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SOPRO DE ÍCONES A PIRATARIA

Ou seja, o ofício da arte perdeu seu sentido de utopia e passa, por sua vez, a elevar o de uma atopia - no rumo significativo atribuído por Barthes, o de inqualifiable.

L'atopie de l'autre, je la surprends sur son visage, chaque fois que j'y lis son innocence, sa grande innocence: il ne sait rien du mal qu'il me fait - ou, pour le dire avec moins d'emphase, du mal qu'il me donne. L'innocent n'est-il pas inclassable (donc suspect à toute société, qui ne 's'y retrouve' que là où elle peut classer des Fautes)? X... avait bien des 'trait de caractère', par lesquels il n'était bien pas difficile de le classer (il était 'indeiscret', 'ficelle', 'paresseux', etc.), mais il m'avait été donné à deux ou trois fois reprises de lire dans ses yeux une expression d'une telle innocence (pas d'autre mot) que je m'obstinais, quoi quíl arrivât, à le mettre, en quelque sorte, à part de lui-même, hors de son propre caractère. A ce moment-là, je l'exonérais de tout commentaire. Comme innocence, l'atopie résiste à la description, à la définition, au langage, qui est maya, classification des Noms (des Fautes). Atopique, l'autre fait trembler le langage: on ne peut parler de lui, sur lui; tout attribuit est faux, douloureux, gaffeur, gênant: l'autre est inqualifiable (ce serait le vrai sens d'atopos)13 Seu novo despontamento parece ser, cada vez mais, onipresente.14 Uma vez que eram uma força de questionamento e apagamento dos próprios fundamentos que as institucionalizaram, as artes minimal, conceptual, a antiarte, ao invés de provocarem uma desmaterialização da noção de arte, teriam desembocado numa generalização da materialidade estética. (Frederic Jameson procura distinguir o utopismo político existente entre a arte conceitual e a arte pós-moderna. Uma vez que a primeira forma de epistéme sobre o espaço era a de se produzir uma expressão inexistente, acabava, por assim dizer, ainda reproduzindo

relação de domínio. Ao invés da coação física, tem-se um controle por gestão político-moral, sem gerar efeitos pessoais, mas efeitos disciplinares de sistema. É o modelo organizador que gera efetivamente poder: 'toda a sua essência consiste na posição central do inspetor, combinada com meios testados e eficazes para ver sem ser visto'. Assim como a vitrina, que faz ver sem, entretanto, deixar perceber o código de seu processo de atração, o panótico permite visão por um centro invisível. De modo bastante diferente da mitológica relação de Eros com Psiquê, o olhar instituído pelo sistema disciplinar moderno tem a sua força potencializada ou intensificada pelo aumento da dissimetria entre aquele que vê e aquele que é visto. Não se trata mais da supremacia de um sobre o outro, do afrontamento dual em que, a qualquer instante, o termo dominado possa fazer reverter a situação (Psiquê olhando Eros), mas de uma relação organizada de poder, amplificada por vias de uma máquina disciplinar, homóloga às disposições mais profundas da ordem social vigente. Entretanto, há muito de mítico- religioso na máquina panótica: o 'poder universal'preconizado por Bentham, na realidade poderes de ubiqüidade e onividência, é algo que evoca a força do olhar divino, o olho de Deus.[...]" SODRÉ, Muniz. Televisão e Psicanálise. São Paulo: Ática, 1987, pp. 25, 26. ( Sobre esse assunto do panótico, ver também: FOUCAULT, Michel. "Le panoptisme" in

Surveiller et punir. Naissance de la prison. Paris: Gallimard. 1975, p.228.)

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BARTHES, Roland. "Atopos" in Fragments d'un discours amoureux. Paris: Éditions du Seuil, 1977, p.44.

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São muitos os teóricos a tentar decifrar ou a apontar o dedo da crise para tal fenômeno de uma estetização que parece genérica. Baudrillard o chamará de fenômeno transestético. "[...] Até o mais marginal, o mais banal, o mais obsceno estetiza- se, culturaliza-se, 'musealiza-se'. Tudo o que é dito, tudo se exprime, tudo toma força ou modo de signo. O sistema funciona não tanto pela mais-valia da mercadoria mas pela mais-valia estética do signo[...] O que nos fascina num quadro monocromático é a ausência maravilhosa de qualquer forma. É o apagamento - ainda sob forma de arte - de toda sintaxe estética, assim como o que nos fascina no transexual é o apagamento 'ainda sob forma de espetáculo' da diferença sexual [...] Estamos no ultra - ou no infra-estético. Inútil procurar em nossa arte coerência ou destino estético. É como buscar o azul do céu do lado infravermelho ou do ultravioleta [...]" BAUDRILLARD, Jean. "Transestético" in A transparência do Mal.

"a lógica do sistema". A arte pós-moderna, em contrapartida, procuraria expressar o espaço em suas antinomias políticas, vale dizer, desconstruir conceitos, repolitizar sobre a lógica pre- textual, os pilares, que presumem a convenção da própria totalidade institucional15). De todo modo, a estética encarnou, em contrapartida, em toda parte, de modo vertiginoso e operacional. No entanto, seria equivocado responsabilizar unicamente essas novas formas de desordem, propositadamente catastróficas dentro do próprio campo artístico, pela estetização exorbitante que se mistura à publicidade, ao panfletário e à mídia.

A antiarte, e o que sucedeu depois dela, consistem também num fruto histórico de toda uma convenção do páthos de apaziguamento das adversidades, da emergência totalizadora da mixagem cultural que deflagra um defasamento da subjetividade local, de metamorfose visível dos espaços em prol da escalada dos valores do mercado por sobre os valores da estética. Apesar da eventualidade deste fenômeno transestético, não podemos descartar uma distinção crucial ao analisar-se os resquícios de peculiaridades ainda existentes nos espaços chamados artísticos. A obra perdida no mundo (ir)real, o universo simbólico maior, freqüentemente não nos possibilita a identificação imediata de um nome de autor específico. Sequer sabemos quais são os indivíduos criativos que compõem a corporação mental poderosa que preside o cartaz publicitário da coca-cola. Este narcisismo da imagem mesma, não impedirá, de modo algum, a voracidade de nossos consumos, tanto material quanto estético. Não importa qual é a autoria artística por detrás do produto, que, por sua vez, está atrás da imposição imagética.

É uma cadeia indefinida de presenças de imagens atrás das próprias imagens, eliminando o duplo e potencializando a prótese, formando ícones que nos possibilitam acessar a homogeneidade estética do consumo, dos desejos, dos saberes. Já, por outro lado, se vamos ao museu, queremos saber quem efetivamente pintou tal ou qual quadro, quem, sofrendo de certos impulsos utópicos, colocou aquela garrafa de coca-cola em determinada posição e

quem a chamou de obra. Mesmo sabendo que, afinal de contas, qualquer um, praticamente,

pode ocupar o nome próprio responsável por ter feito aquilo. X ou y podem estar fantasmados numa rubrica, sob o pretexto da generalidade a-política que estaria atrás daqueles materiais.

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"[...] a arte conceitual certamente também se encontra sob o signo da espacialização, no sentido de que, sinto-me tentado a dizer, toda problematização ou dissolução de formas herdadas nos deixa abandonados no próprio espaço [...] Haacke descontrói: o termo da moda parece inevitável quando pensamos em sua obra (e ele recobra algo de seu sentido forte original, político e subversivo, em tal contexto). Sua arte tem uma corrosão cultural e política europétia; a de Gober é tão americana quanto a dos Shakers ou de Charles Ives, sua comunidade ausente, seu 'público invisível', é constituído antes por leitores de Emerson do que de Adorno. Sinto-me tentado a sugerir que essa forma de arte conceitual - pois é disso que se trata - difere de seu oposto na medida em que constrói um conceito que já existe, do tipo dos que Haacke e outros desconstroem, mas sim uma idéia de um conceito que ainda não existe [...]" JAMESON, Frederic, “O utopismo depois do fim da utopia”, in Pós-

Entretanto, a finalidade aparentemente já não importa mais, tanto na restrição da galeria, quanto na amplidão da urbanidade museificada.

Estamos infectados pelo desejo de consumir a imagem (e seu autor, e seu nome), tanto quanto seu desdobramento indefinido no corpo urbano. Eis o que parece ser antes uma medida antibiótica, uma ab-reação da descontinuidade, que guarda o princípio estético de sua dispersão na anomalia da totalidade, sua proliferação imprevisível. Mas, dilematicamente, quando estamos perante a pirataria de ícones, incrivelmente, não nos interessam os piratas.

Por outro lado, lembremos o apontamento de Barthes, quando explica que a própria originalidade do autor sempre se perde ao sopro da escrita:

Sem dúvida que foi sempre assim: desde o momento em que um facto é contado, para fins intransitivos, e não para agir directamente sobre o real, quer dizer, finalmente fora de qualquer função que não seja o próprio exercício do símbolo, produz-se este desfasamento, a voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escrita começa.16

O que nos contam e o que contamos... Quando o fato não possui uma finalidade imediata ao "real", ocorre um defasamento onde a origem vira ausência. Na circularidade da fala, não importa mais os que nos contam. Nós não importamos, ao contarmos. E o conto alimenta-se a si mesmo, tal como o portagarrafas apaga Duchamp. A assinatura já se expunha. Não vem a ser, e não vem a ter, origem (arché), nem mesmo fim (telos). Posse impossível.

Fig. 22. "Livro eletrônico Cybook (Cytale S.A)" [Deus, um itinerário, p.377]

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UM "F"

Em Autobibliografias, Abel Barros Baptista, para trabalhar a questão da unicidade do exemplar de um livro como posse impossível, evocará uma personagem: Giácomo, o livreiro de Barcelona (representação da figura do bibliômano, o colecionador de livros cuja experiência singularizante é o conhecimento do "sacrifício da transmissão do livro"17). Trata- se do primeiro conto publicado por Flaubert, aos quinze anos de idade, portanto, Giácomo é o nome de seu primeiro "filho" ficcional, seu primeiro protagonista. Contudo, aí vai o nó: Giácomo não é um personagem específico de Flaubert, uma vez que, evidentemente, o autor copiou esse conto de uma notícia possivelmente "real", de 23 de outubro de 1836, de um jornal de Jurisprudência e Debates Judiciários, de número 3465, Gazette des Tribunaux. Giácomo é o mesmo Dom Vicente, o livreiro catalão noticiado na Gazette, assim como Baptista é o mesmo Augustin Patxot, o portador inimigo do livro raro. Trata-se de um personagem, totalmente solitário, "de ar gauche e atrapalhado", que dedica sua vida, sacrificando-a, em prol do ideal de construção de uma grande e valiosa biblioteca, um verdadeiro templo. Assim, passa todo o tempo possível cultuando o valor material, físico, de seus livros. É, um dia, acusado de matar Baptisto, para roubar-lhe uma Bíblia raríssima, e confessa o crime, mesmo tendo podido escapar da morte. Somente ele teria queimado o outro livreiro para roubar-lhe a Bíblia, mas nega as provas de seu próprio advogado que quer inocentá-lo, para que esta Bíblia fosse vista como o único exemplar, e não perdesse seu valor. Assim, o valor de Giácomo é menor do que o de seu livro.

Giácomo não é um sábio, não é um erudito, mal sabe ler, apenas ama o cheiro, a forma e, principalmente, o título de seus livros. Ele ama o nome de seus livros, e cuida-os, com todo afeto que um pai pode dispensar a filhos adotivos. Esses costumes e paixões o fazem um ser marginal. Flaubert descreve que "(...) Em Barcelona era considerado um homem estranho e

infernal, um sábio ou um feiticeiro (...)"18.

Giácomo é o nome desse filho feiticeiro de Flaubert. É, igualmente, o nome apagado, obliterado, pelo nome de seus exemplares únicos, dos livros valiosos que mantém sob seu poder e cujas letras dos títulos o apaziguam, o acalmam o espírito. Há um contrato perverso entre Giácomo e a paz da biblioteca que é cobrado com o preço de sua vida. Pensemos, novamente, na entidade marginal que já trabalhamos, a do feiticeiro. Flaubert é quem

17

BAPTISTA, Abel Barros, "Excurso sobre o bibliômano" in Autobibliografias, Campinas: UNICAMP, 2003, p. 85.

18

FLAUBERT, Gustave, Bibliomania (seguido de "Crime do livreiro catalão"), trad. Carlito Azevedo, Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001, p.21.

assemelha Giácomo ao universo da feitiçaria, apesar de ser ele, desta vez, quem tocará fogo no inimigo (Baptista, o outro livreiro, o rival, como ocorria com os feiticeiros na época da Inquisição). E o feiticeiro parece ser realmente uma figura combinatória com o bibliômano, tendo em vista o fator histórico de que os feiticeiros do séc XV e XVI eram homens pouco instruídos formalmente, mas que tinham em suas mãos estranhos e valiosos livros de magias, manuscritos transmitidos com todo sacrifício, a escuridão preciosa do livro fechado, traço que identifica a bibliomania.

Desde logo, não é exato que Giácomo não saiba ler. Está fora de dúvida que Giácomo não é um erudito, mas: Il savait à peine lire (Flaubert 1936: 79). Se bem que não leia os livros e manuscritos que possui, sabe reconhecê-lo pelo título: a dado passo, quando procura um exemplar raro num alfarrabista árabe, percorre os títulos e percebe que o exemplar que procura não está ali19.

O título de um livro, ou o nome de um livro, é o elo identificatório que conecta o bibliômano com seu objeto, o reconhecimento de seu filho, sua posse. Mas, além disso, há o fator da raridade, o fator mágico. Quanto mais exclusivo este livro, maior a sua mágica, maior a feitiçaria, o delito maldoso de se estar a apropriar um exemplar único, que ninguém mais possui, a ponto de enfrentar a morte em nome desse poder sinistro, inimitável, original. Então ocorre a ligação possessiva, extremamente material, constante em Giácomo. "[...] Não! não

era de modo algum a ciência o que ele amava, mas a sua forma e expressão; amava um livro porque era um livro; amava seu cheiro, sua forma, seu título. O que ele amava em um manuscrito era sua data antiga e ilegível, os caracteres góticos, bizarros e estranhos [...]"20. Mas essa paixão exclusivamente material do bibliômano possui um liame com a transmaterialidade da feitiçaria, os traços bizarros e góticos a evocam, pensemos em Blimunda. O feiticeiro é aquele covarde poderoso, de estranhos saberes, que se escamoteia nas periferias da cidade para não morrer queimado, mas, justamente, mais que isso, esconde- se para preservar as escrituras da magia. O feiticeiro é também capaz de dar sua vida em nome a essa transmaterialidade pecaminosa que lhe envolve, possui uma assinatura no próprio corpo − é a corajosa Blimunda que vai transgredir a hóstia sagrada, é Giácomo que sobreporá, no final do conto de Flaubert, o livro único à sua própria vida.

19

BAPTISTA, Abel Barros, "Excurso sobre o bibliômano" in Autobibliografias, Campinas: UNICAMP, 2003, p.87

20

FLAUBERT, Gustave, Bibliomania (seguido de "Crime do livreiro catalão"), trad. Carlito Azevedo, Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001, p. 20.

Duas transgressões do nomos social: Blimunda transgride a cristandade e Giácomo a esfera da jurisprudência. Ao mesmo tempo, em ambos, um valor sacro que está no próprio valor de transgressão, mas, em todo caso, uma figura de ruptura, uma figura que se volta ingenuamente contra o nome do Pai. E assim o faz porque em troca recebe a posse mágica, inexplicável, de um poder (transmaterial ou material, pouco importa). Essa posse do livro, do bibliômano, não condiz com possessão - um cruzamento de forças múltiplas -, e sim com feitiçaria. O nome próprio de Giácomo resulta, ainda, na crença da biblioteca, na fé da ordem, na escritura como dimensão tópica.

O fato que condiz com possessão de um estado de convulsão, a escritura como dimensão atópica, é o nome próprio de Flaubert, nesse jogo de uma autoridade ou não- autoridade sobre o filho, Giácomo, e o próprio conto "Bibliomania". Expliquemos melhor: há um conto anterior, cuja história é totalmente igual, o da Gazette des Tribunaux. O que muda são os nomes próprios dos personagens e o modo de narrar a história. Flaubert não apenas se inspirou numa história anterior como a tomou inteiramente e então a reescreveu, de modo um pouco mais elaborado mas sem mudar nada de essencial praticamente, e, depois, publicou sob sua assinatura. O nome próprio Flaubert, ali, não pode ser encarado como o nome do autor da história, no entanto, seu nome se pretende, de algum jeito, como o nome de autor. Este conto consta na obra de um autor que assina "Flaubert". Acontece que ele simplesmente apaga o verdadeiro pai da história, quando assina apenas um "F", no lugar de Flaubert, ao publicar seu primeiro escrito. Isso cria a noção de que Flaubert volta-se contra os verdadeiros autores da história, mas a outra luz de uma rebeldia marginal, ou, para voltar às metáforas anteriores, de modo pouco feiticeiro. Flaubert está possuído, qual Kafka. Flaubert, em seu primeiro texto, é um nome que age como receptáculo de outros nomes, se auto-apaga, bem como outras autorias anteriores que ali estão obstruídas. Se vamos tentar descobrir então quem realmente escreveu a história, o nome próprio do verdadeiro pai, temos aí, primeiramente, a possibilidade desta ter sido uma história verídica, o pai é o próprio real. Toda uma profusão de escritores se apropriaram dessa história, desde o séc XIX.

[...] a notícia da Gazette conheceu enorme sucesso, inspirando dezenas de autores que a copiaram, reinterpretaram, recontextualizaram, em diversas línguas, até quase cem anos depois. O periódico literário alemão Serapeum (Leipzig, 1843), os Cuadernos

contemporaneos, de Dom José de Castro y Serrano (Madrid, 1872), Jules Janin (Le Livre, Paris, 1870), Prosper Blanchemain (Miscellanées Bibliographiques, 1879-80),

Andrew Cim (que produziu quatro versões: Amateurs et voleurs de livres:

emprunteurs indélicats; Voleurs par amour des livres, voleurs par amour d'argent; Vols dans le bibliothèques publiques, chez les éditeurs, librairesm bouquinistes, etc.,

Paris, 1903; Paris, 1905; Paris, 1906; Paris 1908) ou ainda o editor R. Miquel y Planas (La llegenda del llibreter assassí de Barcelona, Barcelona, 1928), que endossa a tese de que o texto da Gazette teria sido escrito por Nodier, todos tornaram célebre, no meio literário e da bibliofilia o crime do bibliômano catalão21

O dado que podemos extrair, então, é o seguinte: Flaubert não é, exclusivamente, o nome de autor do conto "Bibliomania", mas o nome de escritor, ou um dos nomes de escritor que se apropriou dela. Ou seja, ele não pode ser visto como o nome próprio de quem fez a história, assinatura como revelação e esclarecimento do escrevente, mas sim de um certo modo de a contar, de um certo bien écrire atuado sobre a história original. Mas, não há um original tópico, e, assim, como nome de escritor, põe-se como o responsável por uma narrativa sem começo. Ressaltemos que não é seguro que houve uma história real, apenas uma história original contada "talvez" por Charles Nodier, um escritor que escreveu vários romances de terror ou fantásticos como A fada das migalhas, de 1833, mas também trabalhou com críticas literárias. Cogita-se, ainda, que o autor verdadeiro do relato judiciário do bibliômano de Catalão tenha sido um tal Prosper Mérimée, que, inclusive, "(...) na juventude enganou os leitores com uma impostura literária intitulada Teatro de Clara Gazul, publicada em 1825 como tradução de uma obra espanhola cuja existência jamais se verificou (...)"22.

Estamos, exaustivamente, diante de toda uma série de dados, talvez falsos, que, portanto, ao tentarmos segurar, deslizam dos dedos, configurando uma impossibilidade de posse de nome de autor, e de tomada ambiciosa do lugar do pai. Não podemos configurar uma detenção segura de um nome próprio do pai dessa história de Giácomo. Também não podemos dizer que ela foi real. E o mais interessante é que Flaubert assinou o seu conto

Bibliomanie, seu primeiro texto, seu primeiro filho, apenas com a inicial de seu nome próprio,

um simples "F". Um "F" de Flaubert, um "F" de fim, ou fadiga, e simultaneamente, de fuga, força, do nome próprio. Esse "F" é uma confissão de Flaubert. A confissão de que seu nome próprio não condiz com a autoria exata, é o "F" de filho, a confissão de que não há autoria exata desta narrativa, ou talvez haja, mas não se pode ter segurança disso. Esse "F" bota em estado de convulsão extrema o processo de centralização do pai do conto, não houve um começo, não haverá um fim, não há nome de autor que seja próprio.

21

FLAUBERT, Gustave, Bibliomania (seguido de "Crime do livreiro catalão"), trad. Carlito Azevedo, Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001, pp.11,12.

22

FLAUBERT, Gustave, Bibliomania (seguido de "Crime do livreiro catalão"), trad. Carlito Azevedo, Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001,p. 73.