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Mais de duas décadas passadas sobre a Cimeira da Terra e da Agen - da 21 (CNUAD 1992) e quase três da publicação do relatório Bruntland (CMAD 1987), a sustentabilidade e as condições basilares para a alcan- çar – participação e envolvimento público, segundo os dois documentos matriciais referidos – estão longe de ter sido conquistadas, apesar de al- guns progressos pontuais. Pressupunha-se que diferentes plataformas de proximidade e diálogo geradoras de maior interação entre governantes e governados (e. g., agendas 21 locais, fóruns deliberativos, planos de intervenção participados, conferências de consensos, comités locais...) contribuiriam para o sucesso de políticas e estratégias de desenvolvimento sustentável. Os processos implícitos de disseminação de informação e consequente participação ajudariam a criar maior adesão pública para a necessária mu- dança social que a escassez de recursos não permitirá evitar. Mais con- cretamente, procura-se atrair a população e as diferentes organizações da sociedade civil para as tarefas de governança do bem comum, tornando- -as aliados na formulação e implementação de políticas públicas nem sempre consensuais. Ora em Portugal, como no Brasil, onde, por um lado, a força da sociedade civil e, por outro, o ambiente enquanto valor social, só ganharam significado depois do retorno à democracia (Schmidt e Guerra 2010), a distância entre os discursos proclamados e a realidade prática é ainda grande.

No que a Portugal diz respeito, o retrocesso do processo de descentra- lização da gestão dos recursos hídricos, que se repercute na capacidade de envolvimento das populações locais, é um bom exemplo deste fosso que parece crescer com a crise económica (Guerra 2011). No que toca ao Brasil, uma análise dos processos participativos, relativos não apenas à água mas à sustentabilidade em geral, revelava uma marca indelével de tradições estatistas, centralizadoras e patrimonialistas, regidas com alguma frequência por padrões clientelistas e pouco transparentes (Jacobi 2005,

Sustentabilidade, transparência e recursos hídricos em Portugal e no Brasil

122). Assim, sobretudo se comparadas estas duas realidades com outras onde as práticas participativas entraram há muito no regular funciona- mento da governança democrática, o défice de confiança entre institui- ções públicas e sociedade civil e a falta de envolvimento cívico na gover- nança ambiental (seja dos recursos hídricos, seja de outros recursos naturais) são claros e justificam muitos dos problemas que aqui procura- remos sinalizar.

Com efeito, como podemos constatar na figura 1.1, a confiança insti- tucional é baixa quer em Portugal, quer no Brasil. Partindo de um pata- mar bastante mais baixo que o português, o grau de confiança institu- cional brasileiro parece, ainda assim, ter resistido melhor ao desgaste dos últimos anos. As diferentes conjunturas económicas atravessadas pelos dois países neste período explicarão certamente esta diferença. Assim, em contraste com uma relativa permanência no grau de (des)confiança no Brasil, entre os inquiridos portugueses acentua-se o sentido crítico, sobretudo no que diz respeito às instituições de poder político (parla- mento e partidos). Mas a desaprovação não deixa de virar-se igualmente para o poder judicial e mesmo para as forças policiais que, tradicional- mente, gozam de alguma popularidade entre os inquiridos portugueses. A desconfiança, que já é endémica – note-se que numa escala de 1 a 4 o valor mais alto é alcançado pelas forças policiais portuguesas que, ainda assim, não ultrapassam os 2,5 – cresce e instala-se nos dois lados do Atlântico e repercute-se nas mudanças profundas ocorridas a nível global que implicam uma pressão acrescida com impactos muito para além dos contextos com défice de tradição cívica. Confirma-se, assim, que o ciclo de desconfiança, que já vinha detrás, consolidou-se nos últi- mos anos: a insatisfação dos cidadãos com a qualidade da democracia é notória e traduz-se, nomeadamente, na crescente falta de confiança nos

Figura 1.1 – Evolução da confiança institucional em Portugal e no Brasil

Brasil 2011 (LB) Portugal 2012 (ESS) Portugal 2008-2012 Brasil 2007-2011

Parlamento/congresso Poder judicial Forças policiais Partidos políticos

políticos; na avaliação negativa da governação que, em geral, se considera pouco eficaz; na corrupção e nas desigualdades sociais que, pelo menos aos olhos dos cidadãos, têm vindo a aumentar (Schmidt e Guerra 2010; Moriconi e Bernardo 2012).

É verdade que, nesta segunda década do século XXI, poucos se decla- ram ostensivamente adversários do desenvolvimento sustentável, mas talvez uma das suas maiores fragilidades seja, precisamente, a ubiquidade e colateralidade que lhe roubam rigor e focalização, sobretudo em con- textos com tradições cívicas ainda pouco escoradas na confiança (Putnam 1993). O consenso superficial que caracteriza o debate nesta área da sus- tentabilidade deu lugar a uma série de aplicações e discursos paralelos – por vezes contraditórios, por vezes apenas miméticos – que redunda- ram num sem-número de abordagens nem sempre adequadas à eficaz implementação de padrões de desenvolvimento sustentável (Redclift 2005). Como sublinha Neil Carter, a aparente aceitação incontestada e consensualizada a que assistimos não decorre tanto da inequívoca acei- tação dos princípios do desenvolvimento sustentável (que a acontecer é muitas vezes tácita), mas sobretudo das falhas ou, pelo menos, da con- testação parcial e muitas vezes dissimulada, que muitos ainda lhe reser- vam (2007, 212). Residindo aí um dos maiores fatores de inoperância e de descredibilização, ficamo-nos, frequentemente, pelo wishful thinking (Dryzek 2006), sem a indispensável vontade politica e a necessária mo- bilização de recursos capazes de garantir resultados práticos efetivos.

A interpretação que hoje se faz da sociedade, da natureza e do espaço de interação entre ambas, está enquadrada pelo passado e pelos condi- cionalismos que representa para o presente. Assim, os reais sinais de mo- bilização pelo ambiente e de cidadania participativa não podem, por isso, dissociar-se das condições socioeconómicas que resultam da efetiva im- plementação de valores democráticos nem das heranças autoritárias que não deixam de se fazer sentir numa lenta, ainda que progressiva, recon- figuração de práticas sociais e institucionais, tradicionalmente avessas à participação dos cidadãos nos processos de tomada de decisão (Jacobi 2005; Guerra 2011).

Neste contexto, no que à gestão da água diz respeito, as práticas mais abertas de descentralização e de participação são inovadoras e relativa- mente recentes, contrariando uma «postura histórica de cultura política da administração pública central, tradicionalmente associada a formatos muito formalizados e centralizados» (Vasconcelos et al. 2011, 34), fre- quentemente acrescida de uma inegável falta de preparação e experiência das entidades públicas para promover envolvimento popular.

Sustentabilidade, transparência e recursos hídricos em Portugal e no Brasil

As dificuldades sentidas na transparência na governança da água e dos recursos hídricos decorrem, portanto, deste contexto onde os défices her- dados de participação e confiança estão ainda bem presentes e coexistem com pressões convergentes advindas de uma crise mais global de repre- sentatividade e confiança nas instituições políticas atuais, potenciada em Portugal pela particular acuidade da crise económica (Schmidt e Guerra 2013). Mas também no Brasil onde, apesar da conjuntura aparentemente mais favorável, a onda de manifestações desencadeada em 2013 é, como sublinham Maricato et al., olhada como um «terremoto social» que aba- lou a ordem estabelecida de injustiça social e deu visibilidade a uma in- finidade de questões, contradições e paradoxos sociais não resolvidos (2013). Num e noutro lado do Atlântico, estaremos perante uma reno- vada capacidade e vontade dos cidadãos para defender o bem comum e exigir uma nova postura (mais aberta aos cidadãos e mais transparente na tomada de decisão) das instituições públicas.

O mais elevado decréscimo de confiança institucional registado em Portugal parece, assim, relacionar-se com o contexto de crise económico- -financeira e os efeitos da decorrente austeridade sentida em Portugal, pelo menos desde 2011. De acordo com os dados expostos na figura 1.2,

Figura 1.2 – Sustainability Society Index (SSI 2006 e 2012) em Portugal e no Brasil

Brasil 2012 - SSI = 5,47 Brasil 2006 - SSI = 5,04 Portugal 2012 - SSI = 5,23 Portugal 2006 - SSI = 5,27

Necessidades básicas NB.1 Suficiência alimentar NB.2 Suficiência água potável NB.3 Saneamento Recursos naturais RN.13 Recursos hídricos RN.14 Consumo Saúde S.4 Vida saudável S.5 Ar saudável S.6 Água saudável Clima e energia CE.15 Energias renováveis CE.16 Gases de efeito estufa

Desenvolvimento social DS.7 Educação DS.8 Igualdade de género DS.9 Distribuição de rendimento DS.10 Boa governança Transição T.17 Agricultura biológica/orgânica T.18 Poupança genuína Natureza e ambiente NA.11 Qualidade do ar NA.12 Biodiversidade Economia E.19 PIB E.20 Emprego E.21 Dívida pública

para além dos indicadores económicos onde já se esperaria algum im- pacto, esta situação está a surtir igualmente efeitos no processo de tran- sição e, nomeadamente, na poupança genuína1que atinge um dos maio-

res decréscimos (–2,92), mas igualmente na «boa governança» que lhe está na base com menos 0,49. Em particular no caso português, as ten- dências de crescimento apresentadas por alguns outros indicadores (e. g., saúde, educação e distribuição de rendimento) podem justificar-se pelos efeitos tardios advindos de investimentos ocorridos antes da austeridade imposta pelo Memorando de Entendimento em 2011. No mesmo pe- ríodo, o Brasil não apresenta nenhuma regressão assinalável, podendo distinguir-se uma evolução relativamente positiva na área da economia (PIB, emprego) e na área das necessidades básicas. Em geral, portanto, no período em análise, os dois países surgem com situações antagónicas, apresentando o Brasil uma evolução positiva do SSI (de 5,04 para 5,47) e Portugal uma evolução negativa (de 5,27 para 5,23).

A importância da água para a sustentabilidade e para a qualidade de vida das populações é fulcral e assim é entendida no Sustainability Society Index (SSI), onde surge ora como indicador de suprimento de necessida- des básicas (suficiência de água potável), ora de garantia de saúde pública (água saudável), ora ainda como indicador de estado dos recursos naturais (recursos hídricos). De acordo com os resultados apresentados, são os re- cursos hídricos que, em conjunto com a biodiversidade, parecem fazer a diferença brasileira. Estes são de facto os dois indicadores onde Portugal consegue melhores desempenhos, mas que não se repercute depois na qualidade e quantidade de água para consumo humano. Regista-se uma melhoria na disponibilização de água potável, mas a situação encontra- -se longe – aliás, como a portuguesa –, de estar isenta de problemas. Daí a importância do INTRAG e da informação que este índice permite re- colher e analisar.

1Trata-se de um indicador que incide sobre a formação de capital (i. e., capital cons-

truído, capital humano, capital natural, capital social...). O desenvolvimento sustentável (numa versão minimalista) teria como condição necessária, ainda que não suficiente, a manutenção do stoke total de capital. Assim a exploração de recursos naturais pode ser contrabalançada com a criação de recursos humanos (i. e., educação), ou sociais (i. e., bem--estar social, saúde). Pearce, Atkinson e Hamilton advertem ainda que o indicador não nos aponta necessariamente um padrão de sustentabilidade, mas indica, sobretudo, padrões de desenvolvimento insustentável que equivalem a taxas de poupança genuína negativas. Taxas que, a manter-se, acabam por inviabilizar o bem-estar social e ambiental (Pearce, Atkinson e Hamilton 1998).

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