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Etapa 5: Explanação dos resultados da investigação Correspondeu à fase conclusiva com a redação da versão final da dissertação contendo o processo e os

2. A DEMOCRATIZAÇÃO DO PLANEJAMENTO URBANO: PLANOS DIRETORES E O PROTAGONISMO DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL

2.3 Tudo que é sólido se desmancha no ar

Ao analisar o espírito da sociedade e da cultura dos séculos XIX e XX e revigorando a célebre frase de Marx e Engels do Manifesto Comunista – que dá título ao presente subcapítulo, BERMAN (1986) fornece elementos importantes para a compreensão do declínio da concepção modernista de cidade, baseado na racionalidade, na técnica e na ciência, e do fim, ou pelo menos a ausência temporária, dos modelos rígidos de referência no campo do urbanismo e do planejamento urbano.

No Brasil, a base ideológica de planejamento foi amplamente difundida nas mais diversas regiões, dando suporte conceitual a grande parte dos planos diretores elaborados pelas municipalidades. O técnico passou a ser protagonista e a concentrar em suas mãos as respostas aos problemas da cidade que, se devidamente regulada e organizada segundo padrões ótimos, ele veria, em pouco tempo, uma modificação profunda em sua estrutura e a diminuição das desigualdades sociais que corroía seus alicerces.

No entanto, as expectativas criadas não se tornaram concretas, e em grande medida os problemas presentes nas cidades só aumentaram. Este descompasso entre expectativas e os resultados efetivos fez com que o planejamento físico-territorial passasse a ter questionado os seus limites, assim como, de uma forma mais ampla, os discursos totalitários e os modelos de referência passassem a ser contestados - e até mesmo combatidos - nas ciências sociais em geral. É o momento que CHALAS (2001) denomina de “o fim das grandes narrações”:

não significa outra coisa senão a erradicação de um processo de produção ou de manutenção de fundamentos e perspectivas históricas graças ao qual se formavam na sociedade unanimidades e unidades sociais amplas e referenciáveis que alimentavam tudo tanto quanto elas se alimentavam da existência de pensamentos teóricos (...) o fim das unanimidades e das unidades sociais amplas e referenciáveis, e pouco a pouco, por uma espécie de demonstração às avessas ou recorrente, o fim de um sistema social erigido sobre a coexistência pacífica ou conflitante de pensamentos teóricos (...) CHALAS (2001) A corrente modernista fundamentava-se, portanto, na razão, que representava a possibilidade de construção de uma nova lógica não mais assentada sobre valores morais e metafísicos que estruturaram a sociedade durante sua história. Substituía-se a crença em

Deus pela crença na ciência, os valores cristãos-mediavais pela razão. O triunfo da razão e a crença, quase religiosa, de que a ciência possuía as respostas aos grandes enigmas da humanidade proporcionou um campo fértil para o florescimento das metanarrativas, ou, nas palavras de Chalas, das grandes narrações: discursos globais e totalizadores que organizavam e explicavam o conhecimento em suas múltiplas facetas, com a pretensão de oferecer unidades e unanimidades sociais, amplamente aceitáveis e referenciáveis.

Essas metanarrativas possuíam um conteúdo utópico positivista, pois postulavam construir uma nova sociedade ancorada na idéia de ordem e progresso e na quimera de que os homens, empurrados pela razão, caminhariam na direção da felicidade e da liberdade.

Com conseqüências nas mais diversas áreas do conhecimento, essa percepção positivista da realidade talvez ganhou maior projeção na área do urbanismo e do planejamento urbano. Muitos planejadores modernistas apresentavam uma visão totalitária de cidade e, para ela, concebiam um projeto único e também totalitário, de processos e formas fechadas, baseados no conhecimento técnico como expressão máxima da racionalidade humana.

Neste contexto, surgiram diversas correntes do urbanismo, procurando reorganizar os agrupamentos urbanos frente às novas perspectivas impostas pelo modo de vida moderno, pela introdução massiva das máquinas e a conseqüente dinamização da vida nas cidades. Os modelos, totalitários em sua essência, tinham como substrato a crença de que o espaço físico poderia moldar as relações sociais, bastando proporcionar cidades adequadas, segundo representações concebidas aprioristicamente e baseadas em referenciais teóricos de diferentes matizes ideológicas.

As primeiras décadas do século XX viram surgir importantes discussões técnico- científicas a respeito dos caminhos do urbanismo frente a estas novas perspectivas. A instância mais representativa deste momento foi os CIAMs, onde o debate se acirrava a fim de estabelecer quais seriam os princípios do “Urbanismo Moderno”. Nesse momento, era recorrente e quase pacífica a idéia de que caberia aos técnicos e, especialmente, aos arquitetos, a responsabilidade de indicar as soluções para o futuro das cidades e as formas possíveis de reorganização dos aglomerados urbanos.

Nestas circunstâncias, a arquitetura e o urbanismo ainda apareciam como áreas umbilicalmente ligadas, tanto que os primeiros CIAMs discutiram, entre arquitetos, a unidade mínima de habitação (II CIAM, 1929 - Frankfurt) e o desenvolvimento racional do lote (III CIAM, 1930 - Bruxelas). O produto mais destacado dos CIAMs e que teve maior repercussão para o campo do urbanismo e planejamento como um todo, foi a publicação da Carta de Atenas, em 1933. Esse documento preocupava-se em definir o conteúdo essencial do urbanismo moderno: construía conceitos, traçava diretrizes e definia as fórmulas que, segundo a pretensão de seus autores, deveriam ser o caminho mais curto para a construção de cidades saudáveis e, conseqüentemente, para a libertação do homem.

A Carta de Atenas pode ser considerada como um exemplo primoroso da construção de um discurso totalitário, uma metanarrativa. Seus preceitos representavam a crença na tecnologia, na ciência e na racionalidade como motores de uma nova estrutura espacial e social. O legado dessa carta produziu vigorosas raízes que foram amplamente disseminadas no imaginário técnico, político, acadêmico e até mesmo na sociedade civil em geral. Seu conteúdo ajudou a consolidar, no campo do urbanismo, aquilo que CHALAS (2001) denomina de referencial forte, uma construção social da realidade e, em conseqüência, uma representação do mundo que deu sentido à ação pública e assegurou por algum tempo a certa coesão social.

A organização racional da cidade era, portanto, objetivo principal do urbanismo moderno. Para isso, a cidade passou a ser entendida como a união de quatro funções principais - morar, trabalhar, circular e cultivar o corpo e o espírito (termo simplificado por alguns autores por lazer ou recreação) – funções estas que foram chamadas de “as chaves do urbanismo”.

Desde o congresso dos CIAM, em Atenas, as quatro funções-chave do urbanismo reivindicam, para manifestar-se em toda a sua plenitude e trazer ordem e classificação às condições habituais de vida, trabalho e cultura, disposições particulares que ofereçam a cada uma delas as condições mais favoráveis ao desenvolvimento de sua atividade própria. O urbanismo, levando em consideração essa necessidade, transformará o aspecto das cidades, romperá a opressão esmagadora de usos que perderam sua razão de ser e abrirá aos criadores um campo de ação inesgotável. (LE CORBUSIER, 1989)

A essência da Carta de Atenas colocava a cidade como um organismo “doente” que precisava de remédios que só poderiam ser disponibilizados pela técnica e pela ciência, pela ação planejada e pela funcionalização dos espaços da cidade. As necessidades do homem deveriam estar claramente colocadas e resolvidas. A cidade estava reduzida a um objeto técnico e determinado, sem grandes preocupações com o seu conteúdo social, histórico e cultural. Essa corrente ideológica foi chamada de progressista por CHOAY (1997).

É válido salientar que a teoria modernista não era uma estrutura monolítica, já que o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX é prenhe de movimentos culturais, artísticos, de escolas e estilos de diferentes correntes ideológicas que, de alguma forma, se fizeram presentes no campo do urbanismo e que em muitos casos se contrapunham ao movimento progressista. Podemos citar, por exemplo, a corrente culturalista, cuja principal referência foi o arquiteto austríaco Camilo Sitte. Ao contrário de defender o racionalismo geométrico das formas urbanas, reivindicava o retrocesso aos valores urbanos perdidos com a revolução industrial, delineando modelos de cidades ao estilo dos aglomerados urbanos da Idade Média, com suas ruelas sinuosas, assimetria do traçado urbano, e valorizando os espaços entre o construído, sem protótipos e com a especificidade de cada construção e de cada lote.

Sua concepção, no entanto, parecia inadequada para muitos. Frente às novas relações imputadas pela revolução industrial e pela imposição do modo capitalista de organização da sociedade, bem como pela necessidade de produção em massa de habitações para os novos contingentes populacionais vindos do campo ou desabrigados pelas grandes guerras, o modelo progressista reuniu argumentos suficientes para se sobrepor frente às outras correntes.

Era o momento das grandes obras estruturais, da imposição de traçado geométrico e racional às ruas, adequadamente aeradas e iluminadas, para facilitar a circulação e possibilitar a divisão da cidade em espaços funcionais responsáveis por absorver as quatro funções básicas, conforme um planejamento rigoroso e um zoneamento minucioso e inflexível.

Com isso a ação planejadora passa a ser o elemento central do “urbanismo moderno” e ganha proporções generalizantes ao ser impunemente reproduzida nas mais diversas

realidades. No Brasil, as décadas de 60, 70 e sobretudo 80, ao sacramentarem o urbanismo e o planejamento urbano como instrumentos institucionalizados do poder público para atuação na realidade dos aglomerados urbanos, viram florescer inúmeras experiências de planejamento que tinham no ideário modernista-progressista seu substrato. É o momento de ampliação da crença de que o plano diretor municipal, instrumento básico do planejamento, seria a ponte que ligaria os pressupostos utópicos do urbanismo moderno à realidade desigual das cidades brasileiras.

Solidificaram-se, então, os instrumentos de planejamento, notadamente físico- territoriais: o zoneamento funcional, os índices e coeficientes urbanísticos, os parâmetros edilícios entre outros que passaram a ser compreendidos como a essência do ato de planificar a cidade. Essa compreensão foi reproduzida nas diversas escalas, principalmente no plano local, onde as municipalidades, na maioria médias e grandes cidades brasileiras, colocavam-se na posição de planejar e regular o processo de ocupação do solo urbano a partir de um aparato instrumental técnico. Consolidava-se o plano diretor como o elemento que justapunha estes instrumentos .

Em Itajaí, ocorreu também a repercussão das condicionantes gerais. O primeiro plano diretor, feito em 1971, momento em que a cidade possuía pouco mais de cinquenta e quatro mil habitantes, reproduzia os postulados do urbanismo moderno, sobretudo a Lei de Zoneamento, aprovada em 1981 e revista em 1989, que reduzia a compreensão da cidade a “diagnósticos” técnicos, repleto de fórmulas, porcentagens e coeficientes. Uma análise mais profunda das experiências de planejamento em Itajaí será feita mais a frente. Por hora, observamos que Itajaí se inseriu, mesmo que de forma parcial, neste processo de afirmação do ideário modernista ao reproduzir no plano local grande parte dos conceitos, valores e instrumentos presentes nas grandes teorias que balizavam o urbanismo da época.

A construção de narrativas homogeneizantes, a-históricas, apolíticas, estáticas e sem contradições a respeito da cidade, valores básicos do ideário modernista-progressista, entraram em conflito com a própria essência dos espaços urbanos, de conteúdo dinâmico, complexo e político por natureza.

A percepção positivista da realidade presente na Carta de Atenas e nas práticas urbanísticas decorrentes passaram a receber severas críticas, sobretudo daqueles que

enxergavam que a técnica e a ciência não poderiam ser os instrumentos únicos das modificações propostas. Somam-se a essa percepção substantivas mudanças que ocorreram nas formas de organização da sociedade, do trabalho, nos produtos e padrões de consumo, e, por conseqüência, na dinâmica de estruturação e reprodução das cidades.

Acomodam-se, assim, as condições necessárias para a superação da doutrina modernista-progressista, que ao fundar uma ampla coesão social sobre a cidade para depois se esmigalhar a partir de seus fundamentos, reforça o sentido atribuído por Bermann à frase “tudo que é sólido se desmancha no ar”. O movimento de quebra de referenciais substitui a utopia, as determinações, a unidade social, a segurança e os espaços territoriais bem definidos por outros valores impostos pela modernidade 3: a insegurança, a contradição, a ambigüidade, as incertezas, a ausência dos referenciais fortes. Para BAUMANN (2001) esses elementos configuram uma “modernidade líquida” contraposta à modernidade “sólida” anterior. Para HARVEY (2003) são os principais valores da pós-modernidade, os valores que impossibilitam a realização de planos estáveis e modelos de sociedades para o futuro.

Nossas sociedades modernas tornam-se sociedades de incerteza, e em tal contexto, os sistemas de pensamento ou de decisão mais determinados não resistem. Apenas os sistemas flexíveis, abertos, com determinação mínima ou variável, ou ainda com identidade regulável, isto é, sistemas que comportam eles próprios uma dose não negligenciável de incerteza e de indecidabilidade, se adaptam e podem pretender a uma relativa eficácia. Em outros termos, é preciso categorias práticas e flexíveis de raciocínio para se chegar a pensar ou a dominar situações tornadas incertas, por demasiadamente explosivas ou paradoxais. (CHALAS, 2001)

No Brasil, os movimentos de democratização e inserção da participação social no planejamento e gestão das cidades – como veremos mais à frente – foram efetivamente conquistas atribuídas aos movimentos sociais que passaram a questionar as formas tecnicistas e tecnocráticas de atuação, inserindo novos conteúdos aos planos e instrumentos de gestão das cidades. É o que CHALAS (2001) descreve como sendo o crescimento da força

3 Modernidade e modernismo, apesar de serem derivações de uma mesma palavra, possuem conceitos diferenciados no presente texto. Modernismo pode ser compreendido como sendo o conjunto de movimentos culturais, escolas e estilos que permearam as artes e o design da primeira metade do século XX e que influenciaram decisivamente a arquitetura e o urbanismo. Apresenta, portanto, sentido mais restrito que modernidade, que significa o conjunto de idéias, valores e ideologias relacionadas ao projeto de mundo moderno, consequentes da revolução industrial e da ampliação do capitalismo como forma de organização da sociedade.

das recusas, dos protestos, da multiplicação dos recursos e das associações de defesa dos usuários ou de circunvizinhos, do ceticismo dos habitantes, do espírito crítico aguçado e corrosivo do cidadão simples, dos movimentos que pulverizam qualquer tentativa de construir modelos, certezas e consensos.

Na esfera política, a cultura histórica brasileira do paternalismo, da defesa de privilégios, da concentração de poder, dos discursos vazios passou a ser, ainda timidamente, contestada. Reclama-se por participação social ampliada nos processos políticos, ainda que esta participação, pelo seu conteúdo incerto e maleável seja uma das expressões máximas desta nova modernidade “líquida”.