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O ANO DA FALSA PRIMAVERA

No documento O Mundo de Gelo e Fogo (páginas 141-146)

NOS ANAIS DE Westeros, 281 d.C. é conhecido como o Ano da Falsa Primavera. O inverno dominara a terra com suas garras geladas por quase dois anos, mas, finalmente, a neve estava derretendo, os bosques estavam verdes, os dias ficavam mais longos. Embora os corvos brancos ainda não tivessem voado, havia muitos até mesmo na Cida- dela que acreditava que o final do inverno estava próximo.

Enquanto os ventos quentes sopravam do sul, senhores e cavaleiros de todos os Sete Reinos seguiam para Har- renhal para competir no grande torneio de Lorde Whent, nas margens do Olho de Deus, evento que prometia ser a maior e mais magnífica competição desde a época de Aegon, o Improvável.

Sabemos muito sobre este torneio, pois as coisas que ocorreram ao lado das muralhas de Harrenhal foram com- piladas por uma dezena de cronistas e registradas em muitas cartas e testemunhos. Mesmo assim, há muito e ainda mais que nunca saberemos, pois, enquanto os maiores cavaleiros dos Sete Reinos disputavam as listas, outros jogos mais perigosos eram jogados nos salões do castelo amaldiçoado de Negro Harren e nas tendas e pavilhões dos se- nhores reunidos.

Muitos contos surgiram às margens do torneio de Lorde Whent: relatos de tramas e conspirações, traições e re- beliões, infidelidades e encontros amorosos, segredos e mistérios, quase tudo conjecturas. A verdade é conhecida apenas por poucos, alguns dos quais há muito passaram desse vale mortal e devem conter as línguas para sempre. Por isso, ao escrever sobre essa reunião fatídica, o estudioso consciente deve tomar cuidado em separar fato de fantasia, para desenhar uma linha nítida entre o que é conhecido e o que é simplesmente suspeita, crença ou rumor.

Isto é conhecido: o torneio foi anunciado pela primeira vez por Walter Whent, Senhor de Harrenhal, no final do ano de 280 d.C.42, não muito tempo depois de uma visita de seu irmão mais novo, Sor Oswell Whent, um cavaleiro da Guarda Real. Que esse seria um acontecimento de magnitude sem igual estava claro desde o início, pois Lorde Whent oferecia prêmios três vezes maiores do que aqueles ofertados no grande torneio de Lannisporto, em 272 d.C.43, organizado por Lorde Tywin Lannister na celebração do décimo ano de Aerys II no Trono de Ferro.

Muitos tomam isso simplesmente como uma tentativa de Whent de superar a antiga Mão e demonstrar a riqueza e o esplendor de sua casa. Mas há aqueles que acreditam que isso não passava de um ardil, e que Lorde Whent não era mais do que uma fachada. Sua senhoria não tinha fundos para pagar prêmios tão magníficos, essas pessoas ar- gumentam; certamente alguém estava por trás dele, alguém que não tinha falta de ouro, mas que preferia permane- cer nas sombras enquanto permitia que o Senhor de Harrenhal reivindicasse a glória por hospedar esse evento tão maravilhoso. Não temos traço de evidência que tal ―anfitrião-sombra‖ alguma vez tenha existido, mas a ideia foi amplamente aceita na época e assim permanece até hoje.

Mas, se, de fato, havia uma sombra, quem era ele, e por que escolheu manter seu papel em segredo? Uma dúzia de nomes foi levantada ao longo dos anos, mas apenas um parece realmente convincente: Rhaegar Targaryen, prín- cipe de Pedra do Dragão.

Se essa história pode ser levada a sério, foi o príncipe Rhaegar quem incentivou Lorde Walter a organizar o tor- neio, usando o irmão de sua senhoria, Sor Oswell, como intermediário. Rhaegar proporcionou a Whent ouro sufici- ente para prêmios esplêndidos, para atrair o máximo possível de senhores e cavaleiros a Harrenhal. Dizem que o príncipe não tinha interesse no torneio em si; sua intenção era reunir os grandes senhores do reino no que equivale- ria a um Grande Conselho informal, a fim de discutir formas e meios de lidar com a loucura de seu pai, o rei Aerys II, possivelmente com a instituição de uma regência ou de uma abdicação forçada.

Se, de fato, esse era o propósito por trás do torneio, Rhaegar Targaryen estava fazendo um jogo perigoso. Em- bora poucos duvidassem de que Aerys tinha perdido o juízo, muitos ainda viam bons motivos para se opor à sua saída do Trono de Ferro, uma vez que certos cortesãos e conselheiros conquistaram grande riqueza e poder por meio dos caprichos do rei, e sabiam que perderiam tudo se o príncipe Rhaegar chegasse ao poder.

O Rei Louco podia ser selvagemente cruel, como era claramente visto quando queimava aqueles que percebia como inimigos, mas também podia ser extravagante, cobrindo homens que o agradavam com honras, cargos e ter-

42Este é um suposto erro proveniente do texto original, referente à página 124 da edição física. Há uma contradição a respeito

de quando o Torneio de Harrenhal foi anunciado pela primeira vez (280 d.C. vs. 281 d.C. ‒ ou os textos de Aerys II vs. O Ano da Falsa Primavera).

43 Foi confirmado que o grande torneio de aniversário de dez anos de Aerys II no Trono de Ferro ocorreu em Porto Real, não

ras. Os senhores bajuladores que cercavam Aerys II tinham muito e ainda mais a ganhar com as loucuras do rei, e aproveitavam avidamente todas as oportunidades que tinham para falar mal do príncipe Rhaegar e inflamar as sus- peitas do pai em relação ao filho.

Os principais apoiadores do Rei Louco eram os três senhores de seu pequeno conselho: Qarlton Chelsted, mes- tre da moeda; Lucerys Velaryon, mestre dos navios; e Symond Staunton, mestre das leis. O eunuco Varys, mestre dos sussurros, e o Sábio Rossart, grande mestre da Guilda dos Alquimistas, também desfrutavam da confiança do rei. O apoio do príncipe Rhaegar vinha dos homens mais jovens da corte, incluindo Lorde Jon Connington, Sor Myles Mooton de Lagoa da Donzela e Sor Richard Lonmouth. Os dorneses que vieram para a corte com a princesa Elia também eram da confiança do príncipe, em particular o príncipe Lewyn Martell, tio de Elia e irmão juramenta- do da Guarda Real. Mas o mais formidável de todos os amigos e aliados de Rhaegar em Porto Real certamente era Sor Arthur Dayne, a Espada da Manhã.

Para o Grande Meistre Pycelle e para Lorde Owen Merryweather, a Mão do Rei, ficava a difícil tarefa de manter a paz entre essas facções, mesmo que a rivalidade ficasse cada vez pior. Em uma carta para a Cidadela, Pycelle escreveu que a divisão dentro da Fortaleza Vermelha lembrava-o com desconforto da situação antes da Dança dos Dragões, um século antes, quando a inimizade entre a rainha Alicent e a princesa Rhaenyra partira o reino ao meio, com custos lamentáveis. Um conflito do mesmo modo sangrento esperava os Sete Reinos mais uma vez, ele adver- tia, a menos que algum acordo pudesse ser feito para satisfazer tanto os apoiadores do príncipe Rhaegar quanto os do rei.

Se qualquer sinal de prova que mostrasse que o príncipe Rhaegar estava conspirando contra o pai chegasse às mãos dos legalistas do rei Aerys, isso certamente teria sido usado para causar a queda do príncipe. Na verdade, alguns dos homens do rei chegaram ao ponto de sugerir que Aerys devia desertar seu filho ―desleal‖, e nomear seu irmão mais novo herdeiro do Trono de Ferro em seu lugar. O príncipe Viserys tinha apenas sete anos de idade, e sua eventual ascensão certamente significaria uma regência, na qual eles mesmos poderiam governar como regen- tes.

Nesse clima, não é de se estranhar que o grande torneio de Lorde Whent tenha gerado muita desconfiança. Lor- de Chelsted insistiu que Sua Graça proibisse o evento, e Lorde Staunton foi ainda mais longe, sugerindo uma proi- bição de todos os torneios.

Mas tais eventos eram muito populares entre o povo comum, e quando Lorde Merryweather advertiu Aerys de que proibir o torneio só serviria para torná-lo ainda mais impopular, o rei escolheu outra abordagem e anunciou sua intenção de participar. Seria a primeira vez que Aerys II deixava a segurança da Fortaleza Vermelha desde o Desa- fio de Valdocaso. Sem dúvida, Sua Graça imaginou que seus inimigos não ousariam conspirar contra ele embaixo de seu nariz. O Grande Meistre Pycelle nos conta que Aerys esperava que sua presença nesse grande evento o aju- dasse a ser novamente amado por seu povo.

Se essa era realmente a intenção do rei, foi um lamentável erro de cálculo. Ainda que sua presença tornasse o torneio de Harrenhal ainda mais grandioso e mais prestigioso do que já era, atraindo senhores e cavaleiros de cada canto do reino, muitos dos que vieram ficaram surpresos e consternados quando viram no que se tornara seu mo- narca. As unhas das mãos compridas e amarelas, a barba emaranhada e mechas de cabelo não lavado e opaco que tornavam clara para todos a extensão da loucura do rei. Nem seu comportamento era o de um homem são, pois Aerys podia ir da alegria à melancolia em um piscar de olhos, e muitos dos relatos registram que Harrenhal falava de suas risadas histéricas, dos longos silêncios, das crises de choro e das raivas súbitas.

Acima de tudo, o rei Aerys II era desconfiado: suspeitava de seu próprio filho e herdeiro, príncipe Rhaegar, de seu anfitrião, Lorde Whent, e de cada senhor e cavaleiro que chegava a Harrenhal para competir... e ficava cada vez mais desconfiado daqueles que escolheram se ausentar, o mais notável entre eles era sua antiga Mão, Tywin Lan- nister, Senhor de Rochedo Casterly.

Na cerimônia de abertura do torneio, o rei Aerys fez uma grande apresentação pública da posse de Sor Jaime Lannister como Irmão Juramentado da Guarda Real. O jovem cavaleiro disse seus votos diante do pavilhão real, ajoelhando na grama verde em sua armadura branca enquanto metade dos senhores do reino o observava. Quando Sor Gerold Hightower o ergueu e colocou o manto branco sobre seus ombros, um rugido se ergueu da multidão, pois Sor Jaime era muito admirado por sua coragem, bravura e proeza com a espada, em especial nas terras ociden- tais.

Embora Lorde Tywin não tivesse se dignado a participar do torneio em Harrenhal, dezenas de seus senhores vassalos e centenas de cavaleiros estavam ali, e aplaudiram com ânimo e vigor o mais novo e mais jovem Irmão Juramentado da Guarda Real. O rei ficou satisfeito. Em sua loucura, os relatos nos informam, Sua Graça acreditou que os aplausos eram para ele.

Mal a coisa fora feita, no entanto, e o rei Aerys II começou a nutrir graves dúvidas sobre seu novo protetor. O rei se agarrara à ideia de trazer Sor Jaime para a Guarda Real como modo de humilhar seu velho amigo, o Grande Meistre Pycelle nos conta. Só que agora, tardiamente, Sua Graça percebeu que dali em diante teria o filho de Lorde Tywin ao seu lado dia e noite... e com uma espada ao seu lado.

O pensamento o assustou tanto que ele mal conseguiu comer no banquete daquela noite, Pycelle confessa. Dessa forma, Aerys II chamou Sor Jaime à sua presença (enquanto estava agachado no urinol, alguns dizem, mas esse feio detalhe pode ter sido uma adição posterior à narrativa) e ordenou que ele retornasse a Porto Real para guardar e proteger a rainha Rhaella e o príncipe Viserys, que não acompanharam Sua Graça ao torneio. O senhor comandan- te, Sor Gerold Hightower, se ofereceu para ir no lugar de Sor Jaime, mas o rei recusou.

Para o jovem cavaleiro, que, sem dúvida, esperava se distinguir no torneio, o exílio abrupto veio como um desa- pontamento amargo. Mesmo assim, Sor Jaime permaneceu fiel aos seus votos. Partiu imediatamente para a Fortale- za Vermelha e não participou dos eventos posteriores em Harrenhal... exceto, talvez, na mente do Rei Louco.

Durante sete dias, os melhores cavaleiros e os senhores mais nobres dos Sete Reinos disputaram com lanças e espadas nos campos ao lado das imensas muralhas de Harrenhal. À noite, tanto vitoriosos quanto vencidos dirigi-

am-se ao cavernoso salão das Cem Lareiras do castelo, para banquetear-se e celebrar. Muitas canções e histórias falam daqueles dias e noites ao lado do Olho de Deus. Algumas até são verdadeiras. Relembrar cada justa e brinca- deira está distante dos propósitos desta obra. Esta tarefa deixamos alegremente para os cantores. Mas dois inciden- tes não devem ser deixados de lado, pois viriam a ter graves consequências.

O primeiro foi o aparecimento de um cavaleiro misterioso, um jovem franzino em uma armadura mal ajustada, cujo símbolo era um represeiro branco entalhado com feições retorcidas de alegria. O Cavaleiro da Árvore que Ri, como esse desafiante foi chamado, desmontou três homens em justas sucessivas, para deleite do povo.

O rei Aerys II não era um homem que gostasse de mistérios, no entanto. Sua Graça se convenceu de que a árvo- re no escudo do cavaleiro misterioso estava rindo dele e ‒ sem nenhuma prova ‒ decidiu que o cavaleiro misterioso era Sor Jaime Lannister. Seu mais novo cavaleiro da Guarda Real o desafiara e voltara ao torneio, ele disse a cada homem que pôde ouvir.

Furioso, ordenou que seus próprios cavaleiros derrotassem o Cavaleiro da Árvore que Ri quando as justas reco- meçaram na manhã seguinte, para que ele pudesse ser desmascarado e sua perfídia exposta a todos. Mas o cavaleiro misterioso desapareceu durante a noite, e nunca mais foi visto. Isso também deixou o rei doente, certo de que al- guém próximo a ele tinha avisado ―este traidor que nunca mostrará o rosto‖.

O príncipe Rhaegar saiu vitorioso no final da competição. O príncipe herdeiro, que normalmente não competia em torneios, surpreendeu a todos ao vestir sua armadura e derrotar cada inimigo que encarou, incluindo quatro cavaleiros da Guarda Real. Na justa final, ele desmontou Sor Barristan Selmy, em geral considerado o melhor com a lança em todos os Sete Reinos, e ganhou as honras do campeão.

Dizem que os aplausos da multidão foram ensurdecedores, mas o rei Aerys não se juntou a eles. Longe de estar orgulhoso e satisfeito com a habilidade do filho nas armas, Sua Graça viu isso como uma ameaça. Os lordes Chels- ted e Staunton inflamaram ainda mais suas suspeitas, declarando que o príncipe Rhaegar entrara nas listas para conseguir apoio do povo comum e lembrar aos senhores reunidos que ele era um guerreiro poderoso, um herdeiro verdadeiro de Aegon, o Conquistador.

E quando o triunfante príncipe de Pedra do Dragão nomeou Lyanna Stark, filha do Senhor de Winterfell, a rai- nha do amor e da beleza, colocando uma coroa de rosas azuis em seu colo com a ponta de sua lança, os senhores bajuladores reunidos ao redor do rei declararam que esta era mais uma prova de sua perfídia. Por que o príncipe cometeria tal insulto à sua própria esposa, a princesa Elia Martell de Dorne (que estava presente), a menos que isso fosse ajudá-lo a conquistar o Trono de Ferro? A coroação da garota Stark, que, segundo todos os relatos, era uma jovem coisinha bárbara e com jeito de menino, com nada da beleza delicada da princesa Elia, só podia significar a conquista da aliança de Winterfell com a causa do príncipe Rhaegar, sugeriu Symond Staunton ao rei.

Se isso era verdade, por que os irmãos da Senhora Lyanna pareceram tão perturbados com a honra que príncipe concebeu a ela? Brandon Stark, herdeiro de Winterfell, teve que ser contido para não confrontar Rhaegar pelo que ele tomou como um desrespeito à honra de sua irmã, já que Lyanna Stark estava há muito comprometida com Ro- bert Baratheon, Senhor de Ponta Tempestade. Eddard Stark, irmão mais novo de Brandon e amigo próximo de Lor- de Robert, estava mais calmo, mas não mais satisfeito. Quanto ao próprio Robert Baratheon, alguns dizem que ele gargalhou com o gesto do príncipe, afirmando que Rhaegar não fizera mais do que pagar tributo a Lyanna... mas aqueles que o conheciam bem dizem que o jovem lorde guardou consigo o insulto, e que seu coração endureceu em relação ao príncipe de Pedra do Dragão daquele dia em diante.

E bem que pode ter sido, pois com aquela simples coroa de rosas azuis claras, Rhaegar Targaryen começou a dança que dilaceraria os Sete Reinos, trazendo sua própria morte e a de milhares outros, e colocando um novo rei bem-vindo ao Trono de Ferro.

A Falsa Primavera de 281 d.C., durou menos do que dois turnos da lua. Conforme o ano se aproximava do final, o inverno retornou a Westeros com força total. No último dia do ano, a neve começou a cair sobre Porto Real, e uma crosta de gelo se formou sobre a Torrente da Água Negra. A neve continuou a cair durante grande parte de uma quinzena, até que a Água Negra congelou e pingentes de gelo se penduravam dos telhados e calhas de cada torre da cidade.

Enquanto os ventos frios fustigavam a cidade, o rei Aerys II se voltou para seus piromantes, desafiando-os a es- pantar o inverno com suas mágicas. Imensas chamas verdes arderam ao longo das muralhas da Fortaleza Vermelha durante um turno da lua. O príncipe Rhaegar não estava na cidade para observá-las, no entanto. Nem podia ser en- contrado em Pedra do Dragão com a princesa Elia e seu jovem filho, Aegon. Com a chegada do novo ano, o prínci- pe herdeiro pegara a estrada com meia dúzia de seus amigos e confidentes mais próximos, em uma jornada que

acabaria por levá-los de volta às terras fluviais. A menos de sessenta quilômetros de Harrenhal, Rhaegar encontrou Lyanna Stark de Winterfell e a levou consigo, acendendo um fogo que consumiria sua casa, seus parentes e todos aqueles que ele amava ‒ além de metade do reino.

Mas essa história é conhecida demais para precisar ser repetida aqui.

No documento O Mundo de Gelo e Fogo (páginas 141-146)