• Nenhum resultado encontrado

O significado de RwP para a política global e as relações internacionais

O conceito básico de RWP foi desenvolvido por uma equipa do Mi- nistério das Relações Exteriores (Itamaraty) então liderada por Antônio Patriota, cujo interesse na ONU remontava pelo menos à sua tese no Instituto Rio Branco. Mas o que continha de essencial a nota conceptual apresentada formalmente em anexo a uma carta dirigida pela represen- tante brasileira ao secretário-geral das Nações Unidas em 9 de Novembro de 2011?

Os pontos cruciais da proposta de RwP parecem-nos ser: a) «a preven- ção é sempre a melhor política» relativamente à intervenção militar em termos de proteger vítimas civis; b) «esgotar todos os meios pacíficos dis- poníveis na proteção de civis sob ameaça de violência». Ou seja, defende- -se o princípio da sequencialidade. E sublinha-se a necessidade de moni- torizar a intervenção por forma a assegurar que estará «em consonância com os princípios e propósitos da Carta como consagrada na Cimeira Mundial de 2005».

O primeiro ponto a sublinhar é que pode haver muitas dúvidas e dis- cussões sobre a R2P e maiores ainda relativamente à RwP. Mas do que não pode haver dúvida é que ambas correspondem à iniciativa de em- preendedores normativos que visam consolidar novas e exigentes normas na sociedade internacional no campo vital da segurança. O conceito de norma no contexto da política internacional foi bem definido como

parte central da agenda de investigação construtivista. Katzenstein (1996, 5) apresenta-as como: «expectativas coletivas quanto ao comportamento adequado por parte de atores com uma determinada identidade». As nor- mas «especificam quais as ações relevantes em função das quais outros reconhecem uma identidade particular». Além disso, as normas «especi- ficam padrões de comportamento adequado». O Brasil através de RwP procuraria portanto mostrar preocupação, como uma democracia con- solidada deveria, pela defesa dos direitos humanos. A procura de expli- cações relativamente à difusão de normas de legitimidade é um tema central para os construtivistas (assim como para a Escola Inglesa). Neste sentido a interpretação mais plausível da iniciativa da RwP pelo Brasil seria a de assim se identificar como uma potência democrática normativa do Sul global que a partir de uma perspectiva do Sul global contesta a li- derança do núcleo de poder militar ocidental nas missões R2P ou até a própria utilidade de boa parte das intervenções militares multilaterais, sobretudo de imposição de paz.

Independentemente da posição que se possa assumir em relação ao debate sobre o papel exato da Cultura versus o da Realpolitik/Machtpolitik na política internacional, a dimensão cultural/ideacional é certamente demasiado importante para ser completamente ignorada quando se trata de analisar a construção social de normas internacionais, como é o caso da R2P e da RWP (ver debate Duffield et al. 1999). Isto é, naturalmente, diferente de argumentar que capacidades materiais não importam. Pelo contrário, o ponto é, como Goldstein e Keohane (1993, 4-6) afirmam, saber se alguém defende seriamente que as «variações na política externa [...] são totalmente explicadas por outros fatores e que o nível das ideias é totalmente irrelevante». A resposta parece-nos ser, evidentemente, não. Por isso não podemos ignorar a dimensão cultural e normativa da polí- tica.

Sou, no entanto, sensível ao argumento de Jeffrey Legro (1997, 34-35) de que não podemos simplesmente assumir a priori que a formalização e institucionalização de normas se pode equiparar à sua consolidação e robustez. Uma análise mais rigorosa do real peso desta dimensão idea- cional normativa exige uma análise das normas internacionais à luz da sua:

• especificação, i. e., em termos de «quão bem definidas e entendidos são» e se «países discutem» as «suas implicações ou implementações»; • durabilidade, i. e., se as normas «têm legitimidade de longa data» e se

Brasil, potência normativa do Sul Global ou gatekeeper regional?

• concordância, i. e., a «existência de um consenso generalizado sobre elas» e saber «se as regras são amplamente aceites».

Evidentemente R2P é uma norma recente, e isso significa que tem uma boa avaliação relativamente ao primeiro desses itens – é debatida acaloradamente e a defesa da RwP pelo Brasil pode ser visto como prova adicional disso –, mas menos boa no segundo e no terceiro pontos. A RwP ainda é uma tentativa demasiado recente e pouco consistente de alterar ou complementar a R2P para poder merecer propriamente grande classificação por si só. É mais um esboço de revisão de uma norma do que uma norma por direito próprio.

Sendo assim merece a proposta brasileira de RwP alguma atenção? Pa- rece-nos que sim no sentido de ser um indicador de uma evolução ainda longe de consolidada mas potencialmente muito importante em termos das dinâmicas da difusão de normas centrais na ordem internacional. Poucos, se é que alguns, contestarão que, no pensamento sobre difusão de normas da sociedade dos Estados, normalmente não se pensa em ter- mos de normas provenientes da China ou da Índia ou do Brasil. A difu- são de normas na sociedade internacional é from the West to the Rest, não é do Resto do Mundo para o Ocidente. O que não reflete simplesmente uma versão eurocêntrica da história da política internacional. Tem, pelo menos em parte, base na realidade histórica. Como defende o texto já clássico de Bull e Watson (1984) a expansão da sociedade dos Estados deu-se a partir da Europa e seguindo em boa medida o modelo, as nor- mas que aí vigoravam.

Buzan e Little (2010) – dois dos mais ativos representantes da Escola Inglesa, uma escola particularmente atenta a este processo histórico de difusão normativa – defendem que, em abstrato, uma sociedade inter- nacional global poderia ter surgido de duas maneiras: «A primeira teria sido vários núcleos de civilização do Mundo Antigo se expandirem, au- mentando o contacto com outros, o que exigiria que se desenvolvessem conjuntamente normas para regular essas relações.» Mas foi «o caminho alternativo» que realmente vingou, ou seja, o do desenvolvimento da so- ciedade dos Estados a partir de um núcleo de civilização que foi absor- vendo de forma mais ou menos coerciva todos os outros nas suas insti- tuições, normas e regras específicas. Este modelo de vanguarda, neste caso do núcleo europeu ocidental, desenvolveu-se portanto a partir de relações de desigualdade, de «um padrão da civilização» como critério- -chave para as sociedades não-ocidentais poderem aspirar a obter a direito de «adesão».

A RwP brasileira pode, portanto, ser vista como uma tentativa ou um sinal de um movimento em direção a um modelo de construção da ordem e da sociedade internacionais mais multipolar, mas também mais pluralista e descentrado. Poderá ser vista como um passo, um sinal no sentido de se passar de uma sociedade internacional para uma verdadeira sociedade global (para esta distinção tão importante nos debates atuais dentro da Escola de Inglesa entre sociedade internacional e sociedade global, cf. Williams 2010). Estas transformações podem passar, ironicamente, pelo menos em parte, por intermédio da utilização pelas ditas potências emergentes da norma de igualdade soberana, apesar de essa norma ser vista como tipi- camente europeia e ser frequentemente remetida para os Tratados de Paz de Vestefália (1648). Isso é menos paradoxal do que pode parecer se nos dermos conta de que a norma da igualdade soberana e o seu corolário – a não-intervenção nos assuntos internos – não foram geralmente apli- cados ao resto do mundo durante a era colonial, ou seja, até 1945-1960. Na verdade, de acordo com muitos críticos ainda não estão a ser plena- mente aplicados até hoje justamente por causa de normas como a R2P, que objetivamente servem os interesses das principais potências ociden- tais, mesmo que na sua elaboração tenham colaborado alguns protago- nistas não-ocidentais, desde logo o próprio secretário-geral Kofi Annan. Não foi evidentemente por acaso que esta proposta brasileira de RwP foi apresentada alguns meses depois de o Brasil se ter abstido de apoiar no Conselho de Segurança das Nações Unidas a intervenção militar oci- dental na Líbia em 2011. O Brasil (2011) afirmou expressamente no do- cumento em que apresentou a RwP: «Há uma perceção crescente de que o conceito de responsabilidade de proteger pode estar a ser indevida- mente utilizado para fins que não a proteção de civis, como a mudança de regime.»

O Brasil partilha com outras potências do Sul um conjunto de opi- niões sobre a falta de sinceridade das potências ocidentais centrais nessas intervenções ditas humanitárias, e uma forte percepção de que os EUA, a Grã-Bretanha e a França as usam para promover mudanças de regime que lhes são estrategicamente conveniente, como no caso da Líbia. Mas, o Brasil potência democrática não poderia simplesmente abster-se de apoiar futuras intervenções sem mais e sem alguns custos políticos in- clusive internamente. Ao defender a RwP, o Brasil estava a fazer um es- forço visível para deixar claro que não se limitava a dizer não à R2P. Isto significa, em termos de difusão da R2P, um sucesso, pelo menos parcial. O ponto mais importante a retirar para o futuro da ordem internacio- nal da contestação genérica em torno da R2P, e, em particular, da RwP,

Brasil, potência normativa do Sul Global ou gatekeeper regional?

é que não pode ser dado como certo que as potências democráticas emer- gentes do Sul percecionem e abordem os problemas de segurança inter- nacional e as soluções adequadas para os mesmos, da mesma forma que as principais potências do Ocidente. Mesmo quando estas potências do Sul global possuem uma identidade cultural de matriz colonial ocidental como parte do seu património, como é o caso do Brasil. A proposta bra- sileira de RwP deixa claro, para além disso, que há países que se opõem a intervenções feitas em nome de R2P pelas principais potências ociden- tais, não necessariamente porque se opõem à democracia e aos direitos humanos, mas porque questionam as intervenções militares conduzidas pelo Ocidente como a melhor maneira de os defender.

Uma das principais mensagens da RwP é portanto bastante clara. A de que a R2P não deve ser indevidamente militarizada e ocidentalizada. Como é que isto se traduz na RwP? Pela reafirmação de que a R2P tem três pilares. O primeiro pilar identifica o Estado como o principal detentor da responsabilidade de proteger as populações contra genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade. O segundo pilar destaca o papel da comunidade internacional em prestar cooperação e as- sistência que permita o desenvolvimento das capacidades locais para que os Estados possam ter capacidade de assumir essa responsabilidade. É ape- nas o «terceiro pilar, que se aplica em circunstâncias excecionais, quando as medidas previstas no primeiro e segundo pilares tenham notoriamente falhado», que «permite que a comunidade internacional recorra à ação coletiva», mas ainda assim, só «em conformidade com as normas e pro- cedimentos estabelecidos na Carta». A forma como esta parte da proposta brasileira foi interpretada – a de realmente parecer advogar uma rígida se- quência, só se passando do primeiro para o segundo ou terceiro pilar quando o precedente estivesse esgotado, foi das que suscitaram mais re- servas entre os defensores da R2P relativamente a aceitar uma adenda do tipo da RwP.

O que fica claro, no entanto, é que independentemente do maior ou menor sucesso da RwP, não poderá deixar de ser tido em conta o ponto genérico levantado pelo Brasil de que a R2P não pode ser uma licença para as potências centrais ocidentais usarem as suas superiores capacida- des militares para intervir pela força. Se o fizerem à margem da ONU – que, embora imperfeita, ainda oferece algumas garantias e dá alguma voz às demais potências –, irão colocar cada vez mais em questão a legi- timidade global da R2P e a possibilidade de a evocar.

Porque falhou a RwP e qual