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Etapa 5: Explanação dos resultados da investigação Correspondeu à fase conclusiva com a redação da versão final da dissertação contendo o processo e os

3. A PARTICIPAÇÃO COMO CONSTRUÇÃO: POSSIBILIDADES E LIMITES PARA A CONQUISTA DA CIDADANIA NO PLANEJAMENTO E NA GESTÃO DA CIDADE

3.1 Conceitos correlatos à participação social

3.1.1 A antítese sociedade civil e Estado

Um plano diretor é uma ferramenta nas mãos do Estado para intervenção direta na realidade, para condicionar as ações individuais e/ou coletivas da sociedade sobre a cidade, de acordo com idéias e valores traçados previamente. A compreensão de plano diretor definida contém, portanto, uma relação intrínseca entre sociedade civil e Estado. Essa relação tende a se tornar ainda mais próxima e complexa quando, além de regular as ações concretas dos agentes sociais, os planos absorvem um conteúdo político e democrático em sua elaboração e execução.

Não temos a pretensão de apresentar neste subcapítulo uma análise aprofundada dos conceitos de sociedade civil e Estado, tendo em vista a complexidade que o tema assume e a grande profusão de leituras, compreensões e definições que estes termos adquirem nas mais diversas áreas do conhecimento. Neste momento, nos limitaremos a

apresentar a compreensão construída pelo pesquisador, baseada em determinados autores e correntes de pensamento que ajudaram a definir os limites de análise do objeto.

O planejamento urbano institucionalizado e mais especificamente o plano diretor são formas de elaboração e gestão de políticas públicas. Por políticas públicas podemos compreender como resultados da ação coletiva que cristalizam direitos e deveres sociais, que neste caso se relacionam à regulamentação do uso do solo de determinada porção do território. As políticas públicas são competência do Estado, mas as formas de estruturação destas políticas se modificam constantemente, sendo condicionadas pelas relações de poder existentes na sociedade. Historicamente, temos uma cultura política onde as decisões são impostas pelo governo - reflexos dos interesses das classes dominantes - para a sociedade, conteúdo que tem se modificado profundamente nas últimas décadas, absorvendo relações de reciprocidade e antagonismo entre essas duas esferas.

A diferenciação entre sociedade civil e Estado surge constantemente no bojo das discussões sobre as políticas urbanas, e usualmente não há distinção clara entre os conceitos. Para BOBBIO (1987) a relação entre sociedade civil e Estado é uma antítese onde um conceito, ao se opor a outro, oferece uma melhor explicação e compreensão. Assim, a compreensão de Estado é mais completa se relacionarmos com a compreensão de sociedade civil e vice-versa. Para o autor, o Estado, ou qualquer outra sociedade organizada onde exista uma esfera pública, não importa se total ou parcial, é caracterizado por relações de subordinação entre governantes e governados, ou melhor, entre detentores de poder de comando e destinatários do dever de obediência. Seguindo esse raciocínio, poderíamos concluir que o denominador comum na antítese sociedade civil e Estado são as relações de poder.

BRESSER PEREIRA (1995) ao fazer uma sistematização das idéias produzidas a respeito do Estado, diferencia duas correntes principais: a primeira, apoiada no contratualismo fundado em Hobbes e, posteriormente, trabalhado por Rousseau e Kant; e a segunda, com origem em Aristóteles, S. Tomás, Hegel, Marx e Engels.

Em a “Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, ENGELS (1984) adota esta visão história ao reconhecer que o Estado surge da dissolução da comunidade primitiva e da divisão da sociedade em classes:

O Estado não é, pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro (...) é, antes, um produto da sociedade quando esta chega a determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade em uma luta estéril, faz-se necessário um poder colocado acima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da ordem. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela, e dela se distanciando cada vez mais, é o Estado. (ENGELS, 1884: 326-327). Engels coloca que o surgimento do poder político e do Estado é a conseqüência da dominação econômica do homem pelo homem, onde o Estado coloca-se como uma ordem coerciva, instrumento de dominação de uma classe sobre outra. Na célebre obra ‘Manifesto do Partido Comunista’, Marx e Engels afirmam que a História da Humanidade sempre foi a história da luta de classes: homens livres e escravos, patrícios e plebeus, nobres e servos, mestres e artesãos, numa relação onde exploradores e explorados sempre mantiveram uma luta, às vezes oculta, às vezes patente. Para os autores, o Estado assemelha-se a uma máquina de coerção destinada à exploração econômica e, conseqüentemente, política de uma classe sobre outra.

Seguindo essa linha de raciocínio, poderíamos dizer que o Estado, seria uma estrutura de dominação e representaria a cristalização das relações de classe, permitindo que um segmento hegemônico pudesse reproduzir instrumentos de dominação que garantissem a manutenção destas relações.

A corrente contratualista de Estado apóia-se, sobretudo, nas idéias elaboradas por ROUSSEAU (1978) em sua obra “O contrato Social”. Nessa obra, o filósofo suíço constrói uma espécie de utopia política, onde o Estado é o resultado de um consenso social amplo que garante os direitos de todos os cidadãos. Nessa concepção o Estado seria uma estrutura acima da sociedade responsável por assegurar a liberdade, igualdade e justiça para todos. O contrato social de ROUSSEAU considera que todos os homens nascem livres e iguais, e que o Estado seria construção coletiva – um contrato - de princípios e deveres a serem cumpridos por todos, sem distinções de classe social, poder aquisitivo, religião ou cor.

O idealismo que influenciou o surgimento de inúmeros movimentos revolucionários que defendiam a igualdade de direitos e a soberania popular foi também uma das principais inspirações ideológicas da Revolução Francesa.

"A primeira e mais importante conseqüência decorrente dos princípios até aqui estabelecidos é que só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado de acordo com a finalidade de sua instituição, que é o bem comum, porque, se a oposição dos interesses particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades, foi o acordo desses mesmos interesses que o possibilitou. O que existe de comum nesses vários interesses forma o liame social e, se não houvesse um ponto em que todos os interesses concordassem, nenhuma sociedade poderia existir. Ora, somente com base nesse interesse comum é que a sociedade deve ser governada”. (ROUSSEAU, 1978: 43)

Inúmeras críticas foram direcionadas a Rousseau pelo conteúdo utópico e ideológico de sua teoria e pelo fato de mitificar um passado fraternal e feliz dos homens, em contraposição ao presente desordenado e desigual da sua época. Em grande medida, após Rousseau, os estudos da concepção contratualista do Estado foram relegados ao segundo plano, sendo poucos os autores e as obras que, baseadas nesta concepção, tiveram importante repercussão.

A concepção contratualista do Estado representou um enorme avanço democrático, não obstante o autoritarismo de seu fundador, Thomas Hobbes, porque deixou claro que a fonte última do poder deixava de ser o direito divino (histórico, tradicional) dos reis, para ser a vontade dos homens, que se dispunham racionalmente a ceder parte de sua liberdade em nome da ordem proporcionada pelo Estado. Não obstante, o Estado está longe, em termos históricos ou reais, de ser uma forma de associação, como queria Rousseau (1762), que protege o indivíduo contra forças externas, ou uma associação na qual cada membro possa conservar integralmente a sua individualidade, porque, ao obedecer ao Estado, estaria obedecendo a si próprio. O Estado é a forma pela qual os setores mais poderosos da sociedade civil impõem, ou tentam impor, sua vontade sobre o restante da população. (BRESSER PEREIRA, 1995:93)

Outros trabalhos contemporâneos vinculados às idéias de Marx e Engels se destacaram nas últimas décadas, sobretudo os escritos de ALTHUSSER (1985) e POULANTZAS (1986), este último considerado por muitos autores como a principal referência marxista dentro da ciência política.

ALTHUSSER (1985) coloca que a existência do Estado só faz sentido em função do poder que lhe foi socialmente conferido. Para o autor toda luta política das classes sociais, alianças ou frações de classes gira em torno do Estado porque este se apresenta como o instrumento último de dominação, pois possui o “poder de Estado” cristalizado em um robusto aparelho repressivo e ideológico de dominação.

O Estado é uma “máquina” de repressão que permite às classes dominantes (no século XIX, à classe burguesa e à “classe” dos grandes latifundiários) assegurar a sua dominação sobre a classe operária, para submetê-la ao processo de extorsão da mais-valia (quer dizer, à exploração capitalista). (ALTHUSSER, 1985:65)

Ele corrobora, portanto, com a perspectiva de Marx e Engels onde as instituições e práticas legitimadas pelo Estado através da utilização da força e da violência – não compreendida somente como violência física – conformam o aparelho repressivo de Estado. A principal contribuição de Althusser à teoria de Estado, no entanto, é a idéia de aparelho ideológico de Estado, que atuaria de forma complementar, ou até mesmo prioritária, em relação ao aparelho repressivo na legitimação do poder de Estado.

Segundo o autor, o aparelho repressivo é de domínio totalmente público e formado por instituições que funcionam através da violência, como o governo, a administração, o exército, a política, os tribunais, as prisões, entre outros. O aparelho ideológico, por sua vez, atua no plano da ideologia, e é formado por instituições privadas com o objetivo de construir e legitimar determinadas representações: escolas, famílias, partidos políticos, igrejas, imprensa, instituições culturais e sindicais.

É o aparelho ideológico do Estado o responsável por tornar as representações dos segmentos hegemônicos como representações de toda a sociedade, quais sejam as relações de produção e de exploração capitalista:

Cada grupo dispõe da ideologia que convém ao papel que ele deve preencher na sociedade de classe: papel de explorado (a consciência “profissional”, “moral”, “cívica”, “nacional” e “política” altamente “desenvolvida”); papel de agente da exploração (saber comandar e dirigir-se aos operários: as “relações humanas”); de agentes de repressão (saber comandar, fazer-se obedecer “sem discussão”, ou saber manipular a demagogia da retórica dos dirigentes políticos); ou de profissionais da ideologia (saber tratar as consciências com o respeito, ou seja, o desprezo, a chantagem, a demagogia que convêm,

com ênfases na Moral, na virtude, na transcedência, na Nação, no papel da França no Mundo, etc.). (ALTHUSSER, 1985:79)

Desta forma, ocorre uma sobreposição das formas de dominação das classes hegemônicas que, além de controlarem os meios de produção e comunicação, também passam a legitimar sua dominação através do controle do poder de Estado e, conseqüentemente, de seus aparelhos repressivo e ideológicos.

Uma crítica que pode ser feita à Althusser diz respeito a sua concepção excessivamente ampla de Estado. Ao citar grande parte das instituições privadas, como fazendo parte do aparelho ideológico de Estado, ele praticamente desaparece com a diferenciação entre sociedade civil e Estado. A nossa compreensão é que as escolas, famílias, partidos políticos, igrejas, imprensa, instituições culturais e sindicais cumprem efetivamente um papel de afirmação da ideologia dominante, mas, como sendo entidades privadas, situam-se fora do aparelho do Estado. Embora situadas fora as entidades privadas atuam ao seu lado como instrumentos de legitimação e reprodução das relações sociais existentes.

POULANTZAS (1986), no entanto, aprofunda a teoria marxista em outra direção. Para o autor, o Estado não reflete somente o interesse da classe hegemônica, mas é, sobretudo, o resultado da condensação das lutas de classe.

(...) mesmo quando um destes modos de produção consegue estabelecer a sua dominância, marcando o início da fase de reprodução alargada de uma formação e o fim da fase propriamente transitória, assiste-se a uma verdadeira relação de forças entre os diversos modos de produção presentes, a permanentes defasagens entre as instâncias de uma formação. O papel do Estado, como fator de coesão desta superposição complexa nos diversos modos de produção reconhece-se aqui como decisivo. (POULANTZAS, 1986: 44 e 45)

Em sentido semelhante, HIRSCH (1977) afirma que o Estado, em função de sua forma específica e dos modos de funcionamento burocráticos internos, se apresenta como um sistema profundamente escalonado, de filtros, de barreiras e de instâncias de transformação e de tratamento das exigências e de articulação de necessidades.

A compreensão de Estado que o presente trabalho assume afasta-se daquela contratualista de Rousseau e aproxima-se das idéias de Poulantzas e Hirsh. Neste sentido, entendemos que o Estado não é um instrumento exclusivo de dominação por parte da classe

hegemônica, mas conseqüência da correlação de forças presentes no interior da sociedade. A sociedade, pois, pode se estruturar politicamente de formas diversas para influenciar a ação do Estado. Como historicamente a sociedade brasileira é marcada por desigualdades, sobretudo econômicas e políticas, o Estado tem se apresentado como a reprodução destes valores: da cultura do privilégio, do autoritarismo, da coerção e da marginalidade política de diversos segmentos sociais.

O fato de estarmos estudando o plano diretor de Itajaí e de termos a gestão democrática como ideal a ser alcançado traz a compreensão de que é necessário um equilíbrio na correlação de forças no interior dos aparelhos do Estado. A inserção qualificada, articulada e ampliada dos segmentos sociais historicamente oprimidos no cenário político, base do processo de democratização das políticas públicas, busca condicionar a atuação do aparelho de Estado a novos valores de justiça social e equidade, revertendo o conteúdo de profunda diferenciação que marca a história no campo das políticas públicas urbanas.

O caráter mais ou menos democrático do sistema político existente em um país fará com que sua população se transforme ou não em povo, ou seja, no conjunto de cidadãos com direitos políticos efetivos e teoricamente iguais. Nesses termos, o povo pode ser considerado não como o objeto sobre o qual o Estado exerce seu poder, mas como um de seus elementos constitutivos. No capitalismo contemporâneo, bem como em qualquer outro sistema de classes, o poder político deriva da sociedade civil. Na sociedade civil, o povo constituído pelos cidadãos se organiza, formal e informalmente, das formas mais variadas: como classes sociais, frações de classes, grupos de interesse, associações. Desta forma, pode-se afirmar que a sociedade civil é o povo organizado e ponderado de acordo com os diferentes pesos políticos de que dispõem os grupos sociais em que os cidadãos estão inseridos. (BRESSER PEREIRA, 1995:91)

Voltamos então àquela idéia inicialmente apresentada, que coloca a relação entre sociedade civil e Estado como uma antítese. Antítese, no Dicionário de Filosofia (ABBAGNANO, 2000) significa contraposição, aquilo que se opõe à tese, ou ainda aquela relação que não tem termo médio. Neste sentido, os conceitos de sociedade civil e Estado são indissociáveis, pois o limite de um marca o limite do outro e a mudança no conteúdo de um conceito provoca modificação no outro.

De acordo com BRESSER PEREIRA (1995) a sociedade civil apresenta também uma relação de poder interno, já que corresponde ao poder político que cada indivíduo ou grupo apresenta dentro da estrutura social. Segundo o autor, sociedade civil não deve ser considerada como conceito análogo a povo, já que o primeiro denota relações de poder dentro da estrutura social a partir da formação de grupos e associações de interesse, enquanto o segundo é considerado como sendo o conjunto dos cidadãos detentores dos mesmos direitos, sem diferenciações de influência e poder. Em suma, sociedade civil pode ser compreendida como a forma pela qual as classes dominantes se organizam fora do Estado para controlá-lo e pô-lo ao seu serviço.

Neste sentido, o Estado enquanto sistema de poder organizado relaciona-se dialeticamente com outro sistema de poder – a sociedade civil – cujo poder é difuso.

Esta oposição tem um certo interesse, na medida em que estabelece a distinção entre dois sistemas de poder: o sistema de poder centralizado e estruturado, representado pelo Estado, e o sistema de poder difuso, mas real, da sociedade civil, que se encontra nas empresas, nas associações e sindicatos, nas organizações religiosas e nas famílias. A ponte formal entre a sociedade civil e o Estado é representada, nas sociedades modernas, pelos procedimentos democrático-eleitorais e pela existência do parlamento e dos partidos políticos. (BRESSER PEREIRA, 1995:92)

A sociedade civil pode se organizar, portanto, de diferentes formas e com diferentes níveis de aberturas à participação popular, que vai desde a mais autoritária, onde não há espaços para atuação e o poder efetivamente se concentra nas mãos da classe dominante, até uma estrutura mais democrática onde existe o compartilhamento de poder entre as classes dominantes e dominadas. Essas diferenciadas formas de estruturação também condicionam diversas formas de atuação do Estado, já que o poder de Estado emana de um longo processo histórico onde os interesses de classe são ingredientes fundamentais.

Assim, a sociedade civil se apresenta como o espaço de articulação dos interesses individuais e coletivos e utiliza de canais formais ou informais, institucionalizados ou não, para ressoar seus interesses no interior dos aparelhos do Estado, direcionando, assim, as formas de atuação do Estado e a definição das prioridades de governo. O aparelho repressivo e ideológico de Estado passa então a atuar na reprodução dos interesses dominantes, trabalhando no plano da ideologia para legitimar a elite governamental que

dirige o Estado em nome da sociedade. O Estado é, em suma, o resultado contraditório e em constante mutação das coalizões de classe que se conformam na sociedade civil, não se restringindo, portanto, à expressão das classes dominantes, ou seja, o “Estado não supera a

sociedade, mas a reflete”. BOBBIO (1987:58)

Compreendemos, portanto, que a efetiva “gestão democrática” tão alardeada pelas políticas urbanas atuais não deve estar limitada à reforma institucional e a criação de novos canais de articulação entre Estado e sociedade civil. A consolidação de horizontes mais democráticos e socialmente mais justos de construção da cidade, princípios contidos na Reforma Urbana cristalizados no Estatuto da Cidade, passa, necessariamente, pela reestruturação da própria sociedade civil, sobretudo no equilíbrio das forças e na qualificação política de segmentos marginalizados. Corremos o risco de transformar a reforma institucional e a abertura destes novos canais participativos em espaços de reprodução da desigualdade – política e econômica – valores nos quais se assentou historicamente a sociedade civil no Brasil.