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Analisando o segundo momento

No documento neildarochacanedojunior (páginas 164-169)

6.3. Segundo momento: definindo uma problemática

6.3.5. Analisando o segundo momento

Lembremos que no primeiro momento tivemos a presença predominante da oralidade dando certa fluidez às ações dialógicas dos nossos sujeitos. Já nesse segundo momento, as mídias escritas das figuras xxxx, xxxx e xxxx, assim como a consulta que fizeram ao calendário e ao mapa do Brasil, parecem ter dado novo aspecto às ações desse coletivo. Não tivemos mais nenhuma narrativa a respeito de viagens realizadas pelos alunos, por suas tias, ou pela tia de certa amiga. Ou seja, parece que as ações desse coletivo de seres-humanos-com-mídias se reconfiguraram na presença das mídias escritas.

A respeito dessa relação entre as mídias escritas e a oralidade, enquanto tecnologias da inteligência, Borba e Villareal (2005) afirmam que a presença de uma nova tecnologia da inteligência resulta em um novo coletivo que produz novos conhecimentos, qualitativamente diferentes daqueles conhecimentos produzidos por outros coletivos, quando permeados por outras mídias.

Tendo em vista o foco analítico da Teoria da Atividade, o papel de cada uma dessas mídias escritas nas ações desse coletivo, ao longo desse segundo momento, remete às considerações apresentadas por Souto e Araújo (2013) a respeito da presença das mídias em coletivos de seres-humanos-com-mídias.

[...] as mídias são artefatos que, no desenvolvimento da atividade, ao longo do tempo, se transformam em objetos que, por sua vez, geram, como resultado, mudanças nos processos de produção de conhecimento, sem deixar de serem artefatos. Portanto, a representação da noção de seres- humanos-com-mídias como um sistema de atividade sugere a necessidade de analisar esse duplo papel das mídias (SOUTO; ARAÚJO, 2013, p. 79).

No caso do coletivo de seres-humanos-com-mídias que está sendo analisado nessa pesquisa, precisamos especificar quais são as mudanças que acontecem nos processos de produção de conhecimento quando da presença de cada uma das mídias: as listas de preços das figuras 6 e 7; a lista com o valor fixo da passagem de ônibus e a variação do valor da passagem aérea em função da data da viagem da figura 8; o calendário e o mapa do Brasil consultado pelos alunos.

No caso das listas de preços das figuras 6 e 7, o conhecimento produzido pelo coletivo foi a comparação entre os valores das passagens aéreas e rodoviárias de cada uma das viagens que os alunos consultaram nas referidas listas. As informações aí contidas, em forma de valores fixos, levaram à conclusão de que a passagem de avião é sempre mais barata que a de ônibus.

No que se refere à lista da figura 8, embora os valores das passagens aéreas estivessem expressos em função da data da viagem. A conclusão que os alunos puderam chegar, tomando como base as informações disponíveis nessa mídia e o auxílio do calendário, foi a de que, a partir de determinado dia, o valor da passagem de avião se torna mais barato que a de ônibus. No caso dessa mídia, os conhecimentos produzidos pelas ações do coletivo vão na direção das relações entre grandezas, no caso a data da viagem e o valor da passagem. O que nos que remete a algumas idéias associadas ao conceito de função. Como a de função constante, para as passagens de ônibus, e não constantes, no caso das passagens aéreas.

Tanto no caso dos preços estáticos das listas das figuras 6 e 7, como na situação descrita na lista da figura 8, com o valor flutuante da passagem aérea, as mídias escritas postas pelo professor deveriam conduzir as ações do coletivo a um entendimento único. No primeiro caso, esse entendimento veio a convergir para a conclusão de que o valor da passagem de avião é menor que o da passagem de ônibus. No segundo, de que a passagem aérea se torna mais barata na medida em que sua compra é feita de forma antecipada e que, em determinado dia, seu valor se

torna menor que o da passagem rodoviária. Já o calendário, teve participação de mediador no coletivo, não tendo qualquer relação com a forma das ações.

Em ambos os casos, a presença das mídias escritas que apresentei ao coletivo de seres-humanos-com-mídias, do qual tomo parte como professor, fez com que as ações desse coletivo incorporassem elementos presentes no paradigma do exercício. Nesse modelo educacional, os alunos executam um repertório de ações que consiste em prestar atenção às explicações do professor, fazer os exercícios que ele prescreve e aguardar pela correção. Embora as ações do coletivo não tenham reproduzido, na íntegra, esse conjunto de ações. Nas mídias escritas dadas aos alunos, os valores eram exatos e as informações apresentadas foram tomadas como suficientes, tornando “possível sustentar o pressuposto de que há somente uma resposta correta” (SKOVSMOSE, 2008, p. 25).

O mapa, por sua vez, participou do coletivo de maneira qualitativamente diferente que as listas de preços. Em primeiro lugar, não se tratou de uma mídia posta pelo professor, pois foi Teves quem sugeriu a presença da mesma, como reposta a uma demanda das próprias ações praticadas pelo coletivo. Embora as sugestões do professor tenham tido peso relevante no resultado dessas ações, que conduziram à escolha dos três destinos para as viagens a serem pesquisadas. As informações contidas no mapa não conduziram a uma única resposta correta. Mas sim, a uma exploração, no contexto da Geografia do Brasil, sobre a localização das cidades brasileiras que seriam os destinos das viagens a serem pesquisadas pelo coletivo.

A participação das listas de preços e do mapa no coletivo de seres-humanos- com-mídias sugere que a presença de diferentes mídias, além de levarem à produção de formas qualitativamente novas de conhecimento em que participam (BORBA; VILLAREAL, 2005), podem moldar as ações desse coletivo em todo o seu conjunto, e proporcionar maneiras qualitativamente novas de se produzir conhecimento.

Ao longo desse segundo momento, essa influência das mídias sobre as ações do coletivo se fez sentir na emergência de regras e numa reconfiguração das mesmas ao longo desse segundo momento. Enquanto nas ações praticadas na presença das listas de preços as regras trazem elementos do paradigma do exercício, em que as tarefas são postas pelo professor, cabendo ao aluno obter a única resposta correta. Na presença do mapa do Brasil, as regras desse sistema de

atividade permitiram ações com nuanças de cenários para investigação, em que os alunos propõem questões e buscam soluções (SKOVSMOSE, 2008; BARBOSA, 2001). Porém, as ações não se referiam nem à Matemática e nem às suas aplicações, mas à Geografia do Brasil. Confirmando o caráter interdisciplinar da Modelagem, enquanto abordagem pedagógica.

No que se refere à divisão do trabalho, parece que Sara começa a assumir uma posição de liderança sobre os demais alunos, configurando uma hierarquização das relações horizontais entre os sujeitos alunos. Em algumas situações ela chega a reprimir a conduta dos colegas e é atendida por eles. Porém, não foi esse o caso de Zeca que, antes de deixar o grupo em definitivo, assumiu uma postura questionadora frente à autoridade crescente de Sara. Além disso, nas conversas entre eu e o grupo, as falas em que me dirijo a Sara predominam sobre aquelas em que falo com os demais alunos. Houve uma situação em que cheguei mesmo a sugerir que Sara explicasse a Zeca o que ela e Rafa estavam fazendo, no sentido de integrar Zeca às ações do coletivo.

Considerando a divisão horizontal de tarefas e a divisão hierárquica e vertical de poderes (ENGESTRÖM; SANNINO, 2010). Temos a histórica posição hierárquica do professor sobre os alunos, manifestando-se na presença das mídias escritas, que agiram no coletivo na forma de tarefas prescritas aos alunos. Também temos um desequilíbrio na divisão horizontal de tarefas entre os alunos, pois Sara começa a assumir uma posição de liderança em relação aos demais. Essa posição privilegiada adquirida por Sara, que foi contestada por Zeca, conta com a contribuição inconsciente das minhas atitudes. É como se a hierarquia vertical da relação professor/aluno influenciasse uma divisão horizontal de tarefas desigual na comunidade.

Já o objeto (o tema viagens) das ações desse coletivo de seres-humanos- com-mídias se tornou mais focalizado nesse segundo momento, ficando restrito a três viagens: São Luiz, Brasília e Florianópolis.

Além disso, esse objeto continua a conviver com motivos referentes ao peso avaliativo atribuído às práticas de Modelagem (pontos), da mesma forma que no primeiro momento. Esse motivo emergiu na fala dos sujeitos ao longo desse segundo momento e deu o tom da primeira das entrevistas coletivas.

Sara: Eu tenho, eu quero passar. Neil: Oi?

Sara: Eu tenho, eu quero passar. Neil: O que?

Sara: Passar. [Risos] Neil: Passar? Não entendi.

Sara: Passar professor. Tirar só nota boa no seu trabalho. Neil: Ah... Passar de ano?

Sara: De série, porque de ano todo mundo passa. [Fazendo uma ironia]

(ENTREVISTA COLETIVA 1, arquivo mp3 do CD anexo, 4:38-4:59).

A emergência de regras e de uma divisão do trabalho, acompanhada da flexibilidade e a estabilidade assumida pelo objeto sugerem observar esse conjunto de ações como uma atividade insipiente, ao qual passo a denominar atividade de seres-humanos-com-mídias. Pois, de acordo com Engeström e Sannino (2010), o que diferencia um conjunto de ações coletivas de uma atividade propriamente dita é a curta duração do objetivo da primeira em comparação ao tempo de vida relativamente mais longo do objeto da segunda, ao longo do qual emergem regras e uma divisão de trabalho em sua comunidade.

Na figura 9, temos a representação dessa atividade de seres-humanos-com- mídias, onde o objeto viagens que continua acumulando motivos relativos aos pontos avaliativos da atividade, passa a focalizar viagens relativas a três destinos: Brasília, São Luis e Florianópolis. Na comunidade, as crises entre os sujeitos continuam, regras se estabelecem e uma divisão de trabalhos se configura. Os conhecimentos produzidos nas ações do coletivo evidenciam o caráter interdisciplinar da Modelagem. Além disso, a presença das mídias demonstra que elas desempenham papel ativo não somente no resultado das ações, em termos do conhecimento produzido, mas também na maneira de agir desse coletivo.

Figura 9: A representação da atividade de seres-humanos-com-mídias no segundo momento.

Fonte: Elaborada pelo próprio autor.

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