram várias mudanças, evidentemente, até a época moderna. Por ora, entretanto, o interesse não está em bifurcar dois nomes: Cassirer, por um lado, Foucault, por outro. Isso seria um ato de presunção e pressa. Talvez Cassirer não esteja propriamente oposto às conclusões de Foucault, ao focalizar o séc. XVII, sobretudo porque o seu interesse não era o mesmo, não era o de estabelecer um saber sobre as figuras e sim sobre os mitos. Por esse motivo, cristalizou seu olhar antropológico, quando falou em Babel, na língua Adamica como uma resistência nostálgica, utópica, em todos os momentos históricos - até mesmo no da disposição binária dos signos (significante/significado).

45

CASSIRER, Ernest. "A linguagem" in Ensaio sobre o Homem. Introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins fontes, 1997, p. 214.

Foucault, de outro modo, é muito mais incisivo e categórico numa análise privilegiada, mergulhada em responsabilidades históricas, taxativas, do jogo das semelhanças. Mas, de todo modo, é interessante partir desta irresolução do plano histórico, para ver como já outros autores, quão instigantes, levam o tema de Babel muito mais próximo do desafio da teoria mesma dos nomes próprios. A começar pelo próprio nome Babel. Babel, primeiramente, nome próprio e comum, "= Confusão" como explora Derrida, costurando o argumento que todo ato necessário de tradução se dá como impossibilidade.

Babel, nós o recebemos hoje como um nome próprio. Certamente, mas nome próprio de que e de quem? Às vezes de um texto narrativo contando uma história (mítica, simbólica, alegórica, pouco importa por enquanto), de uma história na qual o nome próprio, que então não é mais o título da narrativa, nomeia uma torre ou uma cidade, mas uma torre ou uma cidade que recebem seu nome de um acontecimento durante o qual YHWH "clama seu nome". Ora, esse nome próprio, que nomeia já, ao menos, três vezes e três coisas diferentes, tem também como nome próprio, é toda a história, a função de um nome comum. Essa história conta, entre outras coisas, a origem da confusão das línguas, a multiplicidade dos idiomas, a tarefa necessária e impossível da tradução, sua necessidade como impossibilidade.46

A confusão da origem começa quando as cordas das similitudes, no pacto simbólico, perderam espessura. Isso ocorre quando o hebreu, língua universal, se desmantelou, e muitas outras línguas passaram, polissemica e babelicamente, a verter os mais novos nomes, descaradamente, per-verter os nomes, abusá-los, nos primórdios do homem... Como se os nomes próprios e comuns sofressem alterações genéticas no logos gramatical mais intestino, num passe de mágica lingüística, confundindo, desgraçadamente, a Lei da interpretação originária e reconstituindo-se, com muitos braços informes... Enquanto o domínio das coisas em si próprias, amoitado no sulco intocável do "real", trocava de pele, o nome oculto mostrava-se como nome depositado, gélido, confiado, fiado anteriormente pela escrita, "nome salvo" (e tudo estava intacto ainda, salvo a torre e "salvo o nome", para pensar em Derrida, de novo).

Além desse importante livro "Salvo o Nome" - sabidamente componente de uma espécie de trilogia derridiana a respeito filosófico do "nome próprio", com mais dois outros textos publicados simultaneamente (Khôra e Passions) - lembremos daquele sub-capítulo de Derrida, em Gramatologia, chamado "A guerra dos Nomes Próprios". Ali, Derrida sustenta, dentre outras preocupações, tal como mais ou menos o faz Foucault, que "há escritura desde que o nome próprio é rasurado num sistema, 'há sujeito' desde que essa obliteração do próprio

46

se produz, isto é, desde que o aparecer do próprio e desde a primeira manhã de linguagem."47. Aliás, o abalo da hierarquia metafísica da escritura fônica sobre o significante gráfico, vem a ser um dos pontos principais que fundamenta as desconfianças derridianas de oposições binárias, quais: essência/aparência, significante/significado, etc... Para provocar fissuras em várias fixações logocêntricas que balizam a convenção das idéias, a conceitualidade canônica do pensamento, ele parte freqüentemente desta perspectiva de "demonstrar que não existe signo lingüístico anterior à escritura"48. Autores como Saussure acreditaram que a escrita seria a representação da fala, que por sua vez, é também uma representação, e assim, a escrita seria a representação de uma representação. Vários autores, como Marisa Grigoletto, advogaram a importância do sistema da desconstrução49 e de Derrida, para com o debate criterioso sobre o rebaixamento histórico e ocidental da escrita em relação à fala e o conceito de representação.

Considerar, pois, a escrita como objeto lingüístico seria analisar a imagem no lugar do real, seria "dar maior importância à representação do signo vocal do que ao próprio

signo" (Saussure 1972:34). Estabeleceu-se, assim, uma hierarquia entre fala e escrita.

Derrida desconstrói essa hierarquia ao repensar o conceito de representação; re- presentação supõe um presente eterno, imutável, não contido no tempo, ou seja, a própria presença. Uma vez questionada a possibilidade dessa presença, questiona-se também a distinção hierárquica entre fala e escrita: tanto uma quanto outra se constroem apenas em um presente circunscrito pelo tempo e espaço, apenas em cada nova escritura. 50

Em outros consistentes textos, a título de exemplo o de Christopher Johnson, chamado

Derrida. A cena da escritura, afirma-se, mais especificamente, a relevância de Gramatologia

nesta ambição de abalar os sustentáculos da tradição logocêntrica:

A tarefa que Derrida se atribui em Gramatologia é ambiciosa: questionar e contestar uma tradição do pensamento ocidental em que a escritura tem sido consistentemente situada num papel subordinado ao da fala. Enquanto a fala é habitualmente associada à

47

(Ver: p.134).

48 SANTIAGO, Silviano. Glossário de Derrida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p.31. 49

Numa entrevista conferida ao Le Monde, em janeiro de 1982, Derrida argumenta sobre a "desconstrução": "[...] essa palavra só conseguiu ganhar evidência, e isso me surpreendeu, na época do estruturalismo. Desconstruir é um gesto que ao mesmo tempo estruturaliza e antiestruturaliza: desmonta-se uma edificação, um artefato, para fazer aparecer as estruturas, as nervuras ou os esqueletos,(...), mas também ao mesmo tempo a precariedade ruinosa de uma estrutura formal que náo explicava nada, não sendo nem um centro, nem um princípio, nem uma força, nem mesmo uma lei dos acontecimentos, no sentido mais geral dessa palavra./ A desconstrução enquanto tal não se reduz nem a um método (redução ao simples) nem a uma análise; ela vai além de uma decisão crítica, da própria idéia crítica. É por isso que não é negativa, mesmo que muitas vezes, apesar de tantas preocupações, a tenham interpretado assim. Para mim ela acompanha sempre uma exigência afirmativa; diria até que ela não acontece jamais sem amor. (...)" DERRIDA, Jacques, "Jacques Derrida" in Entrevistas do Le

Monde, trad. Nuno Ramos, São Paulo: Ática, 1990, pp.76-77.

50

GRIGOLETTO, Marisa. "A desconstrução do signo e a ilusão da trama" in O signo desconstruído. Implicações para a

razão e à racionalidade (a noção grega de logos) e a voz é percebida como mais próxima da 'verdade' interior da consciência individual, a escritura é considerada uma extensão secundária ou suplemento da voz, uma tecnologia auxiliar empregada pela razão humana mas não essencial a ela. A fala é o fiador da presença e autenticidade , enquanto que a escritura representa o artifício e ausência, a alienação e o adiamento da presença. Em Gramatologia, a crítica de Derrida a esta subordinação histórica da escritura, que ele denomina 'logocentrismo', assume a forma de leituras cerradas e corroboradas de pensadores que representam diferentes instâncias ou 'momentos' da tradição logocêntrica, sendo as mais substanciais as que ele dedica a Saussure, Lèvi- Strauss e Jean-Jacques Rousseau51.

Mas Foucault, não podemos negar, igualmente, abala a perspectiva fonocêntrica e estipula um privilégio da escrita sobre a fala, dizendo o seguinte:

Doravante a linguagem tem por natureza primeira ser escrita. Os sons da voz formam apenas a sua tradução transitória e precária. O que Deus depositou no mundo são palavras escritas. Quando Adão impôs os primeiros nomes aos animais não fez mais que ler essas marcas visíveis e silenciosas/ a Lei foi confiada a Tábuas, não à memória dos homens; e a verdadeira Palavra, é num livro que a devemos encontrar.52

A Escrita não surge, portanto, após a Escolha, após a Fala, a acústica do signo, após o Jogo53. A expressão não supõe o conteúdo. (Como foi agora, e por isso mesmo é que era raro aquele desafio: o desafio do começo, o desafio de um topos. Uma raridade que se estenderá, provavelmente).