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Episódio 5: o dia vinte e sete de junho

No documento neildarochacanedojunior (páginas 154-160)

6.3. Segundo momento: definindo uma problemática

6.3.3. Episódio 5: o dia vinte e sete de junho

Esse episódio corresponde ao quinto encontro, após um período de interrupção em razão da greve. Venho com a intenção de mostrar aos nossos alunos a flutuação que o valor das passagens aéreas pode sofrer com relação à data da compra. Ainda sem poder contar com pesquisas feitas na Internet pelos alunos, pois ainda estávamos sem o acesso, pesquisei por minha própria conta o valor de das

passagens aéreas e rodoviárias referentes a duas viagens: Rio de Janeiro – Salvador e Rio de Janeiro – Curitiba (figura XXXX).

Figura 8: O valor fixo da passagem rodoviária e o valor flutuante da passagem aérea nas viagens Rio

– Curitiba e Rio – Salvador.

Nesse encontro, o grupo contava com a presença de Sara, Teves e Rafa. Após ligar os gravadores e posicioná-los próximos a cada um dos três grupos começo a atender um grupo de cada vez. Nosso grupo fica por último e só depois de uns dez minutos é que me dirijo a eles. Nesse período, Sara canta vários trechos de músicas ao gravador, Rafa também cantarola de vez em quando. Toda vez que para com a canção, Sara chama por mim. Em determinado momento peço para que parem de cantar e Rafa argumenta que estão chamando por mim e eu não vou, por isso cantam.

Os alunos me aguardam para que eu possa mostrar-lhes o que fazer, prescrevendo-lhes uma tarefa. Essa atitude passiva dos alunos reflete a dinâmica das suas aulas de Matemática. Como já mencionei, configura-se nessas aulas a tradição do paradigma do exercício. Marcada por explicações, exemplificações e prescrições por parte do professor. Combinada com uma postura de ouvintes passivos e de cumpridores de tarefas prescritas por parte dos alunos. Sem a prescrição pela qual aguardam, resta aos alunos chamarem por mim e se distraírem com outras coisas. Cantar ao gravador parece ser uma boa forma de fazer o tempo passar enquanto me aguardam.

Após quase dez minutos, vou até o nosso grupo e entrego uma dessas listas de preços (figura 8) a cada um dos alunos. Ao observar a lista Sara parece não compreender e pede explicações.

Sara: Por que tem só avião aqui professor? Neil: Oi?

Sara: Por que só tem preço de avião? Neil: Não, de ônibus ta aqui, ó.

Sara: Só dois de ônibus.

Neil: Não. Mas... O que é que eu queria mostrar pra vocês? O ideal é que a gente

pudesse entrar na Internet. O preço do ônibus é esse aqui. Não importa se você vai viajar amanhã, ou daqui a alguns meses. Esse é o preço. No caso do avião. Isso aqui, inclusive isso aqui são dias que já passaram, né? Isso aqui foi uma consulta feita no dia dezoito de abril. Olha o que está acontecendo com o preço da passagem do avião.

Sara: Ta diminuindo...

Neil: Diminuindo como? De acordo como o que?

Sara: De acordo com o que? Ah, professor... Com... A data?

Esse trecho de diálogo entre mim e Sara, primeiramente, explicita a relevância da ausência da Internet no coletivo de seres-humanos-com-mídias, ausência que chego a mencionar em minha fala. Também mostra minha intenção, ao apresentar a lista de preços da figura 8, de fazer com que os alunos percebam que a passagem de avião varia com relação à data da compra e a de ônibus não. No decorrer da conversa tento levar os alunos a compreenderem essas peculiaridades relativas a essas duas passagens. Porém, Sara parece ter dificuldades para compreender as informações da maneira em que estão postas na lista de preços da figura 8. Pois questiona o fato de só haver um valor de passagem para cada uma das duas viagens de ônibus e vários para as de avião. A maneira como a lista está apresentada exige que os alunos relacionem a passagem de avião, a de ônibus e a data da compra da passagem de avião, e Sara está tendo dificuldades com essa mídia escrita. A conversa segue comigo tentando levá-la a compreender as informações postas na lista.

Neil: O ônibus é fixo. Mas o avião, por exemplo, se o cara comprou a passagem pro

dia dezoito é esse preço. Aqui são quantos dias depois?

Sara: Três dias depois?

Neil: Dezoito, dezenove, vinte, vinte e um, vinte e dois, vinte e três, vinte e quatro,

vinte e cinco. [Contando nos dedos]

Sara: Sete dias depois...

Neil: Sete dias depois. Uma semana depois. O preço já era esse. Depois, quantos

dias depois do dia vinte e cinco de abril e o dia dois de maio? Tenta olhar no calendário. Tem calendário aqui na sala?

Sara: Dá o calendário aí. [Pedindo a alguém, que não pude identificar nas

gravações, para apanhar o calendário que fica pendurado na parede da sala de aula]

Neil: Aqui, abril, ó. Que dia que é de abril aí? Sara: Aqui não é abril não professor.

Neil: Olha aí.

Sara: Dia vinte e cinco.

Neil: Dia vinte e cinco de abril até o dia dois de maio, olha. Vinte e cinco de abril, tá

aqui ó: um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete. [Contando os dias no calendário] Então, os dias estão contando de sete em sete, de uma semana. Não é? À medida que você vai comprando.

Sara: A passagem.

Neil: Vamos supor que esse dia fosse hoje, que você tivesse ligando, ou entrando

na Internet, consultando o preço da passagem. Pra comprar uma passagem pra esse dia. Seria esse valor.

Sara: Quinhentos reais.

Teves: Ô doido. [Espantado com o valor da passagem de avião]

Neil: Isso aqui é saindo do Rio pra Salvador, né? Pra esse dia: esse valor [Indico o

Sara: Cada dia que vai comprar é um valor (ENCONTRO 5, arquivo mp3 do CD

anexo, 10:41-12:07).

Uma característica desses dois últimos trechos de conversa é o fato de apenas eu e Sara estarem dialogando. A menos de uma manifestação de espanto por parte de Teves em relação ao valor da passagem de avião, quinhentos reais, ele e Rafa não se manifestam.

Com certa dificuldade, Sara consegue perceber que o valor da passagem de ônibus independe da data e que a de avião varia de acordo com o dia da compra. Agora, prossigo com a conversa no intuito de fazer Sara perceber que a passagem de avião é mais cara que a de ônibus, se comprada de última hora. Mas que, a partir de certa data, a passagem aérea comprada de forma antecipada se torna mais barata que a rodoviária.

Neil: A passagem de avião é mais cara que a de ônibus sempre? Sara: Deixa eu ver... É.

Neil: Quando que ela fica mais barata? Sara: Em cada dia que eu compro?

Neil: Não. Mas tem uma hora que ela fica mais barata. Quando que ela fica mais

barata que a de ônibus?

Sara: Quando é dia... Quando é dia vinte e... Sete de...

Neil: De que? [Não obtenho resposta] Quando que... Qual é o preço da passagem

de ônibus?

Rafa: Dois e cinco. [Referindo-se ao valor da passagem do ônibus circular na cidade

de Juiz de Fora naquela data]

Sara: Qual que é o preço? Rafa: Aqui? Dois e cinco. Neil: De ônibus.

Sara: De viagem? Neil: De ônibus.

Sara: Aqui? Cento e oitenta e nove. [Referindo-se ao valo da lista] Neil: Cento e oitenta e nove.

Teves: Faltou o um centavo.

Neil: Quando que a de avião fica mais barato aí? Sara: Quando? Quando abaixar o preço.

Neil: Mas em que lugar? Marca aí onde ficou mais barato [Referindo-me ao dia em

que a passagem de avião se torna mais barata]

Teves: Do Rio de Janeiro a Salvador? Aqui.

Neil: Aí! Né? [Concordando com a data apontada por Teves] (ENCONTRO 5,

arquivo mp3 do CD anexo, 12:12-13:15).

Com a entrada de Teves no diálogo, a conversa deixa de ser apenas entre eu e Sara. Além do mais, Teves mostrou que estava atento e conseguiu perceber que,

de acordo com as informações fornecidas pela lista da figura XXXX, a viagem de avião do Rio para Salvador se torna mais em conta que a de ônibus, se a passagem for comprada para o dia vinte e sete de junho em diante.

Os dados que estão na lista da figura 8 não foram inventados por mim, nem por nenhum autor de livro didático, mas sim retirados de um site da Internet. Ou seja, não configuram referências a uma semi-realidade, como define Skovsmose (2008). Pois se referem à realidade dos preços das passagens aéreas e rodoviárias entre as cidades mencionadas nas referidas datas. Mas esse grau de realidade não nos livra do paradigma do exercício que tem como premissa maior o fato de que as tarefas dadas pelo professor aos alunos possuem apenas uma resposta correta. Teves encontrou essa resposta, tratava-se do dia vinte e sete de junho.

Após o diálogo mencionado anteriormente, passo um tempo atendendo outros grupos. Nesse período, Sara me chama com insistência. Rafa tenta fazê-la desistir de chamar. Os dois brincam, cantam, marcam os dias de seus respectivos aniversários no calendário que fica em suas mãos. Em determinado momento, o fato da tarefa de Modelagem possuir peso avaliativo para o segundo bimestre daquele ano letivo, surge na fala dos alunos.

Sara: Professor. Acabou teu tempo aí. [Falando da demora de meu atendimento a

outro grupo]

Rafa: Deixa de ser boba, deixa ele pra lá. Você quer que ele vem pra cá? Sara: Eu quero ganhar ponto filho.

Rafa: Ah, Matemática é facinho (ENCONTRO 5, arquivo mp3 do CD anexo, 26:07-

26:17).

Essa preocupação com a nota, demonstrada por Sara, traz para o ambiente de Modelagem uma reminiscência do modelo didático tradicional que esses alunos vivenciam. Além do peso avaliativo associado às ações do coletivo, esse momento convive até aqui com elementos da tradição da Matemática escolar. Ela esteve presente na forma como a tarefa de pesquisar os preços nas listas foi posta por mim aos alunos e na atitude dos alunos diante das mesmas de procurarem, entre uma brincadeira e outra, pela única resposta certa que esse típico exercício admitia.

Porém, essas reminiscências da tradição do paradigma do exercício, eu repito, não devem ser consideradas apenas em termos das ações dos autores humanos no coletivo. Percebo que as ações desse coletivo de seres-humanos-com- mídias insistem em clamar pela presença das mídias informáticas, principalmente a

Internet. Essa querência das ações do grupo pela internet segue confirmando a relação de sinergia entre a Modelagem e as TIC (BORBA; VILLAREAL, 2005).

No documento neildarochacanedojunior (páginas 154-160)