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LUZENTE DESCONTINUIDADE

Assim, Foucault renomeia-se. Depois da mudança de nome, leva para a notabilidade de sua assinatura, um nome renomado, um nome "re-parado". Reparado: no entendimento de um nome que não mais carrega a deslocação de uma responsabilidade paterna, abjurando a linhagem. Quer dizer, que pára: uma vez, aos dezessete anos, quando muda o nome por vontade pessoal, outra vez, pela assinatura renomada ao vir a ser um autor de livros. No entanto, reparado outrossim na condição de poder tornar reparável, remediável, um nome repelido, continuado de um outro. Reparável, ainda, se quisermos multiplicar sentidos, no efeito semelhante ao renomado: reparado nas assinaturas das suas obras, aquela firma que saiu das escuras do anonimato para estampar-se na capa de tantos livros, para designar-lhes uma propriedade, uma aquisição, um valor.

Essa descontinuidade do próprio nome, essa possibilidade soberana de pinçar uma designação indesejável, uma unidade enunciativa, de seu próprio nome, de descer ao que há de subjetivamente "baixo", na esfera do desejo, em seu próprio nome, é também um ato de renomeamento ascendente, eis a ambivalência. Explicando melhor: ao mesmo tempo, o reconhecimento de uma queda e a emergência de uma possibilidade de "cura", de regeneração, um renome que sobe à galáxia dos autores que discutem o tema do nome próprio

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de autor. E, em outras palavras, um renome próprio que vai ao renome da autoria, ao próprio renome. Um renome que bota em causa a origem do nome e a glória do nome.

A privação do "Paul" que vinha antes do "Michel" é um dado instigante. Nos dias de hoje, ao ler a grafia desse nome: Paul-Michel Foucault - o que perturba nosso costume na qualidade de leitores da obra desse escritor - sentimos ressoar um nome colossal, um nome de Autor (uma assinatura - Michel Foucault), que está ostensivamente ali, preservado, congelado, entretanto precedido por um desconexo monossílabo anônimo, desalentador, protegido e apartado por um medíocre hífen. Afigura-se pertencente a um outro-eu proprietário, que por mais esnobe e pretensioso, ao despurificar um nome ímpar nas belles-lettres da filosofia, não poderia o ser mais do que esse nome pequenino (Paul-), apoiado num conectivo gráfico, conhecido nas gramáticas mais formais como "traço-de-união" - mas que o evidencia como um lapso, como corte, como algo alheio, ali grudado, o pequeno rasto duma mancha indesejável.

TEIA DOS HÍFENS (Foucault e Fournier)

O hífen, no nome pessoal de batismo de Foucault, portanto, apresenta tanto uma acepção de corte, quanto de contato (viscosidade). Há uma anomalidade simbólica, uma contradição, uma "loucura" (mania), nesse hífen, posto que joga um sentido que une e separa - amarra, conecta, liga, puxa e, simultaneamente, desconstrói o centro significativo de um significante, de um próprio, instaurando um hiato, um vazio, entre os dois nomes. "Paul", o nome negado, suplemento renegado, em primeiro, qual uma prótese do indesejável passado. "Michel Foucault", o nome querido, requerido, logo depois do hífen. (Visto que falamos em uma "loucura" nesse hífen, recordemos que o próprio Foucault foi um grande estudioso da anormalidade, das marcas da loucura - tendo inclusive, durante os anos cinqüenta, trabalhado num hospital psiquiátrico por mais ou menos três anos - elaborando todo um maciço trabalho arqueológico a respeito. "Les anormaux", título do famoso curso no Collège de France, em 74 e 75, ano em que publica também Vigiar e Punir: História da violência nas prisões)46. Há

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Por um lado, é certo que Foucault retirou o "Paul" de seu nome próprio, que se tratava do nome do seu pai, e também negou seguir a carreira de cirurgião, mas, por outro, não negou a influência do pai no que tange os estudos da medicina, que aliás foi uma de suas mais importantes aventuras. Assim, sob tal perspectiva, Foucault nega e, ao mesmo tempo, admite a figura paterna, busca uma exterioridade a ela quando também a encontra no seu interior. Paira, ainda hoje, certa crítica às fases mais experimentais em que Foucault, por exemplo, sentiu a loucura de perto, nos anos cinqüenta. Muitas antipatias existem sobre o que há de tendência pragmatista, ou laboratorialista, mas convenhamos que foi uma fase de extrema importância para as curiosidades que, na época, atormentavam-no. Numa entrevista, diz o filósofo: [...] Después de haber

estudiado filosofía quería saber lo que era la locura: había estado suficientemente loco como para estudiar la razón, y era lo suficientemente razonable para estudiar la locura.[...]" (FOUCAULT, Michel. "Verdad, Individuo y Poder" in Tecnologias del yo. Y otros textos afines, trad. espanhol de Mercedes Allendesalazar, Barcelona: Paidós/I.C.E.-U.A.B., 2000, p.144).

outro sobrenome prestigioso, dentre tantos, nas belles-lettres, que começa com "Fou" (louco): Alain-Fournier.

Francês que sofreu uma morte misteriosa, desaparecendo na mesma floresta em que decorre o espaço da narração de seu único romance Le Grand Meaulnes (traduzido para o português como O bosque das Ilusões Perdidas47), constitui-se como outro caso de escritor clássico com alteração de registro. Ele chamava-se Henri Alban Fournier. "Alban" passou para "Alain" e um emergente hífen apagou o hiato entre nome e sobrenome, sintetizando assim uma designação ímpar: "Alain-Fournier".

Alain-Fournier, cujo verdadeiro nome de batismo é Henri Alban Fournier, nasceu em La Chapelle-d'Angillon, Cher, a 3 de outubro de 1886. Descendente de uma vasta família de professores e camponeses, passaria toda a infância no campo. Teria uma vida um tanto triste, meio isolado e quase sem amigos. Compensaria a pobreza de sua vida social com uma rica vida interior, repleta de maravilhosos sonhos, fazendo da própria vida uma coleção de signos e uma liturgia, que mais tarde somente poderia encontrar a paz e a tranqüilidade através da criação literária.48

Os dois pertencem a tempos distintos da cultura francesa, mas eis um caso contrastante e em parte similar ao nome próprio de Foucault: um e outro sofreram alterações, entretanto, Fournier recebeu um hífen e Foucault renegou o seu. Foucault marcava-se pelo "Paul" de seu pai, ao passo que Fournier, trazia a presença nominal materna, pelo "Alban", que vinha a lembrar "Albanie Fournier", nome de sua mãe. Na busca de produzir um nome único, de encontrar a "paz artística", Fournier convoca um hífen que ainda mais o une ao seu sobrenome paterno, o dos camponeses humildes. Ele crava uma relação aditiva, uma simbiose, entre nome e sobrenome. Fournier era o camponês, que ingressa nas fileiras do exército como soldado, logo que fracassa nos exames para a Escola Normal, e morre numa missão de reconhecimento em 1914. Foucault, por sua vez, passará o período da Segunda Guerra na condição de um adolescente fascinado por nomes como Freud, Marx, Hegel,

Após três meses de estudos práticos, reflexões diretas com os loucos, sabe-se que o próprio Foucault começa a se perguntar sobre a necessidade daquela experiência. Peter Pál Pelbart, num artigo que evidencia os ganchos entre Blanchot, Foucault e Deleuze, no tema da relação entre literatura e loucura, dirá que a loucura "[...] já estaria perdendo sua dimensão de exterioridade. Foucault, em 1964, chega até a profetizar o seu gradual desaparecimento. Se até agora a loucura era para o homem essa Exterioridade enigmática, que ele excluía mas na qual se reconhecia, que espelhava tudo aquilo que ele mais abominava mas também tudo o que ele era na sua constituição mais original, o seu Outro mas também o seu Mesmo, agora, diz Foucault, neste futuro que se avizinha, a loucura deixará de ser este estranho essa Exterioridade, essa questão, para incorporar-se ao humano como o seu próprio mais originário. Processo ao qual demos o nome, irônico talvez, de 'humanização' da loucura. Através dele e de sua dialética diabólica teremos conseguido o impensável: abocanhar o nosso próprio Exterior.[...]" PELBART, Peter Pál, "Literatura e Loucura" in Imagens de Foucault e Deleuze. Ressonâncias

nietzchianas, Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p.292.

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FOURNIER, Alain. O bosque das ilusões perdidas. Trad. Maria Helena Trigueiros, São Paulo: Abril Cultural, 1985.

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Heidegger49, Nietzsche50. Foucault era filho de uma família que lhe pressionava uma carreira brilhante de cirurgião, e, no entanto, seu interesse era ser admitido com sucesso na École

Normale Supérieure de Paris, a famosa escola da rua d'Ulm, onde conhecerá amigos e

mestres como Althusser e Jean Hyppolite. Quer dizer, em um, Fournier, pesa-lhe o discurso biográfico de desilusões e desencantamento, raros amigos, como Jacques Rivière, que acompanharam sua depressão ao mundo escriturístico. Em outro polo, flutua o fascínio e a limpidez intelectual, a eminência irradiante de Foucault.

Muito embora as aparências digam outra coisa, não há inocência em Fournier: imerso na solidão e na pobreza de sua vida social, ele busca a instauração de um nome original, singular, extravagante, e para tanto abusa do hífen, pois sua meta é o nome de autor. Justamente para legitimar-se no seio dessa sociedade abominável que tão poucos amigos guardou para o escritor, era preciso um outro nome próprio, o que seria uma "compensação". Enquanto que Foucault, anos depois, sem sequer sonhar que um dia viria a ser Michel Foucault (assinatura ímpar de tantos livros importantes), anula uma relação nominal com a paternidade, ao subtrair um "Paul" atrelado a um hífen. Por esse modo de ver, Foucault apresenta-se, como disse uma vez Blanchot, no estado de un homme en danger51. Em sua

despretensão na fundação do nome pessoal de autor, um rapaz estava em perigo - ele mal sabia que estava a produzir um nome próprio que, num horizonte por vir, viria a ser o de autor. Foucault escorregava na escolha do nome de autor, resvalava rumo à ciranda da

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Ocorre um parentesco entre o mergulho antropológico de Foucault, esquema de elo histórico que passa pela crítica do nome próprio, e as repercurssões analíticas da ontologia heideggeriana. Note-se o texto do prefácio da 4a edição brasileira de "O que é um autor", por José A. Bragança de Miranda e António Fernando Cascais: "[...] Evidentemente que a crítica do autor, a recusa do nome, a crítica da nomeação, tem o seu motivo numa dada interpretação da experiência moderna. Seria bem necessário pô-la em evidência, mas não é esse nosso objectivo. Basta dizer que a sua falta explica o escândalo provocado pelo tão incompreendido anúncio da 'morte do homem' com que Foucault concluía o livro Les Mots et les Choses (1966). Apesar das semelhanças facilmente apontáveis com a carta Ueber den Humanismus (1946) de Heidegger, todo esforço foucaultiano se joga num afastamento da filosofia, em direção a uma teoria da experiência historicamente determinada pela modernidade. Já nos anos 60 essa intenção era bem explícita afirmando que 'tal como Dumézil o faz para os mitos, eu tentei descobrir normas estruturadas da experiência cujo esquema pudesse encontrar-se com modificações a níveis diversos', e o esquema que buscava passava claramente pela crítica da subjectividade, que muito heideggerianamente considera como princípio constitutivo do pensamento moderno, e de sua maneira de visar a experiência, dramaticamente cindida entre um romantismo subjectivista e um iluministmo objectivista. (...) Essa complexidade deve-se ao facto de Foucault se inserir na linha da ontologia fundamental de Heidegger, mas com uma diferença essencial que passa pelo deslocamento da ontologia para a antropologia. Ou seja, em vez de seguir a via aberta por Heidegger de uma ontologia fundamental, procurará desenvolver o programa da Daseinsanalitik, dentro de uma perspectiva histórica, o que o obriga a suspender a própria filosofia [...]". MIRANDA, José A. Bragança de, CASCAIS, António Fernando, "A Lição de Foucault" in FOUCAULT, Michel, O que é um autor?, trad. Antônio Fernando Caiscais e Eduardo Cordeiro, Rio de Janeiro: Passagens, 1992, pp.6 e 17.

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Numa entrevista conferida no início dos anos oitenta, Foucault fala sobre suas influências de leitura desta fase: "[...] Cuando era estudiante en los años cincuenta, leí Hussel, Sartre, Merleau-Ponty. Cuando uno nota una influencia avasalladora, trata de abrir la ventana. De modo paradójico, Heidegger no es demasiado difícil de compreender para un francés. Cuando cada palavra es un enigma no se está en una posición demasiado mala para entender a Heidegger. El ser y el tiempo es difícil, pero sus obras más recientes son más claras./ Nietzsche fue una revelación para mí. Sentí que había alguien muy distindo de lo que me habían enseñado. Lo leí con gran pasión y rompí con mi vida [...]" FOUCAULT, Michel. "Verdad, Individuo y Poder" in Tecnologias del yo. Y otros textos afines, trad. espanhol de Mercedes Allendesalazar, Barcelona: Paidós/I.C.E.- U.A.B., 2000, p.146.

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representação de uma assinatura predestinada à fama, quando precisamente sustentava uma "infâmia", a que era desdobrada contra o nome do pai. Era para extinguir uma autoria do nome e não gerar outra...

Mas, ambos os hífens, nos casos fortuitos de Foucault e Fournier, são marcas paradoxais de nomes de escritores que resolveram mudar o nome próprio e onde se vê o sinal de uma designação abjurada. O hífen aparece como o vestígio de um nome de batismo que serviu de placenta para um novo. Um nome velho, usado, abandonado nas sombras de um hífen posto que um dia alguém se envergonhou dele. Dizemos "marcas paradoxais" devido, igualmente, o fato de "positivarem", por assim dizer, um novo nome próprio, um nome de autor, mas serem, em sua forma simbólica (-), qual uma negativa, a marca de uma ausência, de uma recusa, um "não", um "menos". É bem instigante essa imagética gráfica no nome próprio de escritor. Os dois, expoentes das belles-lettres francesas. Um, escritor de literatura, que apenas escreveu um único romance, e entrou para a história dos clássicos. Outro, escritor de filosofia, de história, de uma arqueologia, de uma obra híbrida e inconfundível. Foucault mesclou sua autoria com a escritura, despontando, em suas sutis e delicadas construções filosóficas, todo um bien-écrire, ao passo que Fournier tomou o hífen que Foucault não quis. Alain-Fournier escreveu um fino romance, apenas um, que suspendeu seu nome à constelação dos escritores, aos flashes franceses.

CAPÍTULO IV

D esafio babélico

E m torno de Théos

R egime do poder (a fala e o fora)

R elevância derridiana

I nomimável

D eus (o autor) e seu semblante

"À l'échec"

"Os nomes eram depositados sobre aquilo que designavam, assim como a força está escrita no corpo do leão, a realeza no olhar da águia, como a influência dos planetas está marcada na fronte dos homens: pela forma da similitude. Essa transparência foi destruída em Babel para

punição dos homens."

Michel Foucault. As palavras e as Coisas

Tendo enfatizado, dentre as questões genéticas do nome próprio, a da blasfêmia do Pai, a metáfora da “torre” é realçada. Deus ocultado no outro lado do tabuleiro: Deus Absconditus. O estudo inclina-se para o teológico, como antes fizera na translação da hóstia, afinal estamos nos paradoxos do nome sagrado de Thèos. Mitologicamente, a imagem da nomeação é a principal manifestação genesíaca de poder. Babel: nome próprio e comum, quando o hebreu se desmantelou e o pacto das similitudes se perdeu no jogo da tradução. Depois, estuda-se um caso interessante: o erro na Bíblia Perversa, efetuado por R. Barker. No final, tudo levará à Torre de Xadrez e explorar-se-á essa correlação lúdica.