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Questão crucial: a imagem desta mão.5 Deslize e acerto, em suas intensões, expansão e retraimento, em seus gestos, re/volta e resignação... Também o ôco e o maciço, na palma desta mão, a malquerença de um golpe e a amizade de um afago: supô-las convivendo na passagem vacilante de um abandono rumo à entrega total e uma entrega que é puro abandono. O que se dá, em definitivo, pela irremediável co-participação imaginária, sincrônica, indecidível, entre a mudez e a fala das mãos daquele que escreve, o apagamento e o acabamento de seu escrito. Poderia-se falar, também, no caso de uma solidão lúdica: somente no intervalo dos dedos aberto pela contrariedade de dois gestos, de duas mãos intrinsecamente estranhas, somente no desamparo do escritor, na armadilha da noite, suas dez estrelas, a intimidade do pensamento pode abandonar-se ao extremo, ao "ato só de escrever". Ao desespero dos "dois abismos" de que falou Mallarmé, experiência tal que muito interessou a Blanchot para versar a tese de que escrever jamais significa o aperfeiçoamento da linguagem corrente, sua purificação pelo processo harmonioso de uma representação "elaborada". O poeta, o artista, não é provido, em definitivo, para ele, de um savoir-faire criador, musical ou rico, mas tão-só o nada, a tensão, naturais de alguém que escreve, que verte, sustenta, esse ato só. Uma tensão do murmurar que, nunca sendo suave, poderíamos chamar de intensa. Então,

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Segundo a mentalidade ocularcêntrica, toda imagem surge após o sentimento do objeto, vem depois desta mão, é a sua seqüência. Assim sendo, nós, sujeitos, vemos o mundo, o interpretamos dispondo de certos processos analógicos, e é quando hegemonicamente o que chamamos de imagem se formula. Ou melhor, detectaríamos um "real", e então, o discriminaríamos de alguma forma. A imagem é, assim, classicamente, uma forma de mediação, entre o "eu" e o visível que eflui, simbolicamente, para esse eu, que tem uma intimidade com o nome apropriado daquilo que é visto. Entretanto, hoje em dia, isso parece indicar uma relação de subordinação hesitante, este “após” do real, que se daria como eflúvio positivo, está contestado teoricamente por autores do gabarito de Derrida, Foucault, Barthes, Bataille, Lévinas... por exemplo, junto a muitos de seus contemporâneos, da corrente francesa ou não. E mesmo tantos outros anteriores ao panorama crítico da negação do sujeito de uns cinqüenta anos para cá, para citar alguns nomes, Nietzsche e Heidegger. Portanto, quando o próprio da imagem deixa de eqüivaler ao acabamento do próprio, ou seja, o conceito de real não mais se deixa acabar, mas ao contrário, se dissipa na violência da interpretação, da imagem, então, buscar um topos de escrita, vem a ser uma ânsia de indecibilidade, rumo ao incognoscível da origem, algo que não mais se adiciona fixamente, não pode mais ser antevisto, perde os limites. Numa conferência realizada no Brasil, intitulada "Quem é Nietzsche?", Alain Badiou vai reafirmar esta intensidade arquipolítica em Nietzsche e também vai, arriscadamente, acrescentar que existe, da parte de Heidegger, uma interpretação errônea acerca de Nietzsche que o hegelianiza, no momento em que pensa que o fazer de Nietzsche coneta-se a um programa de ultrapassamento e não se oferece como puro acontecimento do ato filosófico. Para Badiou, Nietzsche seria o "nome próprio obscuro", como diz ele, do ato como o acontecer de uma quebra absoluta, inclusive da própria idéia de ultrapassamento, de valor. O niilismo nietzscheano, assim, não estaria proibindo-se de seu próprio fazer, através da busca de ultrapassamento do próprio niilismo ao velho sentido, mas é preciso sim, como dirá Badiou "se deter, para entrar em Nietzsche, no ponto onde a avaliação, os valores, o sentido falham na demonstração do ato". Dirá Badiou: "[...] É a esta ligação entre um ato sem conceito nem programa e um nome próprio, nome próprio que por acaso é o seu, que é preciso atribuir o título Ecce homo. 'Por que sou um destino', se perguntaria. Eu sou um destino do que, por acaso, o nome próprio Nietzsche vem aliar a sua opacidade a um rompimento sem programa nem conceito [...]" BADIOU, Alain. "Quem é Nietzsche?" in Conferências de Alain Badiou no Brasil, org. Célio Garcia, Belo Horizonte: Autêntica,1999, pp.78,79.

no seio desta "tensão intensa", por assim argumentar, escrever é quando, por excelência, na sentença do "eu sou" (na linha da vida) reside uma angústia do não-ser. O "eu sou" inscreve- se como decisão de um ser sem ser, nome inominável, como todo ato de pensamento, como toda aparição onde "tudo desaparece".

Nome próprio e autoria: atopia de um começo - a oscilação que se sustenta como desejo de pôr fim ao próprio começo, "largar ou pegar", e enfim ir em6 frente. A oscilação que não deixa de se motivar, na verdade, também como um pegar que está unido ao largar (a dança das duas mãos, para Blanchot), um pegar "e" largar, a obra, para logo voltar a pegar-e- largar: voltar atrás. Escrever, ato fixofluxoso, lamacento7. É preciso fazer a escrita "pegar", na

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Dar um passo "em" frente, com um pé de desconfiança do "a" frente.

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Há pouco, aquele neologismo: "fixofluxação". Tendo-o em vista, é possível ler, em algumas narrativas, o contato blanchotiano da escrita lamacenta com o próprio cronotopo da história. Lembremos de O Ano da Morte de Ricardo Reis, romance de José Saramago. Desde o início da história temos uma possante inclinação à viscosidade. A figura do escritor, ali representada por Ricardo Reis, está totalmente imerso numa paisagem que se lhe apresenta fixofluxosa, lamacenta. Isso se dá por vários motivos intrínsecos à presença paisagística de Lisboa, e também à psicologia dos personagens estranhos que aparecem (e desaparecem) nessa narrativa. Lisboa, em Saramago, é um espaço tremendamente inundado e chuvoso desde o desembarque do escritor, Ricardo Reis, protagonista recém chegado dos costumes tropicais brasileiros. O curioso é que essa pancada de água torna-se misteriosamente branda, de modo que não se ouve o seu estilhaçar contra a cidade. Isso confere à apresentação do espaço-tempo narrativo um silêncio inusitado, a parcela de água que ainda despenca, como que num passe de mágica dos sentidos, ao invés de proporcionar um certo rumor, alguma estridência natural, à cidade alagada, pelo contrário, a torna silenciosa. Presenciamos, então, uma espécie pegadiça de mudez, o aguaceiro quieto parece possuir a faculdade de

diluir em lama tudo quanto for sólido na paisagem, e, então, os poucos viajantes que precisam descer procedem como se

estivessem prestes a adentrar num desconhecido universo movediço, titubeantes, inseguros que tenha sido autorizado o desembarque: "[...] São poucos os que vão descer. O vapor atracou, já arrearam a escada do portaló, começam a mostrar-se em baixo, sem pressa, os bagageiros e os descarregadores, saem do refúgio dos alpendres e guaritas os guarda-fiscais de serviço, assomam os alfandegueiros. A chuva abrandou, só quase nada. Juntam-se no alto da escada os viajantes, hesitando, como se duvidassem ter sido autorizado o desembarque, se haverá quarentena, ou temessem os degraus escorregadios, mas é a cidade silenciosa que os assusta, porventura morreu a gente nela e a chuva só está caindo para diluir em lama o que ainda ficou de pé [...]" (SARAMAGO, José. O ano da Morte de Ricardo Reis. 2. ed. Editorial Caminho, Lisboa, 1984, pp.12-13). / Note-se que o receio de desembarcar surge não meramente do contato visual com um lugar medonho, mas sim da intuição do cronotopo viscoso por outro sentido, a audição, ou, mais precisamente, o sentido da falha do sentido, o quase não-ouvir, ouvir estranhamente o nada, a sua escuridão, um ouvir tão fúnebre e lamacento que faz com que se suponha que todos os habitantes de Lisboa foram diluídos nessa ausência. Bem mais adiante, quando o protagonista já está para sair do hotel Bragança, temos ainda um ruído chuvoso escuro, os mistérios sonoros da chuva permanecem intensos: “[...] Ricardo Reis fechou a janela, apagou a luz, foi recostar-se, fatigado, no sofá, com uma manta estendida sobre os joelhos, ouvindo o escuro e monótono ruído da chuva, este ruído é verdadeiramente escuro, tinha razão quem o disse [...]”. (p.199).O silêncio de um espaço remete ao pavor de uma viscosidade, a paisagem citadina é irreconhecível pois a sensação central que a trazia, que é auditiva, estava carregada de estranheza, de silêncio. Na esteira de Sartre e Bauman, há novamente um elo entre o estranho e a espessura do visco, entretanto, como estamos vendo, não é mais pelo tatear (Blimunda tocando o peito de Baltazar, em

Memorial do Convento, com o sangue de sua "virgindade rasgada") que se implanta viscosamente o espaço-tempo. A

pegajosidade é própria da amplidão da escrita, entre duas ondas diferentes que se ligam: as ondas visuais da chuva às ondas sonoras vagas, imperceptíveis. Se é possível mirar objetos grudentos, a literatura saramaguiana torna viável o ouvir um silêncio pegajoso, e o efeito desse fenômeno é o emudecimento sombrio do futuro (presságio de morte). A confusão de sentidos, onde pessoas que, escutando o silêncio de uma cidade, presumem uma viscosidade (algo propriamente tátil e não auditivo) no ambiente. Enquanto esse espaço continua irreconhecível para os que chegam, o viscoso ficará permanente. Um pouco mais à frente, vemos que somente quando o viajante começa a reconhecer a Lisboa que tinha, por assim dizer, preservado na memória, é que a chuva irá passando, ou seja, quando o espaço começa a deixar de ser estranho em sua atualidade, também as forças naturais (cuja presença concede plasticidade estranha aos lugares de passagem) vão-se esgotando, e o personagem, que até então era um desorientado, começa a se orientar na geografia presente da cidade. "(...) Ao viajante não parecia que as mudanças fossem tantas. A avenida por onde seguiam coincidia, no geral, com a memória dela, só as árvores estavam mais altas, nem admira, sempre tinham sido dezesseis anos a crescer, e mesmo assim, se a opaca lembrança guardava frondes verdes, agora a nudez invernal dos ramos apoucava a dimensão dos renques, uma coisa dava para a outra. A chuva rareara, só algumas gotas dispersas caíam, mas no espaço não se abria nem uma frincha de azul, as nuvens não se soltaram uma das outras, fazem um extensíssimo e único tecto cor de chumbo. Tem chovido muito, perguntou o passageiro, É um dilúvio, há dois meses que o céu anda a desfazer-se em água, respondeu o motorista, e desligou o limpa- vidros. Poucos automóveis passavam, raros carros eléctricos, um ou outro pedestre que desconfiadamente fechava o guarda- chuva, ao longo dos passeios grandes charcos formados pelo entupimento das sarjetas, porta com porta algumas tabernas

imaginada seriedade progressiva de uma investigação de teoria literária - desde uma delicada ramificação possível até o ponto nevrálgico de uma tese - e, de igual modo, na desordem (no espiral do pega-pega). Ao mesmo tempo, parece certo que, para quem quer pôr em pauta a questão dos nomes próprios, da autoria literária, e escrever algo "desde aí", torna-se urgente abarcar qualquer coisa que tenha propriedade garantida de uma escolha, num momento próprio. Qualquer um que se quisesse expor sobre qualquer assunto abanaria, minimamente, um perfume de origem, uma mentira de origem, uma maldosa, enganosa, boa-fé, ou fantasia deslavada do topos mais exato, mais tranqüilo, mais contratual, quando não passa de mais uma das ramificações destinada ao centro nervoso, como se disse.

abertas, lôbregas, as luzes viscosas cercadas de sombra, a imagem taciturna de um copo sujo de vinho sobre um balcão de zinco. Estas frontarias são a muralha que oculta a cidade, e o taxi segue ao longo delas, sem pressa, como se andasse à procura duma brecha, dum postigo, duma porta da traição, a entrada para o labirinto (...) (p.17) / Podemos notar que a espessura do visco é tão intensa que contamina até as nuvens que parecem estar grudadas uma nas outras, formando um

único teto cor de chumbo. Os pedestres não acreditam que podem fechar o guarda-chuva, eles desconfiam do espaço, parece

inadmissível que se esteja limpando. Mesmo com a breve serenidade do tempo sombrio, ainda permanecem vestígios da sujeira viscosa, lôbrega, tanto os mais amplos: as sarjetas entupidas que formam grandes charcos, quanto os mais particulares: a espessura taciturna de um vinho (propriamente viscoso) que suja um copo num balcão. A mais intrigante dessas imagens é, entretanto, a das luzes viscosas cercadas de sombra. Além do viscoso aqui novamente escapar do círculo tátil para outras sensações, ele ainda mais desafia a matéria, impregnando-se até mesmo na mais inconsistente, volúvel, das radiações. Como pode fisicamente uma radiação transparente ser de uma espessura viscosa? Ocorre aqui um cronotopo viscoso. Mas de que forma entendemos a idéia de cronotopo se a luminosidade parece ser, neste caso, um fenômeno essencialmente espacial, e não temporal? Não é difícil responder a isso se notarmos que a imagem de uma luz viscosa, neste romance, aparece na extrema mobilidade do taxi, de onde está a observar Ricardo Reis as imagens que passam, uma velocidade que confere nitidamente a intensidade do tempo que perpassa sobre a janela do automóvel e sobre a estrutura do espaço sujo. O viscoso simula um movimento quando várias imagens pegadiças são contempladas fragmentadas, como cenas fotográficas que repetidas velozmente ganham uma força quase cinematográfica, qual uma sucessão de fotogramas que aparentam um prosseguimento de duração, uma temporalidade. Para tais imagens (os charcos, as sarjetas, as tabernas, as

luzes, um copo) não há um foco de percepção situado num local específico, parado num ângulo único. Está ele em

movimento, é o vidro da janela de um táxi que se locomove por uma Lisboa cinzenta, chumbosa (sabemos que o chumbo é um elemento informe, utilizado em várias ligas. A presença do visco também verifica-se nas colorações do espaço), registrando não apenas coisas, mas fatos (instantes congelados que recebem um movimento abstrato). Arlindo Machado, estudando anamorfoses do cronotopo (duplicidades de pontos de vista na construção de imagens), explica que o cinema, diferentemente da cronofotografia, nos dá uma impressão de movimento, o que seria uma ilusão de ótica. “[...] Já é conhecida a crítica que faz Bergson da síntese cinematográfica do movimento. O cinema – afirma o autor de L’Évolution

Créatice – trabalha com um movimento falso, com uma ilusão do movimento, pois se o que ele faz é congelar instantes,

mesmo que bastante próximos, o movimento é o que se dá entre esses instantes congelados, isso justamente que o cinema não mostra. Daí porque a ilusão cinematográfica opera com um movimento abstrato, uniforme e impessoal, um movimento que – ainda segundo Bergson – existe no aparelho e com o qual fazemos desfilarem imagens (Bergson, 1939: 330) [...].” (MACHADO, Arlindo, Anamorfoses cronotópicas ou a quarta dimensão da imagem, in PARENTE, André (org), Imagem

Máquina. A era das tecnologias do virtual, Editora 34, Rio de Janeiro, 1996, pp.101-102.) / Enfim, lembremos das palavras

de Walter Benjamim quando compara o ofício da pintura ao do cinema: "(...) O mágico e o cirurgião estão entre si como o pintor e o cinegrafista. O pintor observa em seu trabalho uma distância natural entre a realidade dada e ele próprio, ao passo que o cinegrafista penetra profundamente as vísceras dessa realidade. As imagens que cada um produz são, por isso, essencialmente diferentes. A imagem do pintor é total, a do operador é composta de inúmeros fragmentos, que se recompõe segundo novas leis. Assim, a descrição cinematográfica da realidade é para o homem moderno infinitamente mais significativa que a pictórica, porque ela lhe oferece o que temos o direito de exigir da arte: um aspecto da realidade livre de qualquer manipulação pelos aparelhos, precisamente graças ao procedimento de penetrar, com os aparelhos no âmago da realidade (...)" (BENJAMIN, Walter.“A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” in Magia e técnica, arte e

política, trad. Sergio Paulo Rouanet, Brasiliense, São Paulo, 1994, p.187) / Ricardo Reis, no coração da cidade, observa

imagens como um cinegrafista. O pintor é aquele que formula fixações da paisagem. Mas, para Ricardo Reis, o foco de percepção parece penetrar cirurgicamente no corpo da cidade, assumindo o delicado comportamento móvel das pinças que tocam órgãos vivos e pegajosos, tratando suas realidades como imagens filmadas por uma câmera. Ricardo Reis é o personagem saramaguiano que melhor representa este contato blanchotiano entre a escrita, ou o pensamento, e um híbrido fixo-fluxo, um pegar-e-largar, a impossibilidade da leitura, a impossibilidade da obra. Saramago chama ao escritor, nomeia o escritor, exatamente como o é para Blanchot: essencialmente um ser paratópico, de um movimento falso, da solidão, da lama, do visco, do neutro, da junção entre o fluxo e o fixo.

Será agora, tal gesto de escrever, cobrado por uma opinião reativa formada antes mesmo de ir além de uma doxa inicial? Uma doxa que voltaria a ser requerida para então seguir o redemoinho, ainda invisível, para... Para onde? Para? Ir é "voltar" para doxa. -

Paradoxa - (se se bem entende Barthes).

Formações reativas: uma doxa (uma opinião corrente) é posta, insuportável; para me livrar dela, postulo um paradoxo; depois esse paradoxo se torna grudento, vira ele próprio uma nova concreção, uma nova doxa, preciso ir mais longe em direção a um novo paradoxo. 8

A doxa segue a ser para-doxa e o paradoxo não pára, ou seja, convoca outra vez à reiteração, à obsessão tautológica.