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Começo por apresentar dois estudos de caso que mostram a diferente relação de mobilidade dos trabalhadores de engenho e das suas mulheres nas trajetórias de vida anteriores ao assentamento. Os dois casos são ilus- trativos da diferença que existia entre aqueles que eram «moradores com sítio» e os «moradores sem sítio»,2mostrando como estes últimos tinham,

de facto, uma condição de «sem-terra» locais.

Quando foram para Arupema, Emília não gostou. Há vinte anos, Aru- pema era um engenho com poucos moradores cujas casas se encontra-

2A propósito da natureza da relação de trabalho e residência nos engenhos que cons-

tituía a própria «morada» e da hierarquia que se estabelecia entre os diferentes trabalha- dores do engenho veja-se o trabalho de Palmeira (2009 [1977]).

Andar pelo meio do mundo e assentar vam dispersas por entre a cana rarefeita. Na sede do engenho, onde se situava a casa-grande que o proprietário raramente frequentava, encon- travam-se apenas a casa do administrador, que Emília e o seu marido vi- riam a ocupar, a cocheira dos animais e as casas de mais três ou quatro famílias de moradores. O lugar era relativamente distante da cidade sede do município e isolado das estradas principais. As pessoas deslocavam- -se a pé, de burro ou cavalo. Emília havia nascido num engenho também, mas vivera em muitos outros lugares onde manteve sempre alguma ativi- dade económica que lhe permitia ter dinheiro suficiente para sentir inde- pendência económica em relação ao marido. Quando José Francisco re- cebeu o convite para ir trabalhar como administrador do Engenho Arupema, Emília partilhou com os irmãos o desagrado em ir para aquele «fim de mundo». Estes sugeriram-lhe que permanecesse a residir na cidade, mas Emília acompanha sempre o marido quando ele vai trabalhar. Se- gundo ela, já «andou muito». Ao todo, depois de casados, Emília e José Francisco fizeram sete mudanças. Conheceram-se num engenho perto da estrada nacional, onde os pais de ambos eram rendeiros, e casaram-se com cerca de 20 anos. Pouco tempo depois nasceria o primeiro filho do casal. José Francisco tinha começado por ser apontador e, por influência do marido da sua irmã, rapidamente passou a exercer a função de adminis- trador e a trabalhar para uma das maiores empresas regionais de produção e transformação de cana-de-açúcar. Trabalhando como administrador para a Pitú, José Francisco era obrigado a deslocar-se para um dos vários engenhos que a empresa tinha arrendado e onde plantava cana. Este tra- balho permitia-lhe alguns privilégios em relação aos restantes trabalha- dores do engenho e um deles era a residência numa das melhores casas disponíveis. A casa do administrador situa-se habitualmente na sede do engenho e destaca-se das casas dos demais trabalhadores, de taipa, pelo seu tamanho e ainda por ser ladeada de alpendres.

O cargo implicava, é claro, uma responsabilidade grande e a difícil si- tuação de intermediário das relações entre patrão e trabalhadores do en- genho. Acontecia com frequência estes administradores serem alvo de acusações e ameaças que José Francisco recorda com alguma naturali- dade. Os conflitos com trabalhadores eram por vezes tão acentuados que os administradores tinham de ser afastados, obrigando a que se chamasse com urgência um outro para o substituir. Recusar um destes destacamen- tos implicava ficar no desemprego. Emília e José Francisco viveram este dilema quando ele foi destacado para um engenho que ficava a mais de trinta quilómetros do local onde estavam e da cidade de Vitória onde re- sidiam os seus pais que entretanto se haviam aposentado. Tendo na altura

um filho pequeno e «a mulher bochuda», José Francisco não podia arris- car ficar desempregado e acabou por aceitar, e deslocaram-se para este novo local. Ficaram ali, porém, apenas alguns meses.

À cidade de Vitória haveriam de voltar durante algum tempo também, por alturas em que José Francisco ficou desempregado. Durante cerca de um ano Emília viveu com o seu marido e os dois meninos em casa da sogra, até receberem a indemnização da Pitú, que usaram para comprar uma casa própria. Então, a família ficou a viver na cidade por algum tempo. Durante esse período de dois anos, José Francisco passava o dia no engenho onde começou a trabalhar e voltava para casa à noite. Mas, como disse Emília, «José Francisco gosta de morar onde trabalha» e não repetiu a experiência. Foi então que, em Janeiro de 1991, José Francisco começou a trabalhar para o engenho Arupema, cujos herdeiros diziam querer «botar para moer» novamente. Esta promessa por parte dos pro- prietários era recorrente nos engenhos que estavam parados e tinha bas- tante acolhimento junto dos moradores, perspetivando melhores condi- ções de trabalho e, assim, de vida. O casal e os seus três filhos instalaram-se então na casa do administrador, onde tinham também um pedaço de terra para «botar roçado», fazer horta de chuchu e ainda ter uma cocheira. Nessa casa viveram vários anos. Só depois de 1998, altura em que o engenho Arupema se transformou em assentamento Arupema, é que construíram uma nova casa, para onde mudaram, num local muito próximo dentro da parcela definida pelo INCRA, mantendo ainda a localização privile- giada. Na casa que deixaram, ficou o filho mais velho que entretanto havia casado e tido um filho. Algum tempo depois, também o segundo filho do casal veio a construir a sua própria casa no terreiro da família.

Diferentemente da história de família de Emília e José Francisco, Rita seguiu a trajetória dos sem-terra, tendo chegado pela primeira vez a Aru- pema na altura do acampamento que daria origem ao assentamento, em 1997. Foi-lhe então atribuída uma parcela de terra para a sua família. Tam- bém ela nasceu num engenho não muito longe dali, a escassos quilóme- tros que se percorrem a pé. No entanto, Rita já viveu em muitos outros engenhos desde que se casou até ir morar para Arupema. «Andei muito com o primeiro marido, sabe? Depois separei-me. Vim para casa. Ainda passei três anos em casa de pai, lá em Cachoeira. Depois fui para o Recife, trabalhei dois anos em casa de família. [...] Depois voltei. Aí, arrumei um casamento e casei. Com 14 anos viemos para aqui para Arupema. Chegamo aqui, pouco tempo depois ele morreu e eu fiquei. Já faz... doze anos, né Braz?» – pergunta Rita para o homem com quem vivia quando a conheci, também ele «parceleiro» em Arupema.

Andar pelo meio do mundo e assentar Em várias conversas que tivemos, Rita, de 54 anos, falou-me do seu périplo pela Zona da Mata, sempre acompanhando os maridos que se deslocavam de engenho em engenho. Mas, o trajeto de Rita não é fácil de delinear. Por um lado, porque se caracteriza por inúmeras mudan - ças de residência que ocorreram depois de casar, aos 19 anos. Por outro, a forma como Rita me apresenta este seu percurso obedece de modo muito marcante a uma associação entre mudanças e maridos com quem partilhou tal experiência. Uma das diferenças substanciais entre a condi- ção de Rita e a de Emília é que os maridos de Rita eram trabalhadores moradores sem sítio, ou seja, trabalhadores que de facto não tinham acesso à terra. Assim, se Emília salienta as dificuldades da mudança do marido para um engenho apenas a trinta quilómetros da área em que re- sidia, Rita falou-me das suas mudanças de modo completamente dife- rente.

Rita – O primeiro não se mudava muito, não. Morei com ele cinco anos e seis meses. Só fizemos umas dez mudanças. Na primeira casa morei um ano. Saímos de lá fomos para a fazenda, lá passou três anos. Dentro de um ano e cinco mês... quatro, cinco, seis, sete mudanças. Completou as oito que vimos para Cachoeira. Com a outra, foi nove mudanças. E com o outro [marido] moreno, [em] catorze anos, foram trinta e cinco mudanças. Essa não sei contar não. Tem mudança que parece que foi um sonho, sabe. Andei um bocado, andei um bocado. [...] Também morei em Amaragi, meu ma- rido, este segundo, mudava muito, se mudava muito, parecia um menino. Aí não tinha lugar que a gente não morasse. Até perto de Alagoas. [...] Eu sei que esse mundo é muito. Ele cortando cana, limpando. Ele estava ali dois meses... seis meses, ia-se embora.

Ana – Não se entendia com o patrão?

Rita – Gostava de se mudar mesmo! Tinha vez que eu achava até bom, agora quando ele demorava nos sítios que eu não gostava, naquele lugar de- serto… não gostava, se ia-se embora [eu] até saía contente. Mas tinha lugar que eu saía chorando. Agora se a gente tem vizinho, tudinho, em lugar bom, aí eu achava ruim [sair]. Quando ele dizia que ia, aí ia mesmo. [...] A gente se mudava muito. E mudou-se tanto que terminou ao cabo com os sem- -terra [risos].

Estas narrativas salientam a condição de mobilidade dos sem-terra e a forma como as biografias e histórias de família destes assentados se ins- crevem na própria história da Zona da Mata de Pernambuco. A partir das suas experiências vividas podemos compreender como a mobilidade laboral dos canavieiros e moradores de engenho participa das suas con- ceções de territorialidade. Do mesmo modo, também as relações fami-

liares e as suas noções de parentesco, conjugalidade e filiação são marca- das por esta vivência particular.

Nascer num engenho e ter vivido em muitos outros corresponde a uma trajetória comum dos moradores de engenho, cujas vidas estão li- gadas à «palha da cana» e que constituem o grupo social dos sem-terra locais, como sejam as pessoas envolvidas nos movimentos sociais que reivindicam a reforma agrária na Zona da Mata de Pernambuco. Da mesma forma, a experiência do próprio processo de «luta pela terra» – com a participação em marchas, a sucessão de ocupações e acampa- mentos e a instalação num assentamento – não destoa nesta lógica de deslocação periódica pelo espaço. Além de enformar a maneira como se veem a si mesmos (no sentido de identidade social), a mobilidade é sig- nificativa e até naturalizada na forma como as pessoas concebem a sua experiência.

Rita – Nunca mais voltei para casa dos pais, de morada não, só de visita. Só passemo três semanas no meio, porque ele se mudava muito. Quando voltemo de Alagoas, ele vendeu tudo lá, só trouxemo os menino e os pano, aí cheguemo a Ninho das Águias, passamo lá três semanas. [Depois] ele ar- rumou casa e saímo. Era casa e trabalho.

Mais ainda do que histórias de vida refeitas em trajetórias temporais, a experiência familiar destas pessoas pode descrever-se por meio de mapas de mobilidade onde as relações de parentesco são estabelecidas numa teia de redes que se dispõe por toda a região da Zona da Mata, ligando os engenhos à história particular de cada casal.

Como vemos com os casos de Rita, Emília e José Francisco, esta expe- riência é ordenada a partir de uma conceção da conjugalidade segundo a qual a mulher acompanha o marido. Mas o inverso – o marido acompa- nhar a mulher – não acontece. Esta conceção da conjugalidade está rela- cionada com a configuração das relações de trabalho neste contexto tão marcado pela cana-de-açúcar, onde o vínculo laboral estava também as- sociado à cedência de uma residência (casa e trabalho). Recordar a sua história de família implica uma memória geográfica que se traça por vários lugares, engenhos e outros, fazendo corresponder os momentos impor- tantes da história de vida e familiar, como a relação conjugal ou o nasci- mento de um filho, à memória da vivência num lugar específico. Assim, entre engenhos, «pontas de rua», Recife e São Paulo, estabelece-se uma trama territorial e de relações de parentesco que configura o espaço social em que as pessoas habitam.

Andar pelo meio do mundo e assentar