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Analisando o terceiro momento

No documento neildarochacanedojunior (páginas 185-192)

6.4. Terceiro momento: coletando dados

6.4.3. Analisando o terceiro momento

A análise desse terceiro momento leva em conta, principalmente, a introdução das tecnologias informáticas, assim como a chegada de Vidal ao coletivo. Ou seja, a introdução dessas novas mídias e de um novo sujeito na comunidade dessa atividade.

No caso das mídias informáticas temos, enfim, a presença tão esperada da Internet. Porém, a forma como apresentei essa mídia aos demais sujeitos configurou mais um conjunto de prescrições do que um convite à exploração. Minhas sugestões eram claras: considerar somente as viagens de ida, para um adulto, e em um site específico. Além disso, as busca deveriam ser feitas em intervalos de cinco em cinco dias.

Por outro lado, a própria Internet com seus links parecia fazer o convite à exploração. Além disso, o fato dos resultados relativos aos preços das passagens serem obtidos por meio de pesquisas na Internet tirou de cena a ocorrência de apenas uma resposta correta, como aconteceu no segundo momento com as mídias escritas. Como os resultados não estavam dados, mas precisavam ser pesquisados, foi deixada uma brecha para as possibilidades investigativas.

Ao longo desse terceiro momento, sugestões para que as possibilidades oferecidas pela interface do site fossem exploradas e minhas prescrições fossem desafiadas emergiram das falas dos sujeitos. Sugestões que partiram de Sara e, principalmente, das colocações feitas por Vidal. Isso nos leva a considerar a chegada desse outro convidado ao coletivo. Para Vidal, os convites representados pela interface do site pareciam estar sendo aceitos. Ele mencionava clicar em comprar a passagem, fazer a busca para cada um dia ao invés de cinco. Sempre apontando para o que via escrito na tela e fazendo comentários e sugestões.

Mas é preciso olhar para as ações desse sujeito de forma mais detalhada. A princípio, as atitudes de Vidal pareciam ser de afronta. Logo no encontro que praticamente marcava a sua estreia esse aluno acessou uma página de games on- line e se pôs a jogar, enquanto eu sugeria a forma como as pesquisas deveriam ser feitas. Vidal não fazia a menor questão de esconder sua atitude. Ao contrário disso, chamava-me para que eu pudesse ver o seu desempenho de jogador, imitando o som do carro com a sua voz.

Essa atitude remete aos seus próprios relatos quando da concessão de sua entrevista individual. Vejamos alguns trechos.

Neil: Agora, eu queria que você falasse sobre estudar. O que você pensa sobre

estudar?

Vidal: Muito ruim.

Neil: Isso é pouco, fala mais. Vidal: [Risos].

Neil: Por que é ruim?

Vidal: Ah, não sei explicar não.

Neil: Tenta explicar o que que tem de ruim em estudar, o que que faz você não

gostar?

Vidal: As professoras. Neil: Mais alguma coisa? Vidal: Não.

Neil: Em que as professoras...

Neil: Acordar cedo e as professoras. Mas, o que nas professoras? Vidal: Ah, são enjoadas demais.

Neil: Como assim?

Vidal: Muito chata, as professoras. Neil: Que tipo de chatice?

Vidal: Tudo. [Risos].

Neil: Dá o exemplo de uma chatice. Vidal: [Silêncio].

Neil: Dá o exemplo de uma chatice. Vidal: Não sei.

Neil: Não sabe?

Vidal: Tem tantas. [Risos]. Neil: Fala uma.

Vidal: Ah, mais ai eu esqueço.

Neil: Uma atitude das professoras que você não gosta, fala pra mim. Vidal: Ah. [Silêncio].

Neil: Qual atitude, dá um exemplo claro. Vidal: Muita gritaria.

Neil: As professoras gritam?

Vidal: É, ué. Com os outros (ENTREVISTA INDIVIDUAL VIDAL, arquivo mp3 do CD

anexo, 1:10-2:32).

Após mencionar que não gosta de estudar e que não suporta as gritarias das professoras. Pergunto o que o faz estudar e ele responde.

Neil: Então, por que você tem que estudar? Vidal: Porque você tem... é obrigado. Neil: Obrigado?

Vidal: É, ué.

Neil: Quem te obriga?

Vidal: Minha mãe e meu pai, ué. Neil: É?

Vidal: É.

Neil: Então você estuda porque seu pai e sua mãe obrigam? Vidal: É, ué.

Neil: E se eles não obrigassem e deixassem por sua conta? Vidal: Eu não estudava não.

Neil: Não estudava? Não? Vidal: Não.

Neil: Então, no fundo, no fundo, estudar, pra você, é uma obrigação que seus pais

te impõem? É isso?

Vidal: Hurrum [afirmando]. (ENTREVISTA INDIVIDUAL VIDAL, arquivo mp3 do CD

anexo, 4:10-4:43).

Para Vidal, vir estudar é uma obrigação. Um fardo que, segundo ele, seus pais o obrigam a carregar. Mais adiante na entrevista, Vidal fala sobre a aula de Matemática.

Neil: Vamos pensar na aula de matemática como ela acontece lá. Vamos, primeiro,

nos restringir à aula...

Vidal: [Interrompendo minha pergunta] Bagunça? Neil: Tem bagunça?

Vidal: Tem.

Neil: Por que você acha que tem bagunça? Vidal: Porque eu faço [risos].

Neil: Mas por que você faz bagunça?

Vidal: [Mais risos] Porque não tem como você ficar o dia inteiro dentro da sala de

aula sem fazer não, ué.

Neil: Não tem como. Por quê?

Vidal: Ah, Porquê... Ficar escutando o professor falar?

Neil: Você não da conta de ficar só escutando o professor falar. Então você... Então

você faz bagunça por quê? Tenta explicar por que você faz bagunça.

Vidal: Porque eu gosto, ué.

Neil: Você gosta. [Pausa] Você acha certo? Vidal: Não.

Neil: Então por que você faz?

Vidal: Porque... Tem que fazer [risos].

Neil: Mas por que tem que fazer? Você tem que ter um motivo pra você fazer

bagunça.

Vidal: Ué... Então... É porque eu gosto, ué. Meu motivo. (ENTREVISTA INDIVIDUAL

VIDAL, arquivo mp3 do CD anexo, 11:57-12:49).

Vidal nem ao menos deixa que eu formule a pergunta a respeito da aula de Matemática e se antecipa em dizer que faz mesmo é bagunça. Percebo a postura que Vidal diz ter na aula de Matemática como bastante próxima da que assumiu no primeiro encontro no laboratório de informática com relação ao referido jogo dos carrinhos. Lembremos que Vidal repete o sexto ano pela segunda vez. Ao que me parece, a bagunça que Vidal diz fazer é uma forma dele dizer não às ações que se sente obrigado a praticar na escola, embora tenha mencionado apenas o caso específico da aula de Matemática. Porém, no que se refere à participação de Vidal nas práticas de Modelagem, nem só de afronta e bagunça suas ações se constituíram.

Entre uma partida de game e outra Vidal fez pesquisas relativas ao tema viagens. No episódio referente à segunda entrevista coletiva sua participação foi ativa e pertinente. Além disso, da mesma forma que Zeca nos primeiros encontros, Vidal foi um grande questionador da liderança implícita que Sara exercia sobre os demais. Liderança que, em certa medida, era favorecida por minhas ações. Diferente de Zeca, que deixou o coletivo, Vidal conseguiu equilibrar a hierarquização

na divisão horizontal de tarefas que, até então, configurava-se na comunidade. Dessa forma, a presença de Vidal na comunidade moldou a relação entre os sujeitos bem como suas ações. Até mesmo os monólogos entre mim e Sara, comuns nos dois primeiros momentos, foram bem menos frequentes.

Por outro lado, minhas sugestões sobre a maneira como os alunos deveriam realizar as pesquisas acabaram soando como prescrições. Apesar dos alunos, Sara e Vidal principalmente, apontarem para as possibilidades de exploração, a tradicional relação hierárquica entre professor e alunos continuou marcando presença na comunidade dessa atividade de seres-humanos-com-mídias, configurando uma divisão vertical de tarefas e impondo prescrições em forma de regras.

Ainda sobre a comunidade, temos um silêncio nos diálogos entre os alunos mediante as pesquisas que realizam na Internet. Como já mencionei, percebo que a disposição da mobilha e dos equipamentos da sala de informática da escola favorecem esse silêncio dos alunos. Silêncio que demandou a realização da segunda entrevista coletiva, a qual veio a configurar o oitavo episódio analítico.

No que diz respeito ao objeto dessa atividade, percebo novos motivos emergindo. Falo da postura de alguns dos alunos frente às possibilidades oferecidas pelos links dos sites da Internet. Rafa parece ser um adepto das redes sociais, principalmente o Facebook, e dos games que possuem links nesse site. Vidal se mostra um adepto dos jogos on-line. Lembro que no início do episódio referente à segunda entrevista coletiva, esses dois sujeitos pediram para que eu lhes concedesse acesso livre à Internet após as pesquisas referentes ao trabalho.

A relação de Rafa com essa rede social veio à tona na entrevista individual concedida por esse aluno. Revelando que os motivos relativos às redes sociais e aos games on-line podem ser reflexos de atividades vizinhas sobre as ações desse coletivo.

Neil: O laboratório de informática, que a gente ta aqui dentro fazendo essa

entrevista, ele te ajuda a aprender Matemática?

Rafa: Um pouco sim e um pouco não.

Neil: Ah... Vai ter que me explicar isso melhor. Como assim?

Rafa: Ah, porque dá pra fazer um trabalho de Matemática... E, fora isso, eu só fico...

Eu entre no Facebook. (ENTREVISTA INDIVIDUAL RAFA, arquivo mp3 do CD anexo, 9:06-9:28).

Esse relato de Rafa sinaliza que a emergência dos motivos referentes às redes sociais e aos games pode ser explicada pelo fato desses alunos não perceberem a Internet enquanto ferramenta de aprendizagem. De forma que a presença da Internet como uma mídia no âmbito de um coletivo que produz conhecimentos é estranha a eles.

Além disso, segundo o Educador Matemático Marcelo Borba, a Internet exerce uma atração sobre seus usuários que pode produzir uma espécie de vício. Ele usa o termo “um orgasmo a cada clique” para se referir à maneira como as pessoas ficam presas à estrutura hipertextual que a Internet oferece (informação verbal)34.

Essa atração de parte dos sujeitos pelas opções que a Internet oferece fez emergir novos motivos, os quais precisam ser considerados mediante o objeto dessa atividade de seres-humanos-com-mídias (KAPTELININ, 2005). A influência dessa mídia informática na configuração dos motivos e na consequente expansão do objeto mostra que o papel dessas mídias nas ações desse coletivo, considerado aqui como uma atividade de seres-humanos-com-mídias, ultrapassam a condição de artefatos mediadores.

Isso nos remete às questões levantadas por Souto e Araújo (2013, p.87).

[...] qual é o papel das mídias no construto teórico seres-humanos-com- mídias? Se, por um lado, elas medeiam a atividade dos sujeitos na produção do conhecimento, então elas seriam artefatos. Se, por outro lado, elas próprias se transformam dialeticamente na atividade dos sujeitos, elas seriam objetos.

Enquanto mídia desse coletivo, a forma como a Internet se apresenta não faz se limita à ação de mediar as ações dos sujeitos. Da mesma forma em que ela não pode ser considerada o objeto dessa atividade. A influência que essa mídia exerce na esfera motivacional dos sujeitos faz dela uma atriz que influencia tanto na maneira de agir dos sujeitos como nos motivos dessas ações.

Mas, de que forma esses motivos relacionados à Internet interagem com o objeto dessa atividade? É importante distinguir as relações entre esses novos motivos e aqueles relativos aos pontos avaliativos. Uma vez que, enquanto os motivos relativos aos pontos pareciam incentivar as ações dos sujeitos na direção da

34 Palestra proferida na XVI Conferência “GPIMEM 20 anos: Tecnologias Digitais em Educação

Matemática”. no dia treze de abril de 2013 pelo Prof. Dr. Marcelo de Carvalho Borba, em Rio Claro (SP). Link para o vídeo disponível em <www.rc.unesp.br/gpimem>, último acesso em 15/05/2014.

produção de conhecimentos sobre o objeto viagens. Os motivos relacionados à atração exercida pela Internet sobre alguns alunos parecem concorrer com esse objeto.

Inspirado em Kaptelinin (2005), proponho discutir a presença dessas duas classes de motivos a partir de uma versão alternativa do exemplo da caçada primitiva coletiva de Leontiev (1978b). Imagine que dois caçadores tomem parte desta caçada. Para o primeiro, provar que é um caçador eficiente é fundamental, pois pretende tomar a filha do chefe da tribo como esposa, honra concedida apenas ao melhor dos caçadores. A necessidade de mostrar as habilidades de caçador configura um motivo que faz com que esse sujeito desempenhe na caçada no sentido de abater a caça da forma mais eficiente possível. Já para o segundo caçador, a morte do animal é menos interessante, uma vez que seus motivos se voltam às práticas com as armas. Esse outro caçador é aficionado em fazer coreografias com as armas de caça e adora exercitar essa prática enquanto o coletivo de caçadores persegue o animal. Dessa maneira, sua ação de dançarino não favorece sua atuação como caçador e não contribui para o abate do animal.

Voltando às práticas de Modelagem dos nossos alunos, em que um coletivo de seres-humanos-com-mídias pratica ações no sentido de aprender sobre viagens, o objeto da atividade, podemos comparar os motivos referentes aos pontos avaliativos com os do primeiro caçador. Pois, da mesma forma que sua participação na morte do animal contribui com a realização de seus motivos de noivo da filhado chefe, as ações que levam os alunos a aprender sobre viagens colaboram, pelo menos na visão deles, para que obtenham os pontos que necessitam para serem aprovados.

Já os motivos que levam os alunos às redes sociais e aos games on-line podem ser comparados com o do caçador que faz coreografias. Uma vez que, longe de contribuir com a aprendizagem sobre o tema viagens, a manifestação desses motivos concorre com as ações dirigidas ao objeto da atividade.

Na figura 12, temos a representação referente a esse terceiro momento, dessa atividade de seres-humanos-com-mídias.

Figura 12: A representação da atividade de seres-humanos-com-mídias no terceiro momento.

Fonte: Elaborada pelo próprio autor.

No documento neildarochacanedojunior (páginas 185-192)