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Pode a RwP ser vista como o luxo de um grande país num continente como a América do Sul periférica relativamente aos grandes conflitos

Brasil, potência normativa do Sul Global ou gatekeeper regional?

militares entre Estados no último século? Ou, alternativamente, pode a RwP ser vista como uma forma de fazer da necessidade realista uma vir- tude normativa, i. e., como uma fachada legitimadora para uma relativa falta de investimento brasileiro em capacidades militares que lhe permi- tam desempenhar um papel significativo a nível da segurança interna- cional projetando fortes capacidades militares? Será isto mais um sinal de uma «síntese imperfeita» entre uma política externa cada vez mais am- biciosa e capacidades ainda limitadas do Brasil para atingir metas tão ambiciosas (ver, por exemplo, Alsina 2006)?

Como ficou claro no início deste texto, não defendemos que podemos ou devemos explicar exclusivamente a iniciativa da RwP no plano da di- mensão ideacional e normativa. Mas gostaria de destacar dois pontos im- portantes. Em primeiro lugar, é verdade que o Brasil tem capacidades militares limitadas relativamente às grandes potências globais. Mas tem, ainda assim, o 11.º maior orçamento militar do mundo (Military Balance 2015, 21) apesar da ausência de ameaças estatais claras ou eminentes ao Brasil. Ainda de acordo com a mesma fonte o Brasil é a maior potência militar da sua região. Os gastos do orçamento brasileiro de defesa repre- sentam quase tanto quanto o de todos os outros países da América Latina combinados, 43% do total latino-americano e ainda mais do sul-ameri- cano (Military Balance 2015, 368). Claro que o facto de uma parte signi- ficativa dessa despesa ser em pagamentos de pessoal, limita significativa- mente o que fica disponível para a manutenção e modernização de equipamento, ou para missões no exterior. Mas este problema não é ex- clusivo do Brasil.

Em segundo lugar, é verdade que o Brasil tem estado relativamente isolado pela geografia e pela distância até mesmo dos seus vizinhos con- tinentais. Mas isso pode mudar com a intensificação da globalização, e com o afirmar pelo Brasil da sua vontade de ser uma potência regional e global emergente cada vez mais envolvida com o mundo exterior. Para que o Brasil venha a ter um estatuto de liderança regional e global, isso requer capacidade de intervir e influenciar acontecimentos, nomeada- mente no campo da segurança (para uma análise dos obstáculos que o Brasil enfrenta na sua capacidade em se afirmar como um líder regional, cf. Malamud 2011).

O ponto crucial para a questão que nos ocupa é o facto de que a res- posta oficial a estas tensões reais é dada na Estratégia de Defesa Nacional (Brasil 2008, 2) segundo a qual «o Brasil ascenderá ao primeiro plano no mundo sem exercer hegemonia ou dominação». O desenvolvimento pa- cífico promovendo uma maior autonomia é a principal estratégia nacio-

nal brasileira – numa crítica implícita mas óbvia de grandes potências passadas e presentes, como os EUA. Foi esta postura que levou um alto responsável brasileiro numa reunião com regra Chatham House com res- ponsáveis da OTAN e académicos, no Rio de Janeiro, em 2013, a per- guntar retoricamente: «Teremos que nos tornar uma potência militar nu- clear para sermos reconhecidos como uma grande potência?» Claro que haverá realistas que afirmarão que a falta de capacidades militares é real- mente uma grande limitação à afirmação internacional do Brasil, sobre- tudo se não for compensada por outros aspetos. Em todo o caso este ci- vilismo, esta tendência de rejeição normativa do uso da força reforça o argumento de que o Brasil tende a posicionar-se como uma potência nor- mativa civil tanto quanto possível.

O Brasil procura afirmar-se como uma grande potência pacífica tam- bém quando argumenta que muitas vezes uma intervenção militar piora as situações de crise, dando exemplos como o das intervenções militares dos EUA e seus aliados do Iraque até à Líbia. Portanto a elite decisiva brasileira não vê razões normativas nem pragmáticas para comprometer mais recursos com intervenções militares no exterior. Tanto mais quanto as elites brasileiras, sobretudo as atualmente no poder, entendem que estas intervenções são determinadas fundamentalmente por interesses estratégicos ocidentais, em particular dos EUA. Pode ser que alguns di- plomatas, militares ou políticos brasileiros sejam mais ou menos críticos da política externa brasileira atual, mas quanto a uma alteração de fundo relativamente à questão de intervenções militares no exterior as críticas parecem ser, de momento, minoritárias a ponto de serem inaudíveis.

Importa sobretudo sublinhar que a postura brasileira de limitação do intervencionismo, mesmo humanitário, do Ocidente, defendida por ra- zões normativas, também faz sentido como uma resposta estratégica rea- lista para permitir ao Brasil investir mais no desenvolvimento interno, limitar os investimentos militares e as intervenções externas de grandes potências mais fortes durante o seu período de ascensão. Esta interpre- tação realista da posição do Brasil parece ser relativamente popular nos meios diplomáticos e militares ocidentais.

O que deve ficar claro é que a sobredeterminação da postura brasileira não nos deve impedir de notar a importância também da dimensão nor- mativa. O peso mesmo legal das normas constitucionais formalizando uma cultura estratégia brasileira que perceciona o uso da força e a inter- venção nos assuntos internos de outro Estado com grande reserva. Mas é certo que esta sobredeterminação torna complicado afirmar que a di- mensão normativa prevalece claramente sobre outras condicionantes rea-

Brasil, potência normativa do Sul Global ou gatekeeper regional?

listas, visto que quer os fatores ideacionais, quer os materiais convergem no sentido de favorecer a mesma forma de inserção neovestefaliana do Brasil na sociedade dos Estados.

Ao mesmo tempo importa sublinhar que o Brasil continua a reivindi- car um papel de liderança a nível mundial no campo da segurança e das operações de paz na ONU. Algo tornado manifesto pelo empenho e pelo sucesso brasileiro na escolha do ex-ministro Antônio Patriota, en- quanto representante permanente do Brasil na ONU, para presidir à res- pectiva Comissão das Operações de Paz (Peacebuilding Commission). É aqui – no casar esta ambição de protagonismo do Brasil no campo da segurança que justifique um lugar de membro permanente do Conselho de Segurança com um perfil de potência normativa civil ou pacífica – que a utilidade da RwP nos parece evidente. Além de que provavelmente ajudou a credibilizar o perfil de Patriota para o referido lugar (embora previsivelmente no desempenho da mesma não tenha levado a cabo uma promoção da RwP – aliás não seria de esperar que o fizesse como simples diplomata, quando não o tinha feito como ministro).

Claro que mesmo a afirmação do Brasil enquanto grande potência normativa civil acaba por gerar expectativas de ação externa que reque- rem meios significativos de ação, inevitavelmente também no campo vital da segurança. A distância entre expectativas e capacidades militares tem sido crónica na análise do perfil externo da UE, o exemplo clássico de um poder normativo civil (Giegerich 2010, 41-58). De facto, o mesmo se poderia dizer relativamente ao Brasil. Tanto mais quanto o programa brasileiro de aquisição e modernização de capacidades militares prosse- gue com alguma lentidão e aparece algo condicionado pela crise e pelo desejo – aliás compreensível – de fazer deste um investimento que traga retorno para o Brasil em termos de transferência de tecnologia, de inves- timento e emprego na economia nacional.

O papel de liderança do Brasil na Missão de Paz da ONU no Haiti pode ser visto em parte como uma resposta a essas críticas, de que um candidato credível a um lugar permanente no Conselho de Segurança deve contribuir ativa e visivelmente para a segurança internacional. A li- derança brasileira da MINUSTAH é um marco importante, tanto mais quanto é uma missão no quadro do Capítulo VII.2Ele mostra que o Bra- 2Para saber mais sobre a participação brasileira em operações de manutenção da paz,

cf. Kenkel 2013. Para números recentes de participação relativa por país, em 9 missões da ONU – sendo que ela é significativa no caso da UNIFIL no Líbano com algumas centenas de homens e uma fragata, e da MINUSTAH no Haiti com o comando da mesma e 1360 homens, cf. Military Balance 2015, 385).

sil possui algumas capacidades, passíveis de serem utilizadas no quadro multilateral. Mas também é importante sublinhar que a assunção desse papel numa intervenção militar só foi aceite pelo Brasil no quadro de uma missão multilateral tornada normativamente aceitável por um man- dato da ONU, e por um forte enquadramento regional. Por outro lado, na doutrina estratégica brasileira, a missão no Haiti é lida de uma forma que a distancia o mais possível da ideia de imposição da paz, tipicamente associada a missões no quadro do Capítulo VII. O Livro Branco da De- fesa (2012, 32-33) afirma de forma duplamente significativa a este respeito que a «crescente importância do Brasil na área da paz e da segurança» tem sido manifestada pela «sua participação em operações de manutenção da paz». O mesmo texto de referência em termos da perceção destas mis- sões no quadro da cultura estratégica brasileira diz que «os limites são claros: as missões de paz não podem substituir as partes de um conflito. A ONU ajudara a sustentar a paz que as partes venham a construir, de- vendo fazê-lo de modo estritamente imparcial» e é neste quadro que é feita uma referência à necessidade de uma abordagem holística e não apenas militar para «ajudar a criar as bases políticas, institucionais e so- cioeconómicas de uma paz duradoura.» É neste contexto que é feita tam- bém referência expressa à iniciativa brasileira RwP do ano anterior para que o uso da força na «proteção de civis em situações de conflito [...] não exceda o previsto pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas». Para o Brasil, importava também sublinhar que assumir a liderança da missão era uma forma de garantir que seria um Estado da América do Sul e do Caribe a assumir o papel de liderança numa missão militar na respetiva região. Ou seja, ao contrário do que possa parecer – e ainda que tendo o Brasil de redefinir a sua região como incluindo o Caribe e o Haiti –, este é um caso particularmente forte para defender o argu- mento de que o Brasil se está também ou até primordialmente a afirmar como um gatekeeper, como um guardião da segurança regional.

Há claramente crescentes interesses em o Brasil ficar mais comprome- tido regional e globalmente. Ainda assim não é claro que, mesmo com mais investimento na defesa, existam ou venham a existir capacidades de projeção de poder militar no curto ou mesmo médio prazo significativa- mente acrescidas, e sobretudo vontade política de usar as que vierem a existir de forma significativamente mais assertiva em intervenções militares no exterior. Isto significa que numa leitura realista da situação faz algum sentido que, na falta de melhor, o Brasil aposte na cartada da potência nor- mativa civil. Mas esta opção acarreta também riscos. Sobretudo o risco de existir uma crise de segurança numa região que o Brasil considera vital que

Brasil, potência normativa do Sul Global ou gatekeeper regional?

venha a exigir uma resposta militar robusta e rápida, e que o país não a possa dar. Podendo outras potências ser levadas a intervir até como resposta ao apelo de potências locais – como sucedeu no caso do Mali, com o go- verno de Bamako, perante o risco de colapso do Estado, em 2012, a apelar, com o apoio dos países africanos vizinhos, à intervenção da França.

A RwP terá tendido a aumentar, ainda que marginalmente, estas ex- pectativas e frustrações relativamente a um Brasil mais ativo na área das intervenções com mandato da ONU. Por outras palavras, o Brasil pode obter algum reconhecimento e estatuto como uma potência normativa, mas numa leitura realista isso será difícil de sustentar a prazo, caso con- tinue a pretender fazer equivaler isso a ser também uma potência essen- cialmente civil.

Independentemente dos fatores que possam ter estado na origem da RwP, qual foi o seu impacto e significado nas relações internacionais? É esta a pergunta a que procuraremos responder na próxima secção.

O significado de RwP para a política global