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Com um casamento, constrói-se então uma nova casa na parcela. Tal como já foi referido, a construção da casa faz-se tendencialmente na par- cela dos pais do marido. Não se tratando de uma regra absoluta, sendo que existem alguns casos em que as mulheres localizaram as respetivas casas nas parcelas dos seus pais, encontramos com recorrência o princípio de residência patri/virilocal. Este conceito designa a residência do jovem casal na proximidade da casa do pai do marido. Em alguns casos, os recém- -casados podem residir na casa dos pais do marido por algum tempo, aco- modando-se num dos quartos da casa. No entanto, uma vez que o prin- cípio de residência é preferencialmente neolocal («quem casa quer casa»), esta situação é tida por temporária, estendendo-se pouco além do nasci- mento dos filhos.

Ainda que o conceito seja designado pelo elemento masculino, a des- crição das práticas virilocais diz-nos mais acerca da vida quotidiana das mulheres. De facto, apesar de se tratar da terra da família do marido e de frequentemente serem os próprios homens a construir a casa – como também assinalou Mayblin (2010) – são as mulheres quem está mais pre- sente no espaço doméstico da família, a casa e o terreiro. É neste sentido que a maior densidade das relações sociais que se consideram ter a ver com a família é estabelecida entre mulheres, que têm a seu encargo o cuidado das crianças.

Assim, do ponto de vista das mulheres, o casamento implica estreitar relações com a sogra. Morando mais perto dos sogros, a mulher casada acaba por se afastar dos próprios pais. Emília tem as duas noras por perto.

Como moram ambas no seu terreiro, ela considera que substitui o papel de mãe das suas noras, «dando conselho» sobre os filhos, sobre a limpeza da casa, etc. Muitas vezes partilham tarefas diárias relativas à agricultura, como semear, colher e preparar os produtos para levar para a feira, o que se faz geralmente apenas numa das casas da parcela. Frequentemente há também partilha de comida, sendo habitual as suas noras, Gabriela e Amanda, irem buscar a casa da sogra feijão para o almoço. Já antes de casarem as noras começam a frequentar a casa da sua futura sogra, onde ajudam na preparação da comida, varrendo ou «passando o pano no chão». Foi o caso de Gabriela, quando namorava o filho mais velho de Emília, Marcos. Nessa altura, Marcos trabalhava na horta orgânica, jun- tamente com os pais. Foi com o dinheiro que juntou com a venda dos produtos do seu trabalho na horta que preparou o casamento, com- prando os móveis e o paletó que usaria na cerimónia da igreja.

A partir do casamento, é esperado que a mulher receba ajuda por parte da família do marido. Durante o período de «resguardo», depois do parto, quando as mulheres «descansam», são as suas sogras que prestam o apoio necessário em casa. Como ainda não tem filhos, Amanda cuida das crian- ças da cunhada, que passam uma parte significativa do dia com a tia, a qual mora mesmo na casa ao lado. No entanto, mesmo que morem em casa da sogra, é esperado que seja a esposa a cuidar do marido e dos fi- lhos, particularmente, no que toca à preparação dos alimentos e cuidado com as roupas. É muitas vezes aí que se originam os conflitos entre sogras e noras, o que, caso «arenguem muito», resulta na antecipação da mu- dança de casa do jovem casal.

Como já foi referido, é comum existir mais do que uma casa em cada parcela. Com a construção das casas dos filhos casados, constitui-se uma espécie de aglomerado de casas em torno de um único terreiro. A exis- tência de várias casas em cada parcela do assentamento Arupema não corresponde, no entanto, à multiplicação de pequenas unidades sociais semelhantes e autónomas. Trata-se, afinal, de um outro tipo de configu- ração familiar, uma nova unidade social primária (Pina Cabral 1991) onde cada casa está articulada com as outras casas dispostas no terreiro por via das relações de parentesco e que se aproxima da noção de sítio, enquanto espaço social da família camponesa, tão característica dos meios rurais nordestinos – vejam-se os trabalhos de Woortmann (1995), Queiroz (1976) e Wanderley (2003).

As relações que estas casas estabelecem entre si não são relações simé- tricas, entre diversas famílias nucleares análogas, mas hierárquicas e com- plementares. As várias casas existentes na parcela são diversas tanto nos

Andar pelo meio do mundo e assentar materiais, como na anterioridade. Numa dessas casas mora o casal mais velho, habitualmente os titulares da parcela: quer se trate daqueles que estiveram envolvidos no processo de «conquista da terra» despoletado pelo acampamento (que têm casas de tijolo, construídas com recursos públicos) ou dos que tinham anteriormente alguma relação com o enge- nho, enquanto moradores ou trabalhadores do mesmo (neste caso é pos- sível que a casa seja mais antiga e de pedra). Nesta casa, a principal do terreiro, encontram-se os dispositivos necessários para gerir a atividade agrícola da parcela, o forno a lenha ou o telefone.

Além desta casa, encontramos frequentemente a casa de um dos filhos do casal titular, onde mora com a sua respetiva família nuclear, a mulher e os filhos. Quase sempre se trata de um «filho homem». Este filho que constrói a sua casa (muitas vezes de taipa) no terreiro dos pais acaba por se posicionar como privilegiado na sucessão da terra, dado que já se en- contra a «tomar de conta».

Também do ponto de vista da actividade produtiva existem diferenças significativas entre os vários filhos que moram na parcela, distinguindo dos demais aquele que, além da residência, encontra na agricultura a pos- sibilidade de trabalhar e, assim, sustentar a sua família. Enquanto crian- ças, é comum que todos os filhos ajudem no trabalho agrícola, atividade que é coordenada pelo pai (o titular). Esta gestão da atividade produtiva está, portanto, a cargo do «pai de família» que, tanto no que diz respeito à cana ou ao roçado, decide acerca dos modos e tempos de plantação, da gestão da mão de obra e da comercialização final dos produtos. En- quanto o pai planta maniva, a mãe cozinha macaxeira.3

Geralmente, um dos filhos que casam e ficam a residir na parcela per- manece a acompanhar o pai neste trabalho diário e, caso se trate também de agricultores orgânicos, pode vir a ter uma horta própria e até um banco de feira independente do dos pais. Esta situação tem consequên- cias do ponto de vista da posse da terra, cuja legitimidade assenta preci- samente no trabalho continuado. Tendo em conta a idade dos titulares da parcela – que tinham, à data da criação do assentamento, entre 20 e 50 anos – começamos agora, passados cerca de quinze anos da criação do assentamento, a assistir a esta fase de charneira do ciclo de vida fami- liar. Deste modo, ao longo do tempo, os espaços de uso coletivo da fa-

3Maniva é o termo pelo qual se designa localmente o caule da mandioca e, por ser

usado no seu plantio, designa o próprio cultivo. Macaxeira é uma das várias palavras usa- das no Brasil para especificar a variedade comestível da mandioca e que é, juntamente com o milho, o feijão e o arroz, a base da alimentação da população rural do Nordeste.

mília que eram administrados pelo titular da parcela tendem a ser assu- midos por apenas um dos filhos, que irá suceder ao pai.

Justamente, para estas pessoas a reforma agrária representa a oportu- nidade de ter terra para providenciar aos filhos. Ainda que a parcela de cada família esteja definida e delimitada à partida, ela apresenta-se como um espaço que pode ser apropriado em função desta necessidade familiar de ter terra para que os filhos possam construir as suas casas, ficando assim por perto. Neste sentido, cada pai deverá providenciar aos seus fi- lhos, pelo menos a um deles, o lugar para que possam construir uma casa onde viver com a respetiva família. Porventura, esta situação não acontece com todos os filhos, mas apenas com aqueles que, tendo per- manecido e trabalhado na agricultura, não foram para São Paulo, Recife ou mesmo para uma cidade mais próxima.

Virtualmente, caso todos os filhos viessem a herdar de facto um pe- daço de terra, com a morte do casal titular, a parcela seria dividida em vários «sítios» para cada um dos filhos. Nesta situação, transformar-se-ia em pedaços de terra tão pequenos que se tornariam insuficientes para a sobrevivência de todas as famílias herdeiras – um processo que sucedeu nos pequenos interstícios da plantation pernambucana ocupados por si- tiantes e conhecidos como «terra de herdeiro», onde a terra disponível acabou restrita a uma função mais residencial do que produtiva. Este é, aliás, o princípio do INCRA segundo o qual a parcela não deve estar su- jeita ao mesmo regime legal da herança do Código Civil, e daqui resulta o prolongamento indefinido do prazo em que as famílias detêm o título de concessão de uso e não de propriedade da terra.

Assim, do ponto de vista dos assentados, na ausência de mais espaço ou de um espaço em aberto, isto é, perante a relativa escassez de terra, as- segurar a residência de pelo menos um dos filhos permite a continuidade da família e a manutenção daquele «sítio». Este modo de reprodução fa- miliar assemelha-se, estruturalmente, ao modelo camponês clássico dis- seminado pelos meios rurais europeus e latino-americanos onde encon- tramos práticas sucessórias que privilegiam apenas um dos herdeiros – vejam-se nomeadamente os trabalhos de Bourdieu (1962), Moura (1978) e Carneiro (1998).

Com o passar do tempo, encontramos em Arupema a formação de uma nova unidade familiar. Em vez de uma unidade familiar nuclear à qual corresponde uma casa e uma parcela de terra, existem agora, em cada parcela, novas unidades familiares que são caracterizadas por um conjunto, um agregado de várias casas ligadas entre si, como uma «con- figuração de casas» (Marcelin 1999, 33), onde moram os vários membros

Andar pelo meio do mundo e assentar da família, constituindo uma rede específica de casas característica da conceção de «sítio» nordestino. Numa destas casas, além da casa principal dos titulares da parcela e da casa do sucessor, pode ainda residir um outro filho casado que trabalhe sazonalmente na «usina»,4uma filha solteira

com os seus filhos ou que entretanto se tenha separado do marido. Ora, a possibilidade de retornar a casa dos pais, seja em visita temporária, como nos relatou Rita, ou por um tempo indeterminado, está, portanto, prevista nesta conceção de espaço doméstico familiar. Por essa razão, as casas dos titulares de parcelas em Arupema são habitadas quotidiana- mente por crianças. Ao morar junto, os seus pais ajudam a criar as crian- ças, que ligam as diversas casas e podem, eventualmente, vir a tornar-se seus «filhos de criação». Esta vivência da casa principal, onde os filhos e os netos vão frequentemente, aglutina a família.

A questão da transmissão da terra no assentamento Arupema atravessa a problemática da minha investigação desde o seu início. Por agora, im- porta frisar tanto a construção de novas casas, como a presença quoti- diana destes filhos, jovens casais com as suas crianças, e a importância de integrar esta estreita rede de relações entre casas de um mesmo terreiro. Seja pela partilha de comida ou de trabalho, estas relações diárias de pro- ximidade e de ajuda mútua contribuem para a consolidação do paren- tesco e, desta forma particular, constituem um projeto familiar. Neste sentido, esta é também uma reflexão acerca da forma como as famílias se organizam em torno à terra à qual tiveram acesso, finalmente, por via da reforma agrária. Como vimos, deste projeto familiar participam ne- cessariamente conceções de territorialidade e temporalidade da qual a transmissão faz parte e que manifestam uma intencionalidade na relação com a terra, que constitui um modo particular de habitar o mundo.

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Parte III