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Mas, é preciso algum ponto: já! (Déjà!1). Estudar o nome próprio de escritor, de autor é, deste modo, ir rumo a problemática aqui-agora do nome do Pai, das forças da gênese, ou, ao menos, tocar essa investigação em uma série de nós específicos. Mas, nessas primeiras aventuras, para pensar a causa prima dessa questão do nome próprio, bem se poderia, ao invés do célebre e polêmico artigo "O que é um autor", tomar algumas análises foucaultianas da epistéme hermenêutica desde o séc XVI (isso para tentar entender algo basilar no fenômeno do nomeamento e sua propriedade histórica e mítica). É que aquilo que está disposto nesse texto, o mais das vezes considerado incompleto e até passageiro, na verdade, vem a ser um desdobramento de um velho trabalho de Foucault, a especificação da função- sujeito. A função-autor seria, deste modo, uma das ramificações desse propósito mais amplo. Pois bem, então seria viável estudar a partir do primeiro livro de Foucault, a propulsão do assunto da autoria, do nomeamento e das propriedades lingüísticas. Esta decisão inicial e a presente escrita rodopiariam, abraçados, com toda a tempestade de relações entre os textos e deciframentos da natureza a que as figuras clássicas do mundo desenvolveram as primeiras imprecisas raízes, por exemplo. Mas, desafortunadamente, persuadidos de que se pode ir a isso, virando a única chave de partida, e numa só tese, cairíamos num grande erro.

Lembre-se que, já num desses principais escritos, o segundo capítulo de As palavras e

as coisas, guiado pela idéia de que conhecer nunca é ver, e sim interpretar, Foucault vai bem a

fundo, ao retomar aquela narrativa alegórica de Babel...

Sob sua forma primeira, quando foi dada aos homens pelo próprio Deus, a linguagem era um signo das coisas absolutamente certo e transparente, porque se lhes assemelhava. Os nomes eram depositados sobre aquilo que designavam, assim como a força está escrita no corpo do leão, a realeza no olhar da águia, como a influência dos planetas está marcada na fronte dos homens: pela forma da similitude. Essa transparência foi destruída em Babel para punição dos homens.2

1

Déjà: onde se vê a rúbrica oculta do nome Derrida Jacques. Ver: BENNINGTON, Geoffrey & DERRIDA, Jacques. "O nome próprio" in Jacques Derrida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p.129.

2

Fig 12. Print Depicting Construction of teh Tower of Babel [Fotografia de Philip de Bay]

O mundo está repleto de signos predispostos, assinalações. O conhecer humano, originariamente guiado por uma visão que tinha como prioridade as similitudes e afinidades no equilíbrio entre as coisas, não mais significaria que o poder de interpretar o que há de oculto, o nome adormecido. As redes de enunciados configurariam, por assim dizer, uma espera de um sentido de transparência que somente o homem poderia conferir. Esse homem que renegou o "nome do pai" (a totalidade do todo), na busca de seu nome próprio, e que, por ele, foi punido, com o não-todo, nos destroços de Babel3, com a opacidade das coisas que antes eram claras, depuradas, no hebreu. Então, a escrita é uma precedência (na forma de marcas silenciosas) em tudo o que pode ser nomeado. Nos realça, Foucault, que Adão, ao nomear os animais, nada mais fez que ler essas marcas. Dentro deste tema, em seu vocabulário próprio, Derrida formulou o termo archi-écriture. O professor Charles Ramond, da Université Bordeaux III - Michel de Montaigne, nos explica sobre esse termo, de fundamental relevância na filosofia derridiana, o da archi-écriture:

Nous concevons spontanément l'écriture comme quelque chose qui vient après: on parle d'abord, on écrit après, ou encore l'histoire (avec l'écriture) vient après la préhistoire. Par conséquent, lorsque Derrida avance l'expression d' archi-écriture pour mettre en évidence le fait que l'écriture, selon lui, ne vient pas 'après' (après la parole,

3

[...] Não é difícil, apesar das aparências, reencontrar ao longo das tradições os traços de que a língua esteja ligada à operação do não-todo: afinal de contas, o mito de Babel não diz outra coisa, visto que ele liga a possibilidade da língua a uma possibilidade de uma divisão indefinida e não passível de adição[...]". MILNER, Jean-Claude. "A produção da língua" in O

après la préhistoire), mais qu'elle est originaire, toujours déjà présente, il semble s'attaquer, de façon à première vue absurde et même ridicule à une évidence unanimente admise: comment oser soutenir en effet, contre le plus élémentaire con sens, que l'écriture apparaît en même temps que la parole, voire qu'elle la précède? C'est pourtant bien l'une des thèses centrales de la philosophie de Derrida, souvent perçue, de ce fait, comme une pure et simple provocation, et suscitant en retour des réactions de rejet indigné ou de fascination dévote, également inappropriées. Car la thèse d'une archi-écriture, pour peu qu'on l'examine tranquillement, se justifie aussi bien du point de vue de la logique que du poit de vue de l'expérience4.

Com a ilustração dessa narrativa de Babel, o tema do nome próprio é tomado muitas vezes mais por Derrida, em vários livros. Lembrando da história: Javé resolve botar em ruínas a gigantesca torre de Babel, arrebatado pela ira divina (ou mesmo "ciúmes" do nome próprio, como explorará em Torres de Babel) ao notar que fora construída pela tribo chamada de Shem - nome que justamente significa "nome" - com o objetivo de impor poderosamente sua língua para toda a humanidade. Desde tal momento, o Pai, Theós, condena o mundo à ininteligibilidade das línguas mais diversas, mais confusas, e todos se vêem obrigados a traduzirem-se uns aos outros. Se a comunicação era antes endurecida, introvertida, numa única estandardização que se impunha, e todos se entendiam entre si, agora, suas bocas passariam a escoar na desordem do múltiplo, no movimento genético que balança várias bandeiras desconhecidas, vindas do nada, oriundas da queda, do Kháos5. E os condena ao trabalho forçado de reaprenderem a ouvir, a buscar entender, capturar, novamente os sentidos extraviados. Se eles queriam roubar o nome próprio de Deus, impor o seu próprio na terra, se queriam tomar-lhe o "curinga", os pontos, a autoria e a propriedade, então, irado (enciumado dessa fratura que lhe é ausente, que torna sua perfeição imperfeita, desse desejo que jamais poderia desejar porque ele mesmo é o objeto desejável, desejoso), Deus confiscou-lhes ainda mais, violando a partida, Babel, ao atirar as pedras no chão, ao confundi-las nos destroços do jogo. "Deus joga tudo ou nada", falou Régis Debray. (Para que os homens, os concorrentes, aprendessem a jogar honestamente, ou seja, conforme o jogo. Um ponto estritamente necessário: conformar-se ao jogo, aí está o princípio daqueles cujas aspirações um dia esqueceram-se que se mantém sob vigília, todo o tempo. Somente o invisível pode se inconformar, o invisível que nos vê, o impróprio que se nos apropria, a graça violenta, a violência graciosa, em outro topos: o inacessível.)

4

RAMOND, Charles, Le Vocabulaire de Derrida, Paris: Ellipses, 2001, p. 9.

5

"[...] os gregos dizem Kháos. O que é o Caos? É um vazio, um vazio escuro onde não se distingue nada. Espaço de queda, vertigem e confusão, sem fim, sem fundo. Somos apanhados por esse Abismo como por uma boca imensa e aberta que tudo tragasse numa mesma noite indistinta. Portanto, na origem há apenas esse Caos, abismo cego, noturno, ilimitado [...]" VERNANT, Jean-Pierre. "A origem do universo" in O universo, os deuses, os homens. Trad. Rosa Freire d'Aguiar, São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.17.

Fig. 13. "Torre de Babel" de Lucas van Valckenborgh

[Musée du Louvre, fotografia da tela, 2006]

Félix de Azúa, por outro lado, faz uma relação entre a lenda de Babel e a tática histórica de colonização de novos espaços, quer dizer, a construção da torre obedeceria, antes, à necessidade humana de exílio que nos é natural, do que propriamente a um arriscado jogo contra Deus. Segundo ele "la multiplicación de las lenguas responde a una necesidad de orden táctico en el proceso de habitación del mundo"6. Assim, como descendentes de Noé, após o terrível dilúvio, teríamos percebido que nosso destino de povoamento de territórios ganhava muito mais ao usarmos mais línguas, mais nomes. Deste modo, a imagem da Torre, construída e desconstruida, é uma imagem do exílio, condiz com o jogo infantil da territorialização, da expansão, pelo mundo à fora. A Torre, deste modo, condiz com Exílio.

Fig. 14. Bollingen "A Torre" em 1923, em seu primeiro estágio. Em 1927 é aumentada por um anexo na parte central

[Memória, Sonhos, Reflexões, p.201.]

6

Lembremos, a título de curiosidade, da casa de férias construída com grande dedicação, na beira de um lago, por Jung, e para onde o mesmo se retirava, sobretudo na velhice. A casa que recebeu, não arbitrariamente, o nome próprio de "A Torre", ou "Torre de Bollingen", e onde há um propósito de transcendência muito peculiar, a filosofia de um lar diferenciado, como símbolo de uma necessidade de interiorização e, principalmente, de exílio. Jung dedicou mais de trinta anos à construção desta Torre. Em suas memórias, escritas na década de cinqüenta, quatro anos antes de sua morte, ele deixa claro o clima de imaginação, poder e de uma infantil superioridade, com o qual construiu também outra torre menor e, depois, praticamente as desconstruiu ao ir transformando, pouco a pouco, os corredores em galerias de dois andares. A casa vai crescendo para os lados, não mais enfrenta os céus, metáfora da expansão, mas o seu nome próprio continua sendo "A Torre".

Numa pedra exterior, ele entalhará algumas palavras escolhidas a dedo que buscariam explicar o sentido da Torre7. Dentre outras frases, a primeira delas vem a ser esta inscrição de Heráclito: "O Tempo é uma criança - brincando como uma criança - sobre um tabuleiro de xadrez - o reino da criança"8. O próprio Jung, neste exercício de xadrez consigo próprio, em seu confuso empreendimento arquitetônico de Bollingen, metaforiza a lenda de Babel como exílio, da diversidade dos nomes próprios, a imagem do inacessível.