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Leiamos outra "Carta ao Pai", não a de Kafka, mas a que Daniel Link, professor na Universidade de Buenos Aires, igualmente não entregará ao destinatário. Foi publicada na Argentina, em 2000, mas republicada, dois anos depois, no livro Como se lê e outras

intervenções críticas. Trata-se de um conjunto semanal de cartas, que vai de segunda-feira à

sábado17, dirigidas supostamente a Foucault. Motivados pelo curso entre 75 e 76 (Defender a

sociedade), estes textos ensaiam uma intimidade de correspondência entre o ensaista e Michel

Foucault. Link nomeará Foucault de diversos modos, dia a dia, Querido Miguelzinho,

Querido Michel, Michelle, Miguel Fucó, etc... buscando, aparentemente, provocar um abalo

neste nome próprio tão renomado que é o do filósofo. O interessante é que, nos dois últimos dias, sexta e sábado, voltará a chamar seu destinatário por Michel Foucault e, depois, puramente o sobrenome Foucault, nos levando a deduzir que, talvez, esse intento de abalo não

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HAROCHE, Claudine, "Capítulo 4: Análise crítica dos fundamentos da forma sujeito (de direito)" in Fazer dizer, querer

dizer, trad. Eni Pulcinelli Orlandi, São Paulo: Editora Hucitec, 1992, pp.203, 204.

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Ao propor seis cartas e não escrever uma correspondência no Domingo, é como se se colocasse no lugar da figura do pai, do provedor, de Deus. Foi o Pai quem criou a tudo e descançou no sétimo dia.

se efetivou totalmente, houve uma normalização do nome do autor e uma recristalização do sobrenome. No final, Link falará sobre o consolo, diante da morte do pai, em recordar um grito de batalha: "Que importa quem fala?", lição célebre. Todavia, o que parece ainda mais interessante de ser levado em conta é o nome próprio do próprio Daniel Link, que em nenhum momento assinou as cartas, deixando-as abandonadas de remetente.

Há, portanto, uma negação da firma, um extinguir-se do próprio nome, ao se tentar subverter o nome do pai, criar uma intimidade perfurante ou irônica. Link apaga seu nome das cartas, deixando no final delas apenas um espaço em branco. Esse apagamento, esse branco, do próprio nome, ainda mais se reafirma com a lição aprendida, com e diante de Michel Foucault, "Que importa quem fala?". Quer dizer, poderíamos notar, em contrapartida, que Daniel Link brilhantemente consegue demonstrar o efeito de uma autopunição ligada ao apagamento do próprio nome, quando se dirige ao seu "pai", mesmo que já morto, ausente. (AIDS, atropelamento ou suicídio - fatalidades - Foucault, Barthes ou Deleuze).18 Podemos afirmar que há, no dizer contra "Foucault" - no maldizer deste nome, na sua profanação, por Link, se se puder falar em maldizer e profanação neste caso - três aspectos relevantes. Logo vamos, aqui, enumerá-los com detalhes.

Primeiro entendamos rapidamente que, ao renegar, na argúcia de diferentes modos, a integridade da aparição do nome "Foucault" como destinatário de sua "carta ao pai", ao mesmo instante em que admite a sua paternidade intelectual, ou seja, assume influência de toda sabedoria assinada sob o nome próprio Foucault, Daniel Link está efetivamente tomado pelas forças do mal. Porém, propõe uma escrita "em estado de convulsão", assim digamos, onde não assume um contrato definitivo com a vontade de maldizê-lo, ao modo daqueles velhos marxistas marginais que o renegaram, como feiticeiros de fenomenologias ortodoxas (mais tarde, por sua vez, queimadas, em praça pública, como magia negra, pelos foucaultianos modernos e os novos revisores). Não defrontamos um mal discípulo, apenas estamos diante de um teórico, um escritor, que momentaneamente sofre de alguns tormentos espirituais19.

Mas, o primeiro aspecto de que falávamos, entre os três outros, vem a ser uma certa resistência ao nome próprio do pai, através de tentativas blasfemantes contra a unidade deste nome e sobrenome que ele aceitará como um mentor teórico, um mestre, um pai. Referindo-se a "Rolando Barto" e "Miguél Fucó": "(...)Eu era ingênuo então e não conhecia ainda o abismo

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Essas cartas apontam para um Foucault intocável. Ver essas cartas em LINK, Daniel, Como se lê e outras intervenções

críticas, trad. Jorge Wolff, Chapecó: Argos, 2002, pp.43-52. "[...] Agora, meu pai está morto, Roland Barthes foi atropelado

por uma caminhonete de uma lavanderia, Deleuze atirou-se por uma janela, e você se aventurou a nos deixar irremediavelmente sós, talvez por ter acreditado que podíamos começar a desenhar os nossos próprios mapas[...]". (p.52)

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Não se veja nenhuma crítica nisso. Logo, no outro capítulo, explicaremos melhor a importância desta maneira de Link de renegar o nome próprio do pai Foucault.

da dívida e da gratidão que, para sempre, se interpunha entre vocês e eu. Nenhuma amizade assim é possível. Eu só podia te repetir, usar teus mapas(...)"20. Esse aspecto foge da essencialidade, não visa uma transmaterialidade penetrante, não consta num estudo negativo sobre seu nome. Mas vai, com uma absurda intimidade, abalar o nome próprio "Foucault", blasfemando-o, como se, por uma boca indigna, pudesse ir profanando, incansavel e cruelmente, contra um elemento inabalável, bem fechado, que só se ataca neste ritual giratório, praticamente ineficaz. O segundo aspecto que podemos entender seria a tendência para um molde discursivo próximo da confissão, uma simpatia crítica com seu pai, uma situação em que, ao falar com/sobre Foucault, flutua uma suave e irônica aproximação demasiada. Não se profere uma acusação pessoal, ou um grito agudo contra o pai, e sim uma intimidade que sussurra. "(...)Um dia alguém me contou que quando você ia a uma festa, você - que tinha essa cara tão filme de terror classe B - se disfarçava de Carmen Miranda. Ignoro se havia algum fundamento de verdade nessa fofoca, mas teria gostado de te encontrar assim em alguma festa(...)"21. O terceiro, e principal, aspecto observado, vem a ser que as correspondências de Link conferem abertura para um espaço de batalha, de orgia conflitante, entre positivo e negativo, entre bem e mal, eliminando uma relação biangular com a vontade maldosa em superar o nome do mestre, ou a maneira sagrada com que seu nome se impõe na intelectualidade, na cultura, do contexto presente. "(...)Que vontade de ter sido teu melhor aluno, que vontade de ter te encontrado (...) Michel, Michel, que vontade de ter estado num canto dessa festas(...)"22. O nome próprio de Link, enquanto escritor, enquanto crítico, apaga- se ante a (des)aparição do sobrenome Foucault.

CONVULSÕES

Daniel Link propõe, em correspondências surdas, uma força de confissão e convulsão, um teatro de pulsões múltiplas e cruzamentos entre o bem e o mal que renegam o nome próprio de sua figura-pai "Foucault". São efeitos de um impulso irresistível que o leva contra qualquer sagrado nome, o faz "cuspir a hóstia". Ocorre um apagamento, um esquecimento, do próprio nome quando deixamos para lá o olhar angélico da criança, do filho, do discípulo, para incorporar o olhar convulsivo de uma aparição maldosa, contra a figura e o nome do pai, do pater, do padre. Estamos num esquema que remete ao clima de procedimentos

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LINK, Daniel, Como se lê e outras intervenções críticas, trad. Jorge Wolff, Chapecó: Argos, 2002, p.48.

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LINK, Daniel, Como se lê e outras intervenções críticas, trad. Jorge Wolff, Chapecó: Argos, 2002, p.46.

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anticonvulsivos na dimensão do misticismo religioso, de modo que o nome próprio do pai evoca um triangulamento diabólico, maquiavélico, onde nosso corpo nomeado, filial, está envolvido como receptáculo.

O benevolente, sagrado, nome do pai, constante antes de nós mesmos, vem nos exorcizar do mal da desidentidade, como autoridade vigilante, como a culpabilização do corpo pela carne, como os exames que caracterizam um filtro sutil da análise do discurso de cristianização, fortalecido principalmente no séc. XVII (Foucault falará de dois esquemas: a exaustividade da fala e exclusividade da percepção, o confessor e confessionário). A aparição do sobre-nome deixa de ser uma aparição tangível e, ao mesmo tempo, inacessível, pois, quando almejamos a morte do pai, não revogamos um modo de aparição ingênua qual a aparição da virgem e sim apelamos pela desaparição celeste, ou a aparição do diabo, nos deixamos invadir por um híbrido conchavo malígno, onde, ao mesmo tempo, queremos sair deste estado de insensibilidade, tremores, engasgos, sufocações, estado-possessão. Aspiramos o bem, clamamos pela resistência, porque estamos, fisio-teologicamente convulsivos contra o pai. Mas o nome que se apaga, se oblitera, entra em convulsão, é o nome próprio do filho, do discípulo, do crítico, do remetente das cartas de Link, o nome próprio de escritor, a segunda casta.

Não há nada de clínico em revelar-se contra o nome próprio do pai. Note-se que a convulsão passa a ser um problema clínico, herdada pela medicina, após ter sido palco teatral do fenômeno urbano da possessão (quando a carne fora um objeto de vigilância ritual e discurso analítico eclesiástico, através das leis do confessionário que produzia condições estritas de enunciação e, também, regras de silêncio). Nos explicando Foucault que este vem a se dar como um fenômeno clínico a partir do séc. XIX.

Antes, nos séculos XV e XVI, a Igreja enfrentava um inimigo periférico, que blasfemava contra seu nome: o fenômeno da feitiçaria que ocorria no mundo rural, nas montanhas. Os seus líderes deveriam de ser rigorosamente nomeados, identificados, para que os mecanismos da Inquisição pudessem reprimir, botar fogo nessa relação dual entre diabo e feitiçeira. Não havia, portanto, pensamentos desonestos, sexualidade em polo oposto ao corpo, requerendo um controle detalhado (divisão: nome-do-corpo X carne-nomeada). A mulher da feitiçaria era simplesmente uma má cristã, marginalizada da cidade, que tinha assinado seu nome num horrível contrato perverso, cedido livremente aos controles negros, por meio de um pacto selado onde tornava-se cumplice do mal, adotando um outro Pai como nome superior, Belzebú, seu novo sobre-nome. Este maldoso pai, de diversos nomes sinistros, oriundo das escuridões negativas à nova plástica da cristianização, por sua vez, usava do

próprio corpo da feiticeira para assinar o seu contrato de tipo jurídico, imprimindo o seu nome próprio específico, uma assinatura do mal, uma marca singular, uma firma, uma mancha, em algum lugar secreto do corpo da feiticeira medieval (666, talvez). A feiticeira não tem nada para confessar, no ponto de vista do catolicismo, seu corpo é meramente o papel, a serviço de um contrato sujo, onde a assinatura sinistra se desdobra. Nem mesmo está insatisfeita com seu nome próprio, ela esconde partes de seu corpo, apaga-se, porque essa assinatura do Mal está nela inscrita como sinal do "beijo no traseiro do bode de sabá"23, como dirá Foucault.

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Mas, nos sécs. XVII e XVIII, Foucault dirá que "a carne é o que se nomeia"24, pois não se entra mais numa idade em que a carne deve ser reduzida ao silêncio, escondida. No entanto, abre-se um período em que a carne, por assim dizer, sussurra, sobre condições estritas de um aparelho do poder-ouvir. Cria-se o aparelho de confissão. O mistério da teologia bruxólica que punha em risco a pureza religiosa, passa, então, a se tornar uma proliferação murmurante, uma espécie enigmática de soberania vertiginosa dos atos sujos que não mais quer provocar uma ruptura radical, transcendente, com a Igreja, mas é por ela assimilada, ao passo que, permanece essencial. O silêncio não é regra, porém, condição de funcionamento da regra sutil de cristianização, de redirecionamento espiritual, de um corpo nomeado.

Fig. 11. "Marc Riboud, Chartres, 1953". [Deus, um itinerário, 2004, p.357]

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FOUCAULT, Michel, "Aula de 26 de fevereiro de 1975" in Os Anormais, trad. Eduardo Brandão, São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.

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FOUCAULT, Michel, "Aula de 26 de fevereiro de 1975" in Os Anormais, trad. Eduardo Brandão, São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.257.

A feiticeira ia aos tribunais da Inquisição, obrigada a revelar seu nome, pois punha em pauta uma resistência aos instrumentos inquisitórios, para depois ser exterminada. A possuída, por seu lado, ao cruzar sob o olhar do confessor, do padre, o bem e o mal - tanto uma proteção sacerdotal, quanto toda uma maquinaria maléfica - ao ser um corpo e um nome volatizado por indefinidas forças, punha em pauta uma nova resistência ao Pai, e era obrigada, então, a ir ao confessionário. Foucault citará, como exemplo, um nome próprio que nada tem de diabólico, "Joana dos Anjos", mas que consente aos perigos da escuridão, sem travar um pacto total com eles. Num dado momento, ao começar a umectar uma hóstia, Joana dos Anjos refuta o seu valor sagrado e a cospe no rosto do padre Lactante, seu exorcista, mestre e diretor.

No momento em que a religiosa, buscando um apoio no exterior, abre a boca para receber a hóstia, bruscamente o diabo toma seu lugar, ou um dos diabos: é Belzebu. E Belzebu cospe a hóstia da boca da religiosa, que no entanto havia aberto a boca para recebe-la. Do mesmo modo que o discurso do diabo vem a substituir as palavras da prece e da oração. No momento em que a religiosa quer recitar o Pater, o diabo responde em seu lugar, com sua própria língua "Eu o amaldiçôo". Mas essas substituições não são substituições sem batalha, sem conflito, sem interferências, sem resistências. No momento em que ela vai receber a hóstia, essa hóstia que ela vai cuspir em seguida, a religiosa leva a mão à garganta, para tentar expulsar da sua garganta o diabo, que está a ponto de cuspir a hóstia que ela está absorvendo. Ou ainda, quando o exorcista quer fazer o demônio confessar o seu nome, isto é, identificá-lo, o demônio responde: "Esquecí o meu nome, [...] perdi-o lavando roupa". É todo esse jogo de substituições, de desaparecimentos e de combates que vai caracterizar a cena, a própria plástica da possessão, bem diferente por conseguinte de todos os jogos de ilusão próprios da feitiçaria25

Possuída por uma batalha, um conflito, entre bem e mal, Joana dos Anjos, cujo corpo é receptáculo de um desejo impróprio de renegação do padre, do Pai, do corpo de Cristo, do nome próprio, da palavra, divinos, luta contra uma inserção negativa que não confessa o nome próprio. Se revelasse o nome exato, esse demônio interior exporia sua fraqueza, a possibilidade de ser expulso, por meio do chamamento desse nome. Ele não pode revelar seu nome pois não quer ser abortado, mas também por outro motivo: não há assinatura no corpo de Joana, ela é "dos Anjos". Não se pode rasurar o nome do pai como no processo de uma antiga chasse aux sorcières26 ("caça às bruxas"). O tempo das feiticeiras já se foi.

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FOUCAULT, Michel, "Aula de 26 de fevereiro de 1975" in Os Anormais, trad. Eduardo Brandão, São paulo: Martins Fontes, 2001, p.265.

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