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O NOME NEGADO DE FOUCAULT

Enunciados comoventes nos despertam uma grande admiração e talvez, com ela, uma inveja. Legitimar um enigma11 que está sob um estranho mau-olhado. Suspender um amuleto que nos proteja de nosso próprio "olhar sobre" (ou, do latim, invídia)12.

10 Ver mais em: FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio, São Paulo: Loyola,

1998, p.52

11 Não se poderia falar em "mistério", pois a palavra está amarrada à noção utópica de um real velado, coberto. Então,

falamos sim em "enigma", uma verdade que se propõe parcelada, fragmentada, e não como resultado de desvendamento. Ver o termo derridiano "Enigme" em: SANTIAGO, Silviano. Glossário de Derrida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p.28. Interessante essa distinção ensinada pelo professor Raul Antelo: "[...] O enigma é uma verdade parcelada, um brilho que, somado a outro, permite armar ou enunciar um continuum plural e fragmentado. Já o mistério alude a um todo coberto, velado. No mistério a imagem do véu nos separa do objeto e nos remete, imediatamente, ao longínquo, quando o enigma, pelo contrário, nos fala de uma distância no interior da própria representação [...]" ANTELO, Raul. "Per speculum in arnigmatae: construção de identidades culturais nas ficções de interpretação nacional" in Transgressão & Modernidade. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2001, p.43.

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O mau-olhado é um quebranto, um esfacelamento, um olhar cuja força debilitadora, devoradora, provém da dimensão da feitiçaria, provoca sequidão. Conforme Francis Huxley, "[...] O mau-olhado é um olhar de admiração que seca o objeto a que se dirije, porque é cheio de inveja". (HUXLEY, Francis, O Sagrado e o Profano. Duas faces da mesma moeda, trad. Raul José de Sal Barbosa, Rio de Janeiro: Primor, 1977, p.53.)

Fig. 10. "Olho contra mal olhado." Amuleto encontradiço no oriente

médio. [O Sagrado e o Profano, p.53]

Como? Se já desponta, propriamente com a escrita, a margem autoral de um texto embaraçado, pressentindo e (mau)olhando a questão do nome de autor... se se faz, dessa maldade do olhado, a expressão de uma cadeia de nomes ilegítimos, desde si mesmo. É preciso livrar-se de qualquer feitiçaria que faça murchar a escritura. Poderíamos começar escolhendo o nome de um autor, extremamente necessário. Um autor de cunho híbrido, cujo pensamento se inscreve nos mais diversos campos reflexivos. Confortar-nos-íamos, meramente, com as forças protetoras deste sobrenome: Foucault.

Depuis une génération l'étude des noms d'auteur représente une sorte de tabou dans la critique littéraire. Une des raisons pour la création de ce tabou a bizarrement été l'assimilation considérable de l'article de Michel Foucault 'Qu'est-ce qu'un auteur?'13 Ou, ainda, uma vez que o drama é estabelecer um princípio, seria viável desviar para um exame analítico discursivo, detendo a atenção no nome que esse autor tinha quando começava, quando nem mesmo tinha uma assinatura histórica. Paul-Michel Foucault. Assim, estaria-se presentificando um topos inicial mais protegido, uma tática mais segura, pelo fato de que se apresentaria o objeto como suporte do discurso, e vice-versa. Iniciar o estudo dos nomes de autor, a partir da reconhecida teoria de Foucault, mas botando em pauta o próprio nome deste autor, significaria tentar criar um anel metodológico onde a origem do estudo (teoria original) se disseminaria no próprio objeto (sua passividade). Seria seqüestrar a obrigatoriedade de restituição da verdade do objeto através da teoria, uma vez que a teoria

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BUCH-JEPSEN, Niels. "Le Nom propre et le propre auteur. Qu'est-se qu'une 'fonction-auteur?'" in Une histoire de la

'fonction-auteur' est-elle possible? (org. Nicole Jacques-Lefèvre et Frédéric Regard), Saint-Étienne: L'Université de Saint-

Étienne, 2001, p.49. p.49.

(entenda-se também "crítica", "interpretação", "decodificação"...) como tal movimento, seria colocada numa circunstância de inoperância, nesse sentido, formulando um início de estudo. Não implicaria nas mesmas características de uma simples biografia de Foucault, que estaria a enfocar o seu nome próprio, pois, sendo uma tese a respeito do assunto, a tática epistemológica passaria a ser ex/tática. Elaborar, então, a própria emboscada para a solidão do

topos, a armadilha dentada, procurando investir numa dobra, numa ruga, com o dentro/fora do

objeto olhado. (Lembremos, en passant, os estudos de Deleuze, quando esboça um "diagrama de Foucault"14).

Portanto: Paul-Michel Foucault. Note-se o "Paul": não o mesmo nome do sujeito que, bem dizer, definiu o modo moderno (e cheio de fendas) de encarar o problema da função- autor, a partir da investigação dos nomes próprios. E sim, mais longe, o nome de batismo que esse filósofo recebeu, em 1926, e que com ele ficou, até completar seus dezessete anos e decidir por extrair o "Paul" da estrutura de seu nome próprio (aquele "Paul", talvez, também um "mau-olhado"). Após suas primeiras leituras de Hegel, Marx e Freud, o adolescente Michel Foucault resolvia, então, quebrar a tradição de cirurgiões da família e inclinava-se, desde a alteração de seu nome, para um caminho distinto de seu avô e, principalmente, de seu pai (Paul Foucault). A psicóloga Marisa Faermann Eizirik, no final de um livro que se lança na apreensão da linha básica de pensamento do autor, faz um breve percurso biográfico/intelectual de Foucault, que inicia deste modo:

1926 - 15 de outubro, nasce em Poitiers, com nome de Paul-Michel Foucault. Seu pai, Paul, e seu avô eram cirurgiões. Tem uma irmã mais velha e um irmão mais moço. Apesar da pressão familiar, com 17 anos decide que não seria médico e que também não se chamaria mais Paul, como o pai. Passou pela vida escolar com êxito, enfrentando a experiência extremamente competitiva para o ingresso na École

Normale Supériore, em Paris. 15

Entretanto, ao explorar esses dados, não se deseja ressaltar que Foucault desprezava seu pai, a todo pulso, isso não vem ao caso, ou que o pai de Foucault errou ao nomear o filho com o mesmo nome seu, pois ele seria um grande filósofo, no futuro, e não médico. Seria um problema de determinação moral que, justamente, deve-se evitar. Mas, longe de quaisquer romantismos, é interessante pensar isso, a princípio, em virtude de levantar o aspecto que a designação do nome próprio, pelos procedimentos formais, jurídicos, está em cumprimento à Lei predeterminada que obriga um pai a particularizar um indivíduo como sujeito de família,

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Ver: DELEUZE, Gilles. "As dobras ou o lado de dentro do pensamento" in Foucault, São Paulo: Brasiliense, 1988.

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sujeito-social. A propósito do funcionamento do nome próprio e desse interesse por Pêcheux, Claudine Haroche explicará que:

O nome próprio, nome determinado por excelência, garantido pela unicidade do sujeito que o designa, é igualmente suscetível de remeter ao indeterminado. Assim, o funcionamento gramatical do nome próprio, longe de ser neutro e estritamente formal, isto é, de estar ao abrigo de toda ideologia, está na realidade intrinsecamente ligado ao funcionamento jurídico.16

Portanto, a figura paterna que Foucault renegou ao renomar-se foi a que se apregoa numa determinação semântico-enunciativa, aquela cuja gramática está anelada ao funcionamento jurídico, e não precisamente como uma paternidade biológica. Explicando melhor: o que está em causa não é o pai (físico) de Foucault, o pai rejeitado, e, nem mesmo Foucault ele mesmo, mas sim uma paternidade da locução, a "paternidade-enunciadora", que nomeia um nome próprio. Isto tem tudo a ver com a questão da função-sujeito. Pois o pai, no instante que nomeou o filho, era tomado como sujeito da locução do nome próprio do filho, posto que exercia um papel socio-cultural que não podia ser descartado, estava no esquema exemplar de uma "ordem do discurso". E os dispositivos de poderes e desejos dessa ordem jamais poderiam desconfiar que o menininho anônimo se designaria, um dia, Michel Foucault.