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Analisando o primeiro momento

No documento neildarochacanedojunior (páginas 138-142)

6.2. Primeiro momento: um tema e várias possibilidades

6.2.3. Analisando o primeiro momento

Como fica esse coletivo de seres-humanos-com-mídias à luz da Teoria da Atividade? Nesse primeiro momento há certa incipiência no que diz respeito à constituição de um objeto para as ações que giram em torno do tema viagens. As ações, exclusivamente enunciativas, pairam no ar em um movimento de idas e vindas sem focar em um objetivo para as ações.

Tendo em vista os critérios sugeridos por Kaptelinin (2005) para a constituição dos objetos das atividades em análise: equilíbrio, inspiração, estabilidade e flexibilidade. Entendo que considerar o tema viagens como o objeto desse conjunto insipiente de ações parece plausível. Porém, as falas dos sujeitos mostram que o peso avaliativo das práticas de Modelagem (os pontos) configura um motivo que precisa ser considerado. Pois, segundo o próprio Kaptelinin (2005), todos os motivos efetivos precisam ser considerados mediante o objeto.

Além disso, as possibilidades investigativas que se descortinam nos trechos de conversa apresentados, ficam latentes nas afirmações que os alunos fazem dos preços das excursões, das viagens rodoviárias e aéreas. Pois, ao fazerem especulações e afirmações que não conduzem a uma indagação, o processo de problematização iminente não se deflagra.

Vamos rever dois desses trechos:

Neil: Olha o que ele [Rafa] ta falando. Tem duas maneiras de viajar, não é isso?

Você pode viajar fazendo uma excursão. Onde você tem um ônibus que te leva e te traz. E pode viajar comprando passagem.

Sara: Mas excursão já é mais cara, não é? Noventa conto. Rafa: Depende da excursão.

Sara: Dependendo...

Neil: Mas como é que você sabe que é mais caro? [Dirigindo-se a Sara]. Sara: Por que eu já fiz.

Neil: Você já viajou em excursão, viajou sem ser em excursão e sabe que excursão

é mais barato? Quer dizer, é mais caro?

Sara: É.

Neil: Então, você tem certeza que excursão é mais caro? Sara: É mais caro.

Neil: Mas, o quanto mais caro? Sara: O quanto mais caro? Noventa.

Nesse trecho de conversa, apesar das perguntas que coloco no sentido de convidar a uma exploração, Sara assume uma postura afirmativa que impede uma indagação que poderia desaguar em um processo de problematização e investigação (BARBOSA, 2001a). No trecho que segue, quando o assunto se volta para as viagens aéreas, Teves e Rafa também passam a fazer afirmações, agora sobre os valores das passagens.

Sara: Avião. Sabia que avião não é caro? Avião é mais barato que ônibus.

Zeca: É. Porque eles sabem que as pessoas podem morrer e pega põem barato de

uma vez. [Ironizando].

Neil: Isso é outra possibilidade. [Dirigindo-me a Sara]

Sara: Igual... A minha tia foi pegar o avião sexta-feira. De Juiz de Fora pra São

Paulo. Vinte e cinco.

Neil: Então você tá querendo me dizer que pode ser que avião fique mais barato? Sara: É. Avião é mais barato mesmo.

Rafa: Depende pra onde você vai também, né? Tem de primeira classe, de primeira

classe já é “biro-biro” a mais.

Neil: De avião? Rafa: É.

Sara: É.

Rafa: A minha tia foi viajar pra não sei aonde. Ela é tia da minha amiga. Foi viajar

pra não sei aonde, o negócio lá de segunda classe é vinte e cinco, e o de primeira classe já é...

Tevez: Já é cinquenta.

Essa atitude dos alunos de não indagarem, de não construírem uma problematização que demandaria uma investigação, pode estar refletindo as colocações de Alrø e Skovsmose (2010, p. 74).

[...] alunos costumam esperar que o professor apresente o conteúdo que quer que eles aprendam. Eles não vão propor ideias próprias porque esperam ser comandados e avaliados pelo professor. Eles não querem a responsabilidade de ter que fazer contribuições. O professor sempre termina apresentando a resposta certa ou o jeito certo de fazer.

As observações que fiz da aula de Matemática a que esses sujeitos se submetem dão razão à afirmativa de Alrø e Skovsmose (2010). A dinâmica da aula é sempre a mesma. A professora expõe o conteúdo, às vezes ditando para que os alunos copiem; resolve alguns exemplos relativos ao conteúdo em questão; e, em seguida, prescreve uma lista de exercícios. Nesses exemplos e exercícios, não observei sequer a presença das referências à semi-realidade nas quais a ideologia da certeza opera sem ser percebida (SKOVSMOSE, 2008).

Há uma supervalorização dos procedimentos algorítmicos e não percebi outros tipos de referência a não ser à Matemática pura. Além disso, as mídias informáticas não estão presentes nas aulas de Matemática desses alunos. Também não há diálogos entre eles a respeito dos conteúdos dados. Não presenciei nenhum tipo de tarefa coletiva sendo realizada por eles. As únicas mídias presentes são a palavra do professor, lápis, papel e caneta. Embora os conteúdos, exemplos e exercícios sejam retirados de um livro pela professora, eles são apresentados aos alunos no quadro negro.

O trecho a seguir, extraído da entrevista individual concedida por Teves, reforça os argumentos anteriores tomados com base nas minhas observações das aulas de matemática convencional à qual os sujeitos são submetidos.

Neil: Como você faz, por exemplo, na aula de Matemática? Como que ela

acontece?

Teves: A professora... Tem vez que ela dita pra gente fazer numa folha. Pra gente

fazer no caderno, ela copia no quadro...

Neil: O que que ela dita e o que que ela copia no quadro? Teves: Operações... Contas de menos, vezes, mais, divisão. Neil: Como você aprende a fazer essas contas?

Teves: Olhando. Quando ela dita, eu presto atenção. Neil: Mais o que você faz?

Teves: Quando ela escreve no quadro, pede pra gente esperar e ela dá os

exemplos. Depois ela diz pra gente copiar os exemplos, e apaga o quadro. Depois ela vai fazer operações.

Neil: E vocês fazem o que? Teves: O que ela manda.

Neil: Exatamente, o que ela manda? Teves: A gente fazer as operações. Neil: O que são essas operações?

Teves: Contas de vezes, mais, de menos, de divisão. Neil: Não aparece mais nada?

Teves: A raiz quadrada, as potências... (ENTREVISTA INDIVIDUAL TEVES, arquivo

mp3 do CD anexo, 8:41-9:50).

A forma como Teves se refere à aula de Matemática condiz com a dinâmica do modelo tradicional (SKOVSMOSE, 2008), no qual temos o professor expondo os conteúdos e prescrevendo exercícios e os alunos ouvindo passivamente ao professor e fazendo os exercícios por ele prescritos.

Outra consideração relativa a esse primeiro momento em que tivemos um

tema e várias possibilidades, sem que nenhuma se concretizasse, diz respeito às

humanos-com-mídias, constituído por alunos-professor-com-oralidade giram em torno de possibilidades investigavas sugerem a presença das mídias informáticas, as grandes ausentes no coletivo até aqui. Em outras palavras, os diálogos estabelecidos no coletivo pareciam querer conectar um hífen às mídias computacionais (DINIZ, 2007). Situação que evidencia a sinergia entre as práticas de Modelagem e a presença das TIC nos contextos educacionais (BORBA; VILLAREAL, 2005).

De fato, as afirmações de Sara e Rafa a respeito de preços de viagens de avião ou ônibus, de primeira ou de segunda classe, de excursão ou ônibus de carreira, poderiam levar a um convite, da minha parte, nos seguintes termos: que tal verificar esses preços em sites da Internet? Porém, por razões de ordem burocrática, a escola estava sem acesso à Internet e sem previsão para que a conexão fosse restabelecida.

Esse obstáculo externo remete a um fato narrado em Skovsmose (2007) sobre uma escola do subúrbio de uma cidade da África do Sul, há pouco livre do regime apartheid. Em uma das salas havia um buraco no telhado, configurando, segundo o autor, o maior obstáculo à aprendizagem daqueles alunos. A falta de acesso à Internet configura, de maneira metafórica é claro, um buraco no telhado criando obstáculos à possibilidade da constituição de um processo de problematização e investigação. O que tem reflexo direto com as práticas de Modelagem desses sujeitos.

Na relação entre os sujeitos desse coletivo, principiam algumas divergências. O fato do tema de Sara ter sido acatado pelo grupo e a atitude irônica de Zeca frente sinalizam para uma crise entre os sujeitos. Além disso, a postura tímida e silenciosa de Teves compromete sua participação no coletivo. A atitude de Teves parece trazer para as ações desse coletivo uma contradição advinda de atividades vizinhas (ENGESTRÖM, 1987; ENGESTRÖM; SANNINO, 2011), em que esses sujeitos tomam parte. Falo da postura pouco amigável do grupo para com Teves. Postura que foi, inclusive, relatada por esse último em sua entrevista individual.

Essa entrevista mostra que Teves não tem predição pelos trabalhos em grupo. Ele menciona o gosto que tem pelo estudo da Matemática, mas diz que prefere trabalhar individualmente, fazendo exercícios em seu livro, de preferência em casa. Além disso, fala de sua difícil relação com os outros meninos da turma, dentre os quais Rafa, do qual se diz vítima em algumas brincadeiras de mau gosto,

por vezes acompanhadas de agressões físicas e verbais. Vejamos um trecho dessa entrevista.

Neil: A não ser a dificuldade de visão, nada mais te atrapalha a aprender

Matemática?

Teves: Não, a não ser a implicância do Rafa.

Neil: Ah, então me explica como é essa implicância do Rafa.

Teves: Só porque a professora [de Matemática]... [pausa] Eu vou lá pedir explicação

pra ela. Ela fala assim: Ah, gente, eu não vou dar explicação pra ninguém não. Aí o Rafa: Toma. Eu falei: Fica quieto. Aí ele começa a implicar comigo.

Neil: E isso é sempre? Teves: Sempre.

Neil: Então ele implica com você nas aulas. Só na aula de Matemática? Teves: Qualquer aula.

Neil: E isso te incomoda e te atrapalha a aprender? Teves: Hurrum [concordando].

Neil: Mas, por quê? Você já tentou conversar com ele?

Teves: Eu só falei com ele. Aí eu falei assim: Ah, fica quieto, a vida é minha. Aí ele

falou: Eu vou te arrebentar moleque.

Neil: Então ele te ameaça? Teves: Hurrum [concordando]. Neil: Mas ele já te fez alguma coisa? Teves: Já.

Neil: O que foi que ele te fez?

Teves: Na sala, a Sara pediu pra eu desligar o ventilador. Eu fui lá desligar. Ele veio:

Tira a mão daí senão eu te bato. Aí eu fui lá, desliguei uma vez e ele correu atrás de mim e deu um soco nas minhas costas (ENTREVISTA INDIVIDUAL TEVES, arquivo mp3 do CD anexo, 17:06-18:18).

Ao longo das conversas estabelecidas pelo grupo ao longo das práticas de Modelagem Sara se refere a Teves por meio de termos pejorativos como estrupício, já Rafa se queixa de sua passividade. A atitude passiva e silenciosa de Tevez nas práticas de Modelagem pode ser um reflexo da postura que assume nas aulas, por se sentir agredido e ameaçado.

Em suma, marcam esse primeiro momento as possibilidades investigativas abertas e não exploradas na fluidez das mídias orais e na postura afirmativa dos alunos; a atitude tímida e passiva de Teves frente aos demais sujeitos; a crise que desponta nas relações de Zeca com o coletivo; além da ausência das mídias informáticas. Ausência que procurei suprir no momento seguinte.

No documento neildarochacanedojunior (páginas 138-142)