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Normas e intervenção militar da R2P à RwP (difusão, contestação e identidade)

A norma emergente a respeito das intervenções militares por razões humanitárias conhecida como Responsabilidade de Proteger/Responsibi- lity to Protect (R2P) tem alcançado uma importância central, quer a nível do debate académico, quer a nível das discussões públicas. Ela foi o re- sultado de um trabalho intenso, particularmente na década entre 1995 e 2005, que envolveu uma ampla coligação internacional de Estados e de ONG a partir de uma iniciativa do Canadá.

A iniciativa da diplomacia brasileira de promover, em resposta à R2P, uma Responsabilidade ao Proteger (Responsibility while Protecting/RwP) co- meçou com uma referência a este conceito no discurso da Presidente do Brasil, Dilma Rousseff, na abertura da Assembleia Geral das Nações Uni- das em 21 de setembro de 2011: «Muito se fala sobre a responsabilidade de proteger; ainda pouco ouvimos falar sobre a responsabilidade ao pro- teger. Estes são conceitos que devemos desenvolver em conjunto.» No entanto, o esforço brasileiro de dar seguimento à ideia formulada pela Presidente da Brasil de desenvolver o conceito de Responsabilidade ao Proteger/Responsibility while Protecting (RwP) praticamente limitou-se a um documento (concept paper) que desenvolveu o conceito e que foi apresen- tado em Novembro de 2011 pela representante do Brasil junto da ONU sob o título Responsibility While Protecting: Elements for the Development and Promotion of a Concept (Brasil 2011). Portanto e paradoxalmente, alguns anos depois parece possível afirmar que depois de entrar neste debate com estrondo o Brasil não quis ou não pôde promover a RwP. Dado este relativo falhanço, até ao momento, será esta uma temática relevante, e se sim, porquê e para quê?

Quanto à questão da relevância importa sublinhar que nem só os su- cessos são relevantes. Os fracassos não só podem ser muito importantes mas também podem ser muito reveladores das dinâmicas da política in- ternacional. Para além disso, há que sublinhar que as intervenções mili- tares multilaterais têm grande importância na análise da evolução da so- ciedade internacional por uma série de razões. A que mais nos importa para este ensaio é o facto de ser um fenómeno na fronteira entre duas instituições centrais da sociedade dos Estados: a soberania e a guerra.1

Como afirma Martha Finnemore (2003, 7) «a condição indispensável para a soberania estatal é a não-intervenção» pelo que é necessário deli- mitar cuidadosamente a intervenção militar multilateral para evitar que surja como «um desafio explícito à soberania».

A tentativa de afirmação da R2P como uma nova norma global, a par- tir de 2005, efetivamente não pretendeu substituir completamente a velha norma da não-intervenção como se poderia pensar numa leitura super- ficial e que a faria simplesmente equivaler a uma norma de intervenção humanitária. A R2P, como veremos mais em detalhe adiante, tenta en- contrar forma de conciliar estas duas instituições da sociedade interna- cional, ainda que marque uma perda relativa de peso da soberania, pelo menos no seu entendimento tradicional como imunidade plena por via da não-intervenção nos assuntos internos, e um ganho de importância dos princípios normativos relativos aos direitos humanos.

Porém há dúvidas fundadas quanto ao grau de difusão e aceitação da norma de R2P, nomeadamente no Sul global. Neste contexto a posição do Brasil, concretamente a proposta de uma norma complementar ou concorrente de RwP, foi vista como indicando uma transformação da ordem internacional no sentido de tornar a sociedade dos Estados mais global. Por exemplo Oliver Stuenkel (2014) defende que independente- mente de vir a ser consagrada formalmente, a RwP é um marco: o Sul Global deixou de ser um simples recetor de normas, para procurar ser um ator de pleno direito no campo normativo. O que nos leva para a questão central deste ensaio. Será que a RwP significa que o Brasil passou a ser uma potência normativa do Sul global e, se sim, porque é que parece ter desistido rapidamente da RwP?

1 Utilizamos os termos instituições internacionais, assim como sociedade dos

Estados/sociedade internacional no contexto da chamada Escola Inglesa. Para uma defi- nição clássica de Sociedade Internacional, ver Bull (2002), e para uma visão mais atua- lizada, ver um introdução a esta edição por Andrew Hurrell.

Brasil, potência normativa do Sul Global ou gatekeeper regional?

O meu objetivo principal neste ensaio é então o de concentrar-me no significado da RwP para o campo das relações internacionais em geral e da segurança internacional em particular num contexto de mudança da ordem internacional eventualmente no sentido da multipolaridade e de um descentramento da sociedade dos Estados. Este texto não pretende portanto fazer uma análise detalhada da RwP no quadro de uma recolha de novas fontes sobre o tema ou da descrição empírica da formulação desta opção da política externa brasileira durante o consulado de Antônio Patriota no Itamaraty. Aliás, sobre esses temas algo já tem sido feito, por outros autores que iremos citar ao longo deste ensaio (para uma síntese geral, e. g., Spektor 2012). Procuraremos essencialmente responder a questões que fazem a ligação do tema específico da RwP com temas mais gerais das relações internacionais: Pode a RwP ser explicada por um Escola Inglesa renovada apontando para a passagem de uma Sociedade dos Estados centrada no Ocidente para uma Sociedade Global? Ou é mais explicativa uma abor- dagem construtivista focada na identidade e na cultura estratégica? Ou será que o realismo, centrado nas capacidades de projeção de poder, ainda fornece as melhores explicações? Ou seja, e transformando estas ques- tões genéricas em perguntas mais específicas relativas à inserção internacional do Brasil: Como foi a RwP legitimada no Brasil? O Brasil identifica-se na sua política externa com o Sul global contra o Ocidente? O Brasil tem a vontade e as capacidades para ser uma potência ativa globalmente ou tem mais capacidade e interesse em afirmar-se como potência-guardião (gatekeeper) regional?

Na minha hipótese de resposta neste ensaio irei argumentar que a falta de uma defesa ativa da RwP parece ter resultado da combinação de uma série de fatores, desde uma dimensão contingente – mas fundamental numa política externa muito presidencial – da falta de empenho da Pre- sidente Dilma neste tipo de temas ou genericamente numa política ex- terna muito ativa e a falta de rapport com o ministro Patriota; até ao facto de em parte os objetivos do Brasil terem sido atingidos com uma simples declaração; às dificuldades em avançar concretamente com formas de gerir melhor as intervenções militares multilaterais; ou ainda a dificuldade de gerar acordo quanto a este tema entre as grandes potências emergentes, entre estas e as grandes potências tradicionalmente dominantes, para não falar no envolvimento de atores não-estatais (ONG) muito ativas nestes temas.

Antes de entrarmos no cerne da questão, importa assinalar muito re- sumidamente o histórico em termos dos tipos de publicações sobre estes temas. Muito foi publicado nos últimos anos em matéria de intervenção

militar multilateral e intervenção humanitária, em particular refletindo as amargas lições da década de 1990 (ver, por exemplo, Holzgrefe e Keo- hane 2003 e respetiva bibliografia). Em anos mais recentes também tem havido um notável aumento de análises académicas sobre as potências emergentes, e nesse contexto também sobre o Brasil (e. g., Alexandroff, Andrew e Cooper 2010 e respetiva bibliografia). No entanto, estes dois campos de pesquisa não se cruzavam frequentemente até há relativa- mente pouco tempo. Quando se tem procurado estabelecer relações entre potências emergentes e intervenções militares multilaterais, nomea- damente ao abrigo da R2P, elas tendem a ser interpretadas em termos de um confronto entre os dois. A maioria dos Estados que não fazem parte do núcleo de poder ocidental (constituído pelos EUA e seus aliados mais próximos) tendem a ser vistos como genericamente hostis à intervenção humanitária como um novo «cavalo de Tróia» de velhos «projetos impe- riais» ocidentais (Weiss 2007, 169).

Que esta perceção existe é reconhecido mesmo por aqueles que con- sideram que este contraste é exagerado (Stuenkel 2014). Neste contexto de uma forte presença na literatura de um confronto Norte/Sul relativa- mente à legitimidade de intervenções militares multilaterais ganha ainda mais sentido procurar perceber se a proposta de RwP apresentada pelo Brasil em 2011 procurava afirmar o país como um ator normativo global procurando rever, melhorar, conter, ou contrariar a norma emergente de intervenção para proteção de civis promovida pelas potências dominan- tes do Ocidente. Tratava o Brasil de modificar substancialmente ou até de inutilizar na prática esta forma recente de soft international law? Tratava de o fazer de acordo com as preocupações quanto às intervenções hu- manitárias por parte do Sul global?

Este foi sem dúvida um tema que ganhou força renovada em particular com a contestação em torno da forma como o mandato de 2011 do Con- selho de Segurança da ONU para uma intervenção militar na Líbia com base explícita na R2P foi implementado pela OTAN. E pode também ser ligado à crescente consciência da relevância de se olhar para o tema da R2P com maior sensibilidade à diversidade cultural na forma como é percebida esta norma (cf. Mani e Weiss 2011).

Neste ensaio teremos como fonte principal os discursos e os do - cumentos oficiais publicados. Como referimos, a preocupação da análise feita neste texto não é com discussões internas no quadro da formulação desta política externa brasileira, mas sim com analisar a forma como a proposta de RwP foi publicamente apresentada, e interpretá-la como in- dicador quer do posicionamento internacional do Brasil em geral, quer

Brasil, potência normativa do Sul Global ou gatekeeper regional?

da difusão de normas internacionais sobre intervenções militares multi- laterais por alegadas razões humanitárias, quer ainda de mudança na ordem internacional no sentido da multipolaridade e do descentramento.

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Como será estruturado este ensaio? Na primeira secção iremos pro - curar perceber o significado de RwP no contexto de uma breve leitura histórica da evolução da identidade e cultura estratégica brasileira. Na se- gunda secção, iremos analisar outras explicações possíveis do surgimento e da dinâmica (ou falta dela) desta iniciativa brasileira, nomeadamente em termos de limitações de poder e de um eventual posicionamento do Brasil como um líder da respetiva região, nomeadamente em questões de segurança. Na terceira secção, concluiremos com uma síntese expli- cativa, nomeadamente para perceber se faria sentido usar relativamente ao posicionamento internacional do Brasil também a respeito da RwP o conceito de potência normativa e/ou, senão líder, pelo menos de regional gate keeper/guardião (da integridade e segurança) regional; e apontaremos algumas possíveis implicações da RwP em termos do problema das in- tervenções militares humanitárias multilaterais no futuro.

Brasil e a RwP – identificando-se