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HAMSUN VAGABUNDA PANTOPIA

O jogo vagante da Pantopia. A começar por nossas casas, em sua força acolhedora, notemos que não passam de uma instância menor, interiorizada na morada contrária que todos acabamos herdando de uma época precedente: o apogeu da rejeição da autenticidade local, uma era de profanação do antigo ritual de culto e abalo de toda perspectiva metafísica que se ofereça num espaço de exposição contraído, definido. Mas tentamos nos descontrair, nos redefinir, e, para tanto, saímos de casa com o intuito de ver uma obra de arte contemporânea. Uma peça artística ou uma inocente instalação nos convoca. Estamos bem intencionados, queremos reaprender coisas, voltar a ver emergir aquele nostálgico impulso de deleite ao abraçar um mundo único, de fascínio, também de sombras... Entregar o destino deste dia a um estatuto crítico cuja potencialidade marginal nos remova da monotonia do viver cotidiano.

Entretanto a boa intenção esbarra no pressentimento de uma indiferença nascente antes mesmo de chegarmos à exposição propriamente dita. Durante este caminho de deslocamento, a exposição já se expunha (escoltada pela divulgação do nome de seu autor). Paradoxo da imagem já antecipada pela serialidade de ícones distribuídos na configuração da cidade. É como se o museu desaparecesse juntamente com um longínquo critério de prazer, e nossos olhos já observam, antes mesmo do ingresso naquele mundo que esperávamos mágico, o que outrora veríamos somente nas inervações desse espaço de ruptura, nos vemos assimilados por uma vagabunda pantopia.

Em Atlas, Michel Serres utilizará a palavra "pantopia" ("todos los lugares en cada

lugar y cada lugar en todos os lugares, centros y circunferencia, relación global"1), termo que designa - além do pan próprio do fenômeno de desterritorialização - também a artificialidade, a singularidade virtual e contemporânea, que envolve nossas utopias. A questão agora é: tentar pensar em como o nome próprio, no campo estético, funciona com relação à obra e com quais estatutos, num mundo pantópico, sob efeitos globalizatórios, qual o que se nos apresenta hoje. O que é um mundo pantópico, primeiramente? "Pantopia" acaba sendo uma espécie de sinônimo de desterritorialização (no senso da "lógica do caos" de Félix Guattari), ou tendo um elo muito profundo com esse conceito, no sentido de, no atual período da globalização, estarmos exilados em todo lugar. "Tudo voa", como dirá o geógrafo Milton Santos, em O Lugar e o Cotidiano, sobre a idéia de desterritorialização. Mas de que maneira

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pode ter a ver o nome próprio do deus mitológico "Pan" com isso tudo, com esse clima de errâncias?

Torna-se relevante começar lembrando como o norueguês Knut Hamsun2 vai, num de seus mais experimentais e curiosos romances, associar o nome próprio "Pan" à esfera de outro de seus protagonistas vagabundos. É sabido que uma das marcas dos personagens principais de Hamsun está na exagerada utopia e no virtual universo vagabundeante, porém uma modalidade de peregrinação falsa, "falso nomadismo que na realidade nos deixa no mesmo lugar" (para roubar algumas palavras de Guattari sobre as desterritorializações subjetivas contemporâneas). A associação entre o personagem Glahn o nome próprio "Pan", em Hamsun nome apenas de um objeto, importa no ponto de vista desse termo "pantopia", porque geralmente estes vagabundos hamsunianos são desmedidamente peregrinos, desdobram incompatibilidade com qualquer locus, sempre se deslocando, territorial e subjetivamente, e viajando atrás de virtualidades, como se todos os lugares e nenhum equivalessem à mesma coisa, ou seja, eles caminham utopicamente para a atopia, ou melhor, suas utopias não caracterizam lugar nenhum, apenas os deslocam para o consumo do nada.

A questão social pouco importa, se em Um vagabundo toca em surdina, ou em

Fome, temos pobres e esfomeados vagabundos, como também em Vitória, o filho de um

moleiro, em Pan, por exemplo, temos o "panteísta tenente Glahn" - como dirá um crítico do autor, Paulo Dantas. Não raro, correm, estes vagabundos desclassificados, atrás de suas amadas a quem não sabem, ou inventam, o nome próprio, como em A rainha de Sabá ou

Fome. O nome próprio que os personagens de Hamsun almejam tocar está em toda parte, por

assim dizer, ou melhor, tornam-se pantópicos. Erwin Theodor, na introdução de Vitória, pela editora Boa Leitura, nos faz saber que, alguns anos após escrever seu principal romance Sult

(Fome), bem como um ensaio espirituoso atacando a existência social e cultural dos Estados

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Este célebre escritor norueguês, traduzido no Brasil por Carlos Drummond de Andrade, e que recebeu, em 1920, tal como Saramago, o Prêmio Nobel de Literatura, também foi uma das leituras que provavelmente serviu de influência na formação do estilo onettiano. Além, disso, tomamos conhecimento, através do amigo de Kafka, Max Broad, em seu livro "Franz Kafka", que Hamsun era um dos escritores preferidos de Kafka. Hamsum, portanto, tudo tem a ver com os outros nomes a serem averiguados. Verifica-se, em seus romances, fortes elementos biográficos, tal como no clássico "Sult" (Fome). Mas algo realmente sugestivo para ser eventualmente estudado é o caso de seu nome próprio. O escritor chamava-se Knut Pedersen (um nome e sobrenome notadamente populares na Noruega), no entanto ele acrescentou ao seu nome o da propriedade arrendada pelos pais: "Hamsund". O biógrafo Erwin Theodor (ver a introdução biográfica em: HANSUN, Knut.

Vitória/ O sonhador. São Paulo: Boa Leitura, 1961) explica que, em 1885, ao ser publicado em Cristiânia um ensaio do autor

acerca de Mark Twain, um erro de tipógrafo causou a queda da consoante final do nome, e, então, Knut Pedersen "Hamsun", agradando ao escritor, passou a ser adotado. Mas tarde, passou a assinar apenas Knut Hamsun, que é como ficou conhecido. Há, então, uma fonte interessante para se estudar um caso de erro gráfico exterior e seus corolários na nominação de autor. Se no nome Saramago temos equívocos de registro e, no de Onetti, um não-saber a respeito de sua origem - no caso de Hamsun, temos uma série de equívocos que caracterizam um verdadeiro devir, uma deformação alheia, por ordem do destino, no topos do nome próprio, onde não há motivo algum para esse nome próprio ser tal como é. Exclusividade pantópica, simplesmente fruto de uma conseqüência de erros, mais tarde, agradáveis ao autor que resolveu, sem nenhuma necessidade, assinar assim. Hamsun é um nome vagabundo.

Unidos (A vida Espiritual da América Moderna), Hamsun preocupou-se veementemente com a filosofia de Nietzsche. Tal influência da maturidade o aproxima, de algum modo, dos traços biográficos de nomes de escritores que pincelamos nesta tese, como Saint-Exupéry. Eis mais ou menos o momento em que publicará Pan, quando fixou-se em Paris, entre 1893 e 1896. 3