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Possuirá, o texto "A Linguagem ao Infinito"1, de outono de 63, um topos inicial? Ao menos possui um ponto de partida. Trata-se das palavras de Maurice Blanchot: "Escrever para não morrer". Mas acrescenta-se "ou talvez mesmo Falar para não morrer". Qual seria a importância deste acréscimo: "falar"? Porque não se começou o texto simplesmente dizendo- se "escrever para não morrer: uma tarefa sem dúvida tão antiga quanto a fala"? Quem sabe o acréscimo tem uma relevância futura, talvez ele não quer, utopicamente, simbolizar tanto a incompletude das primeiras palavras, que tocam o valor da escrita, como se ainda não dissessem tudo, mas principalmente botar em cena uma relação com a fala. Tal relação inicial entre fala e escrita será estrategicamente retomada adiante ao definir o signo como uma invenção que possibilitou o elo da fala com a continuidade, entretanto, tendo sido um aparecimento ontologicamente visível, justamente porque a fala não queria morrer.

Quer dizer, ao acrescentar ao que disse Blanchot, Foucault criou a condição pós- utópica de tomar o aspecto semiológico original de que haveria uma linguagem se articulando atrás e para além dela mesma. Ou seja, um caminho duplo, uma "dobra originaria", em suas palavras. Caminho duplo este, que, em 66, lhe interessa em "As palavras e as coisas"2, quando após explicar o sistema de assinalações e semelhanças, na epistémê do séc XVI, fala- se da Lei confiada às Tabuas, onde simbolicamente a escrita precede a fala, na natureza e no saber dos homens.

Em 67, o caminho duplo é outra vez percorrido, na mesa redonda "Nietzsche, Freud, Marx"3, entretanto pelo viés arqueológico da mudança dos sistemas de interpretação no séc XVI ao séc XIX. A escrita foucaultiana, nesta ocasião, é muito diferente, pois a preocupação está principalmente em avivar o surgimento do jogo da negatividade do signo no séc XIX. No entanto, Foucault evidencia a dupla suspeita que formam esta "dobra originária" resistente no essencialismo da escrita. Em síntese: primeira suspeita: a linguagem não diz o que diz; segunda suspeita: há outra coisa que diz.

De todo modo, "escrever" ou "falar" para não morrer: eis a questão propulsora. Mas o texto não apenas parte destas palavras, como, nesta operação de desdobramento, as aplica

1

FOUCAULT, Michel. "A Linguagem ao Infinito" in Michel Foucault. Estética e Pintura, Música e Cinema, org. Manuel Barros da Motta. Forense Universitária. (Tel Que, n 15, outono de 1963, ps. 44-53.)

2

FOUCAULT, Michel. "A prosa do mundo" in As Palavras e as Coisas, trad. Salma Tannus Muchail, São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 55.

3

FOUCAULT, Michel. "Nietzsche, Freud, Marx" in Arqueologia das Ciências e História dos sistemas de Pensamento, org. Manuel Barros da Motta, Forense Universitária. ('Nietzsche, Freud, Marx', Cahiers de Royaumont, t. VI, Paris, Ed. de Minut, 1967, Nietzsche. ps. 183 -200. Colóquio de Royaumont, julho de 1964.)

novamente um processo de dobra, as redobra. Ou seja, as duplica, com todo efeito de jogo de espelhos ao infinito, que Foucault mesmo teria como argumento inicial. Primeiro, temos a representação literária desta relação dupla entre o relato do relato como fuga do infortúnio e, simultaneamente, os infortúnios como uma dádiva divina que marca o próprio começo da linguagem. Depois, isto se configura reduplicando-se, ao longo do texto, nas seguintes imagens: a de Ulisses que foge da morte através do canto de seus infortúnios; a história borgeana do escritor condenado ao fuzilamento que, ao levar a cabo sua obra, cria um "labirinto visível de repetição"; a carta de Suzanne, de "La Religieuse" (de Diderot), cuja história conta a própria carta; o inseto de Kafka; Dom Quixote; a obra de Sade; e o inevitável episódio narrado por Shehrazade.

Em certo momento, o texto conta-nos que, diferentemente do ideograma, a escrita alfabética ocidental, por si mesma, engloba uma espécie de duplicação, no sentido de remeter o símbolo grafado aos elementos fonéticos que o significam, e, não propriamente ao sentido mesmo. Então o espaço desenrolado neste texto encontra-se igualmente implicado no efeito natural de dobramento. Foucault assume consciência disto, não apenas porque toca constantemente em tal assunto, mas, de certo modo, quando ainda mais insiste numa densidade incessante: uma vez que a idéia de dobra (pli) parece ser, não tão somente o seu instrumental, como também, um efeito conjunto de dispêndio e de acúmulo perseguido pelo próprio Foucault. Em outras palavras, ao mostrar a "configuração do espelho ao infinito contra a parede negra da morte" como um estatuto dilemático de toda linguagem escrita, Foucault não apenas defende isto como "coisa" a falar, algo a se entender por suas palavras, como aparentemente o seu próprio modo de dizer desdobra-se como redobramento.

Vejamos, por exemplo, que Foucault começa com palavras de Blanchot e, após reduplicá-las com uma série de cenas literárias, de certa maneira, não deixa de finalizar com elas mesmas, quando explica o paradoxo da biblioteca, a transição da ordem do livro no espírito retórico4, onde o livro, antes espaço que adquire figura, agora, é lugar dos lugares do

4

Gérard Genette, em Figuras, explica que teóricos como Domarion (lendo La Fontaine) e Fontanier (lendo Boileau) utilizavam da Retórica (Rhétorique) para produzir uma diferença entre o sentido e o jeito de exprimi-lo. Deste modo, postulavam uma possibilidade de tradução da linguagem metafórica para um suposto código simples (Assim, o verso de La Fontaine “sobre as asas do tempo a tristeza voa”, é traduzido por Domairon por o sofrimento não dura sempre. E sobre a frase de Boileau “o sofrimento monta na garupa e galopa com ele” há uma significação dada por Fontanier: ele monta o

cavalo com seu sofrimento e não o esquece ao galopar.) Haveria, portanto, um espaço, chamado de figura, entre o que o

poeta escreveu (linguagem real, estilo figurado, "enfeitado") e o que ele pensou (linguagem virtual, estilo simples, "grau-zero do signo"). Entretanto, Genette mostra que o paradoxo da retórica está nesta definição de figura que é quase tautológica, mas não totalmente, pois coloca o "ser" da figura no fato de "ter" uma figura, ou seja, uma forma. O último grande retórico francês, Fontanier, esclareceu essa controvérsia levantando contra Dumarsais a questão da catacrese. A catacrese ( ex: pé da mesa, folha de papel) é um tropo forçado, imposto pela necessidade, pela falta da palavra adequada. A catacrese é uma metáfora forçada pois a palavra exata não existe, mesmo sendo a palavra pé, em “pé da mesa”, uma palavra primitivamente reservada ao corpo humano, não se pode comparar, no caso da catacrese, com outra, não há como traduzí-la para uma forma simples. Fugindo desta postura da literatura como uma ordem baseada na ambigüidade dos signos, Bachelard, por exemplo,

próprio livro, lugar de consumo de todos os livros. Se a instauração lingüística da possibilidade da morte subsiste, tal como a fala articula sua fuga, então, estabelece-se uma ordem biface, ambivalente. Esta ordem dupla termina com a descrição do caso da Retórica e da biblioteca, onde a palavra desaparece e o livro morre, porque está duplicado como a figura de si mesmo, serializado, dentro de uma pressuposição formal de ordem. (O ato de tomar um livro da estante da biblioteca será um ato de agressão a ela, de "terror", visto que se elimina a sua ordem5, sua forma, até então pacífica entre outros livros?)

Foucault começa com as palavras que relacionam escrita e morte e menos as prolonga, produz próteses, do que as prolifera, as faz murmurar, as persegue no jogo do duplo. Mas terá ele simplesmente lançado-se neste movimento, neste transe, de tornear Blanchot, com as ferramentas de imagens literárias que vão desde As mil e uma noites à economia e transparência dos romances de terror, para ter encontrado o que o outro precisamente já encontrara? Para responder sobre esta infinitude de um Foucault-giratório que encontra o já encontrado, seria, quem sabe, interessante relacionar a proposta de "A linguagem ao Infinito" com um fragmento de Blanchot do livro "A conversa Infinita":

-Lembro-me que a primeira significação da palavra encontrar não é de forma alguma encontrar, no sentido do resultado prático ou científico. Encontrar é tornear, dar a volta, rodear. Encontrar um canto é tornear o movimento melódico, fazê-lo girar. Aqui não existe nenhuma idéia de finalidade, ainda menos de parada. Encontrar é quase a mesma palavra que buscar, que diz "dar a volta em".

- Encontrar, buscar, girar, ir em volta: sim, são palavras indicando movimentos, mas sempre circulares. Como se o sentido da busca fosse necessariamente um giro. Encontrar inscreve-se nesta grande 'abóbada' celeste que nos deu os primeiro modelos do movediço imóvel. Encontrar é buscar a relação ao centro, que é o próprio inencontrável.6

Ou seja, Foucault menos nos explica algo que parte de Blanchot, do que opera um fenômeno superior de rotação informe, de giro, de disseminação, de abóbada, por sobre suas palavras - entre aspas - "primordiais". Foucault não apenas fala, como ensina, assim, circulando sobre um centro inencontrável (a questão do duplo) que também é círculo, que a

insiste em centrar o olhar fenomenológico como o único válido para a compreensão do espaço poético. Sempre que encaramos “o autor quer dizer”, “poderia ter dito”, perigamos assemelharmo-nos ao antigo espírito retórico que concebe uma duplicidade entre o signo virtual e o literal. No entanto, a fenomenologia, no intento de driblar a retórica, obviamente ainda não chega aos modos de compreensão da relação entre linguagem e infinito alcançados pelos textos de Foucault e Blanchot. Pode-se ver melhor o assunto em: GENETTE, Gérard. Figures I.Paris: Éditions du Seuil, 1966, pp. 205-222.

5

Não esqueçamos da ordem hexagonal da "Biblioteca de Babel" borgeana: "[...] A biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajor atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem numa mesma ordem (que, reiterada, seria uma Ordem). Minha solidão alegra-se com essa elegante esperança [...]" BORGES, Jorge Luis, "A biblioteca de Babel" in Ficções, trad. Carlos Nejar, São Paulo: Globo, 1997, p.92.

6

BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. A palavra plural (palavra de escrita), trad. Aurélio Guerra Neto. São Paulo: Escuta, 2001, pp.63,64.

linguagem narra a si mesma. Portanto, veja-se que no capítulo "O círculo" de O espaço

Literário, Blanchot parece disseminar-se, por sua vez, em torno do que diz Kafka, autor que,

neste texto de Foucault, surge apenas como ilustração: "Escrever para poder morrer - morrer para poder escrever."(p.90). Sobre estas palavras de Kafka, Blanchot circula:

... se Kafka caminha na direção do poder de morrer através da obra que escreve, isso significa que a própria obra é uma experiência da morte da qual parece ser imprescindível dispor previamente a fim de se chegar à obra e, pela obra, à morte. Mas pode-se também pressentir que o movimento que na obra é aproximação, espaço e uso da morte, não constitui, de modo algum, o mesmo movimento que conduziria o escritor à possibilidade de morrer. Pode-se até supor que as relações tão estranhas do artista e da obra, essas relações que fazem depender a obra daquele que só é possível no seio da obra, uma tal anomalia provém dessa experiência que subverte as formas do tempo, mas, ainda mais profundamente, provém de sua ambigüidade, de seu duplo aspecto de que Kafka exprime com excessiva simplicidade nas frases que lhe tomamos: "Escrever para poder morrer - morrer para poder escrever": palavras que nos encerram em sua exigência circular, que nos obrigam a partir daquilo que queremos encontrar, buscar apenas o ponto de partida, a fazer assim desse ponto algo que só nos aproximamos distanciando- nos dele, mas que autorizam também esta esperança: onde se anuncia o interminável, a de apreender, a de fazer surgir o término.7

Numa análise muito complexa, chamada "Kafka: por uma literatura menor"8, no capítulo oito ("Blocos, séries, intensidades"), Deleuze e Guattari já identificaram a escritura de Kafka como uma instância onde o infinito, o limitado e o descontínuo acabam por ocupar o mesmo lado. Em torno de uma "lei transcendente desconhecida", Kafka acabaria girando, por sua vez. Em outro texto também de Deleuze, chamado "um novo arquivista" do livro "Foucault", estuda-se, desta vez, a topologia dos enunciados a partir do filósofo. Deleuze refere-se a Foucault como o determinador de um novo paradigma e o aproxima de Blanchot.

Foucault junta-se a Blanchot, que denuncia toda 'personologia' lingüística e situa os lugares do sujeito na espessura de um murmúrio anônimo. É no murmúrio anônimo sem começo nem fim que Foucault pretende se estabelecer, no lugar que os enunciados lhe reservam. E talvez sejam esses os enunciados mais comoventes de Foucault9.

"A linguagem ao infinito" não é portanto um desejo de continuação de uma frase blanchotiana, "Escrever para não morrer", nem a continuação de seu acréscimo, "Falar para

7

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário, trad. Álvaro Cabral, Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p.90

8

DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. Kafka. Por uma literatura menor, trad. Júlio Castañon Guimarães, Imago: Rio de Janeiro, 1977.

9

não morrer". A continuação que, talvez, se vai para chegar ao ponto de "perda do fôlego", do "momento de calar-se", como bem foi descrito no caso da ingenuidade dos romances de terror no séc XVIII, esse "espaço mortal" de um "dispêndio infinito". Neste sentido, trata-se de um movimento que, pelo contrário, descontinua o tempo todo, trazendo exemplos artísticos de um escrever simbólico que se lança ao imaginário duplo, escritas que tematizam a "dobra". Em sua aula inaugural no collège de France, em dezembro de 1970, chamada "A ordem do discurso", Foucault fala do "princípio de descontinuidade". Ele não acredita que, para além e abaixo dos princípios de rarefação (autor, comentário) exista uma extensão de falas reprimidas e enunciados contínuos que devemos conceber e atualizar. Não há, portanto, a crença, em Foucault, numa evidência pré-discursiva esperando pelo nosso apuramento de fixação e resgate.

O texto "Linguagem ao Infinito" traduz este princípio da "descontinuidade"10, (presente em Kafka), e em si mesmo fermenta um esforço de cerimônia da dobra original, é um texto que se faz escutar em sua cintilação quase literária, em sua fuga também, e não se apresenta como audição de uma simples acumulação. É um texto que, ao repousar, neste mesmo instante de repouso, acrescenta. Se ensina algo, o faz no mesmo instante que circula, e se se move o faz na justa medida que comove, para usar o verbo de Deleuze quando se refere aos enunciados onde Foucault junta-se a Blanchot, seus enunciados mais comoventes.