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Episódio 2: às portas de uma indagação

No documento neildarochacanedojunior (páginas 134-138)

6.2. Primeiro momento: um tema e várias possibilidades

6.2.2. Episódio 2: às portas de uma indagação

Após as afirmações a cerca o preço da passagem de ônibus, Rafa sugere a possibilidade de uma excursão. Percebo, aí, uma chance para que iniciemos uma investigação na direção de uma possível comparação entre o valor de uma excursão e de uma viagem de carreira. Vejamos o seguinte trecho.

Neil: Mas vocês querem ver as viagens no geral? Sara: É.

Neil: Varias viagens? O preço de várias passagens? Sara: É isso aí.

Neil: Mas aí tem que limitar o número de viagens. Sara: O número do valor? [se referindo ao preço]

Neil: Não. Por exemplo, você falou de viagem pro Rio, Bicas. Pra Salvador. Vão

pensar em quantas viagens?

Sara: Em três viagens. Neil: Três?

Sara: Tirando as voltas.

Neil: Ver o custo de cada uma?

Aluna de outro grupo: Professor, o Rafa ta me jogando papel aqui.

Neil: Para aí Rafa [pedindo calmamente]. Ver o valor de cada viagem? [voltando-me

ao grupo]

Sara: Só de ida, a volta vê depois. Neil: Por que só de ida?

Sara: Porque sim. E se a pessoa ficar lá e não voltar mais. Rafa: Se for excursão... [palavras inaudíveis]

Neil: Aí você já está entrando em outra ...

Sara: Excursão paga noventa reais! [Interrompendo]

Neil: Olha o que ele [Rafa] ta falando. Tem duas maneiras de viajar, não é isso?

Você pode viajar fazendo uma excursão. Onde você tem um ônibus que te leva e te traz. E pode viajar comprando passagem.

Sara: Mas excursão já é mais cara, não é? Noventa conto. Rafa: Depende da excursão.

Sara: Dependendo...

Neil: Mas como é que você sabe que é mais caro? [Dirigindo-se a Sara]. Sara: Por que eu já fiz.

Neil: Você já viajou em excursão, viajou sem ser em excursão e sabe que excursão

é mais barato? Quer dizer, é mais caro?

Sara: É.

Neil: Então, você tem certeza que excursão é mais caro? Sara: É mais caro.

Neil: Mas, o quanto mais caro? Sara: O quanto mais caro? Noventa. Neil: Mas será que toda...

Sara: A que eu fiz foi noventa biro-biro. [Interrompendo-me]

Teves: [Risos] Noventa biro-biro [achando estranha a forma de Sara se referir ao

dinheiro].

Neil: Mas você fez pra onde? Sara: Fiz pro Rio.

Neil: Fica em noventa reais a excursão pro Rio? Sara: É.

Neil: Então, a excursão te levou e trouxe por noventa reais?

Rafa: Quando eu fui pra Copacabana lá tava tudo incluído, foi duzentos reais a

passagem, aí a gente ficou numa casa. Tinha café da manhã, café da tarde, tinha almoço, tinha tudo.

Sara: Mas aí era tudo pago? Rafa: Era.

Sara: Muito barato tá. (ENCONTRO 2, arquivo mp3 do CD anexo, 2:03-4:24)

A sugestão de Rafa sobre as excursões abre uma possibilidade investigativa que é logo fechada por Sara. Tento, em vão, fazê-la perceber que suas afirmações precisam ser verificadas, mas ela segue irredutível. Sustenta sua hipótese de que o valor de noventa reais que pagou na suposta excursão que fez ao Rio é, indiscutivelmente, maior que o da passagem do ônibus de carreira. A princípio, Rafa procura questionar Sara ao dizer que, dependendo da excursão, o preço pode ser maior, ou menor, que o da passagem de carreira. Em seguida, ele também menciona uma suposta excursão que fez para Copacabana, com almoço, café da manhã e da tarde incluídos, por apenas duzentos reais.

Porém, não é possível afirmar que há nessa história contada por Rafa uma explícita intenção de questionar Sara. De qualquer forma, temos uma possibilidade investigativa envolvendo uma comparação entre o valor de uma excursão e o preço de uma passagem de ônibus convencional. Possibilidade que não se configura mediante a postura extremamente afirmativa de Sara.

No fluxo do diálogo, novas possibilidades se descortinam convidando os alunos à exploração. Da minha parte, continuo tentando conduzir as falas dos alunos na direção de uma indagação.

Neil: [...] Olha, então a gente ta vendo lugares pra ir. Pode ser Rio de janeiro,

Salvador, como a Sara disse. Que outros lugares interessantes pra ir? Pensa num lugar mais longe...

Rafa: Taiti. Sara: Taiti não. Zeca: Hollywood. Sara: Recife.

Neil: Recife, legal. Bom. Hollywood. Aí já envolve avião. Zeca: Não, pode ir de navio.

Sara: Avião. Sabia que avião não é caro? Avião é mais barato que ônibus.

Zeca: É. Porque eles sabem que as pessoas podem morrer e pega põem barato de

uma vez. [Ironizando].

Neil: Isso é outra possibilidade. [Dirigindo-me a Sara]

Sara: Igual... A minha tia foi pegar o avião sexta-feira. De Juiz de Fora pra São

Paulo. Vinte e cinco.

Neil: Então você tá querendo me dizer que pode ser que avião fique mais barato? Sara: É. Avião é mais barato mesmo.

Rafa: Depende pra onde você vai também, né? Tem de primeira classe, de primeira

classe já é “biro-biro” a mais.

Neil: De avião? Rafa: É.

Sara: É.

Rafa: A minha tia foi viajar pra não sei aonde. Ela é tia da minha amiga. Foi viajar

pra não sei aonde, o negócio lá de segunda classe é vinte e cinco, e o de primeira classe já é...

Teves: Já é cinquenta.

Rafa: É, cinquenta... Cem pra lá... Sara: É, primeira classe é caro...

Neil: Vocês estão abrindo aqui, um leque de opções.

Zeca: Mas se for um teco-teco, te cobra cinquenta centavos [com ironia]

(ENCONTRO 2, arquivo mp3 do CD anexo, 8:02-9:32).

Sara continua fazendo afirmações sobre os valores relativos às viagens e Rafa também passa a seguir essa tendência. Até mesmo Teves, que pouco se expressava, dessa vez arrisca afirmar um valor para a passagem de avião na primeira classe relativa à viagem da tia da amiga de Rafa. Já as colocações de Zeca trazem certa dose de ironia ao fazer comentários sobre o fato da passagem de avião ser mais barata em razão dos passageiros correrem risco de vida e sugerindo o preço de cinquenta centavos para uma viagem de teco-teco.

Poderia essa ironia de Zeca ter a ver com o fato de sua proposta a respeito da sorveteria ter sido preterido em relação ao tema viagens? Estaria ele respondendo com ironia ao fato de ter sido voto vencido na decisão sobre a escolha do tema? O tema sugerido por Sara foi aceito e ela começa a assumir certa liderança dentro do grupo. Alrø e Skovsmose (2010, p. 45) relatam uma situação em que duas alunas da 3ª série de uma escola da Dinamarca, referidas pelos autores por meio dos pseudônimos de Marlene e Camila, entram em disputa pela liderança de um grupo de alunos em uma prática de sala de aula em que é dada certa abertura aos alunos, dentro de uma dinâmica bastante similar ao que acontece nas práticas de Modelagem que visam constituir cenários para investigação. Os autores mencionam que quando os alunos se veem com o poder de tomar decisões sobre questões que antes eram postas pelo professor, opera-se uma lei que rege as dinâmicas de grupo. Nessas situações, “há geralmente uma disputa para determinar quem decide, e apenas um assume a liderança no final”. Voltando ao caso dos nossos sujeitos, parece que Sara começa a assumir esse posto de líder e Zeca, por sua vez, passa a usar de ironia para demonstrar seu descontentamento. Porém, o que temos não é suficiente para uma análise conclusiva em relação à postura de Zeca.

Voltando a falar sobre os diálogos, os alunos falam de viagens em excursões feitas por eles próprios, em viagens de avião realizadas por tias e pela tia de uma amiga. Narram fatos, descrevem situações, mencionam preços, mas não indagam. Uma série de possibilidades investigativas se descortina: comparar os preços das excursões com os das viagens feitas em ônibus de carreira é uma primeira possibilidade; investigar os preços das passagens na primeira classe e na classe econômica para voos domésticos e internacionais é outra. Pergunto a Sara se ela tem certeza que a excursão é mesmo mais cara e ela afirma que sim. Em seguida, ela passa a sustentar que viajar de avião é sempre mais barato que ônibus. Pergunto se ela está sugerindo que viajar de avião pode ser mais barato que viajar de ônibus e ela afirma que é mais barato mesmo.

Os questionamentos que faço frente às colocações dos alunos, principalmente Sara, sugerem que suas afirmações precisam ser averiguadas, pesquisadas, em suma, investigadas. Percebo um processo de problematização e investigação (BARBOSA, 2001) iminente, e que os portais de um cenário para investigação (SKOVSOSE, 2008) estão abertos.

No documento neildarochacanedojunior (páginas 134-138)