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Etapa 5: Explanação dos resultados da investigação Correspondeu à fase conclusiva com a redação da versão final da dissertação contendo o processo e os

3. A PARTICIPAÇÃO COMO CONSTRUÇÃO: POSSIBILIDADES E LIMITES PARA A CONQUISTA DA CIDADANIA NO PLANEJAMENTO E NA GESTÃO DA CIDADE

3.1 Conceitos correlatos à participação social

3.1.3 Democracia e cidadania

Temos, portanto, no termo democracia um dos conceitos fundamentais desta pesquisa. A análise do plano diretor de Itajaí tem como propósito principal compreender de que forma as práticas participativas têm trabalhado para tornar o planejamento e a gestão urbana em espaços efetivos de exercício democrático. Mas para que esta análise possa ocorrer, é essencial apresentar quais são os valores, as idéias e o conceito de democracia que esta pesquisa estabelece como parâmetro.

Como colocado anteriormente, o princípio básico da participação social efetiva está na articulação de duas esferas democráticas: a esfera pública, situada na abrangência da sociedade civil e a esfera política pública, situada no interior do Estado. Mas o que significa democratizar essas esferas? Quais os limites que a prática democrática enfrenta atualmente?

Democracia é um conceito que apresenta ampla aceitação no imaginário social, por mais que possua um conteúdo maleável e por mais que tenha modificado seus limites com o passar dos tempos. Poucos são os argumentos que se opõem a ela e poucas são as sociedades que se estruturam sem a sua referência.

A democracia, talvez por ser um enigma – e como não o seria se, através das mutações históricas, é um tema incessantemente retomado? (...) Não porque todos “democraticamente” desejamos a democracia. Nem porque todos “democraticamente” a discutiremos. Mas porque a interrogação acerca da democracia é uma indagação em que estamos todos implicados como sujeitos, sem que possamos reinventar o lugar imaginário do saber esperado. (CHAUÍ, 2006:144) O consenso construído ao redor da democracia oculta, no entanto, uma diversidade muito grande de idéias e compreensões que gradualmente se articularam, se modificaram e se tornaram mais complexas. O conceito inicial de “governo do povo” não somente tornou- se insuficiente, como também impreciso para caracterizar os limites da democracia.

Para CASTORIADIS (1986) a democracia, assim como outras formas de auto- instituição da sociedade, é uma criação do mundo humano e, como tal, é marcada pela criação de significações – objetos – pelos quais vivemos e morremos: coisas, linguagem, normas, valores, modos de vida. Essas “criações” humanas que constantemente se transformam são aquelas responsáveis por dar sentido à vivência dos indivíduos nos quais as instituições sociais estão profundamente enraizadas.

Dentro dessa criação indiscriminada da sociedade, cada instituição particular e historicamente dada da sociedade representa uma criação particular. Os chineses, os hebreus clássicos, os gregos antigos ou a instituição capitalista moderna da sociedade significa a postulação de diferentes determinações e leis: não apenas leis “jurídicas”, mas modos obrigatórios de perceber e conceber o mundo “físico” e social e de agir em seu interior. Dentro, e graças a esta instituição global da sociedade emergem criações específicas; por exemplo, a ciência, como a conhecemos e a concebemos, é uma criação particular do mundo greco-ocidental. (CASTORIADIS, 1986:53)

Compreendemos, portanto, que a democracia é, segundo a perspectiva de Castoriadis, uma forma de institucionalização da sociedade que surge a partir de determinados contextos sociais e históricos particulares, contextos que se modificam - como se modifica o próprio homem - e que conseqüentemente modificam também as formas de institucionalização da sociedade.

Mesmo atualmente a definição de democracia é difícil, já que existe uma diversidade de discursos, idéias e conceitos que surgem e se multiplicam nos vários campos disciplinares, como as ciências políticas, filosofia, sociologia, entre outros. Entre as referências apresentadas é possível perceber um úcleo comum que compreende a democracia como uma forma de limitação e de legitimação do poder político.

Da idade clássica a hoje o termo ''democracia'' foi sempre empregado para designar uma das formas de governo, ou melhor, um dos diversos modos com que pode ser exercido o poder político. Especificamente, designa a forma de governo na qual o poder político é exercido pelo povo (...). Afirmo preliminarmente que o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos. (BOBBIO, 1986:16 a 18) Trazendo uma leitura linear do conceito de democracia, esta surge na Grécia Clássica, juntamente com a compreensão de política e filosofia. Segundo CASTORIADIS (1986), temos na Grécia o primeiro exemplo de uma comunidade que delibera sobre suas leis, ao contrário de outros povos e lugares onde as leis eram herdadas dos ancestrais, ou dadas pelos deuses. A Grécia é, portanto, o primeiro exemplo de sociedade que questiona a representação do mundo coletivamente instituído e passa a compreendê-lo como produto da ação humana.

A partir da Grécia surge a acepção principal da palavra democracia (do grego demos, "povo", e kratos, "autoridade") compreendida como uma forma de organização política que reconhece a cada um dos membros da comunidade o direito de participar da direção e gestão dos assuntos públicos e sociais. Nesta estrutura, a comunidade dos cidadãos – o

demos – afirma-se soberana (autolegislativa, autojudiciária e autogovernante) e igualitária

politicamente entre todos os homens livres.

Para isso existia um lugar – espaço físico – delimitado: a ágora. A ágora cumpria para a sociedade ateniense um valor simbólico, pois era o lugar público por excelência, da discussão e do debate de idéias entre os cidadãos. A ágora era o coração da cidade, o espaço da palavra, da política e da liberdade, representando, pois, a institucionalização da democracia direta, onde o povo discutia e atuava diretamente no processo de tomada de decisões.

Essa concepção de democracia direta formada a partir de Atenas se constituiu em um ideal de democracia, um referencial repleto de valores positivos, que tem servido como parâmetro para alguns autores criticarem as atuais formas assumidas pela prática política, ainda que na democracia ateniense não participassem as mulheres, escravos e estrangeiros.

A polis e sua ágora nos devem ser caras porque, a despeito da execrável instituição da escravidão, para os cidadãos tratou-se, efetivamente, de uma cidadania plena, de uma liberdade efetiva e sem aspas, garantida pelas instituições de democracia direta (...) a essência da polis permanece sendo um farol, uma fonte de inspiração, um parâmetro, e daí se extrai uma mensagem cuja radicalidade é mais atual que nunca: a da autonomia, em que uma coletividade se rege por leis que ela própria se deu, no âmbito das discussões públicas e livres (e tão lúcidas, racionais, transparentes e bem informadas quanto for possível). (SOUZA, 2007: 26)

Posteriormente, mais precisamente no século XVII, o tema da democracia é retomado ao serem iniciadas as primeiras formulações teóricas sobre a democracia moderna, fundamentadas nos trabalhos do filósofo britânico John Locke. O autor foi pioneiro ao afirmar que o poder dos governos nasce de um acordo livre e recíproco, onde todos os homens são iguais e onde cabe a cada indivíduo agir livremente desde que não prejudique nenhum outro.

Na concepção de Locke, a constituição de uma sociedade política significa a renúncia à liberdade do estado de natureza12 e a aceitação de regras fundamentais para a construção de um pacto fundador, o que abriria caminho para a conformação do Estado moderno. Uma das regras fundamentais para o funcionamento das instituições políticas nas democracias ocidentais modernas é o princípio da maioria, que representa a qualificação da democracia segundo parâmetros quantitativos e aritméticos.

No modelo de organização política da sociedade pensada por Locke, cabe destacar ainda o papel das leis, que devem ser estabelecidas e promulgadas com caráter universalizante (para todos) e de acordo com o interesse geral (legítimas). Por isso, a elaboração das leis deve estar a cargo de representantes escolhidos pelo povo que sejam capazes de exercer o papel de legisladores do interesse e da vontade geral.

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Na obra “O Espírito das Leis”, Montequisteu – filósofo francês contemporâneo a Locke – formulou alguns princípios que se tornariam os fundamentos da democracia moderna, como a diferenciação dos tipos de governo o despotismo, república e monarquia – fundamentados respectivamente no temor, na virtude e na honra. Nessa mesma obra ele defende a constituição de uma liberdade política garantida pela separação e autonomia de três poderes: legislativo, executivo e judiciário.

Apesar de todas as críticas que esses autores tenham recebido posteriormente por suas concepções de governo e de estruturação da sociedade, vemos que as idéias que eles apresentaram ajudaram a conformação de um conceito de democracia que ainda se faz presente nos dias de hoje. Entre essas idéias temos: governo como resultado de um acordo livre e recíproco entre cidadãos livres; a igualdade entre os homens; o princípio da maioria como forma de decisão política; a constituição de leis como elementos superiores aos governantes e como figuras necessárias para a regulação do poder e das relações sociais; a divisão do poder político público em três poderes que se autolimitam e se auto-regulam.

É a partir da democracia moderna que emerge o sentido de cidadania. O conceito de cidadania está fundamentado no poder dado aos indivíduos - todos os indivíduos que compõem determinada sociedade – que, regidos por determinadas regras, possuem o direito de participar dos processos de tomada de decisões . Assim como na Grécia Antiga, o conceito de cidadania aparece como a base da democracia moderna.

A cidadania, apesar de sofrer constantes mudanças de conteúdo e valor, apresentou- se como o reconhecimento, por parte do Estado, da igualdade entre os homens. PINSK (2003) considera que a cidadania moderna surge no bojo dos processos de lutas que culminaram na Declaração dos Direitos Humanos, dos Estados Unidos da América do Norte, e na Revolução Francesa, uma vez que esses dois eventos romperam o princípio de legitimidade que existia até então, baseado nos deveres dos súditos, e passaram a estruturá- lo a partir dos direitos do cidadão. Para o autor, cidadania é a expressão concreta do exercício da democracia.

Marshall (apud SAES, 2007), entende que a cidadania ocorreu a partir da conquista e institucionalização gradual de direitos por parte dos indivíduos: primeiramente os direitos civis, depois os políticos e, por fim, os sociais, cada direito garantido por determinadas

instituições. Nesta escalada, não simultânea, surgem: os direitos civis, implantados fundamentalmente no século XVIII; os direitos políticos, predominantemente no século XIX; e os direitos sociais criados basicamente no século XX.

Assim, a história da democracia passa a se confundir com a história da cidadania, onde o avanço da primeira está estreitamente ligado à conquista e ampliação da segunda. Ambos os conceitos identificam o homem como ser político, estabelecem parâmetros entre o que é público e privado e transformam as relações entre o poder estatal e a sociedade civil.

O triunfo da democracia veio ocorrer, no entanto, a partir do século XX, quando este se transforma em modelo hegemônico de organização política. O amplo reconhecimento da democracia e da cidadania como direitos fundamentais é sacramentada com a institucionalização dos direitos civis, políticos e sociais, a consolidação do direito de voto a todos os indivíduos considerados intelectualmente maduros, o equilíbrio dos poderes, a liberdade de expressão e o reconhecimento das prerrogativas cidadãs. A democracia e a cidadania proporcionavam, portanto, um ambiente de aspirações por sociedades mais justas e igualitárias.

Independentemente dos desacordos possíveis em torno do conceito de democracia, pode-se convir em que dita expressão reporta-se nuclearmente a um sistema político fundado em princípios afirmadores da liberdade e da igualdade de todos os homens e armado ao propósito de garantir que a condução da vida social se realize na conformidade de decisões afinadas com tais valores, tomadas pelo conjunto de seus membros, diretamente ou por meio de representantes seus livremente eleitos pelos cidadãos, os quais são havidos como os titulares da soberania. Donde resulta que Estado democrático é aquele que se estrutura em instituições armadas de maneira a colimar tais resultados. (MELLO apud, PETRUCCI, 2007) A questão da democracia, no século XX, encontra grandes obstáculos que modificam sua apreensão, sobretudo no momento pós-guerras, quando as discussões a respeito da democracia se polarizaram em duas vertentes principais: a primeira em torno da desejabilidade da democracia e suas representações, e a segunda vertente que discutia os limites da democracia frente ao modo de produção capitalista.

No primeiro debate, a proposta democrática tornou-se profusamente difundida a ponto de se tornar hegemônica, construindo um modelo de democracia que implicou na restrição das formas de participação cidadã em favor da valorização dos processos eleitorais e representativos. No segundo debate, contrapunham-se a idéia da construção de sistemas sociais de bases redistribuitivas e igualitárias com a idéia de incapacidade dos sistemas democráticos frente à hegemonia do capitalismo.

As aspirações por sociedades mais justas que basearam a retórica empregada à democracia durante este último século contrastam com um panorama real de privação, destituição, opressão e injustiças sociais que vão da maior à menor escala quando analisamos comparativamente os países periféricos e centrais ao modo de produção capitalista.

Neste século que está terminando a democracia estabeleceu-se definitivamente como o regime político dominante, não porque garanta a liberdade (isto está na própria definição de democracia), nem porque seja o melhor caminho para alcançar uma maior justiça social, mas porque afinal revelou-se, neste século, o regime mais capaz de manter a ordem e promover o desenvolvimento econômico. Antes a democracia podia já garantir melhor a liberdade e a justiça social, mas revelava-se um regime político instável. Foi apenas com a emergência do capitalismo liberal, quando a apropriação do excedente pode ser feita via mercado, sem o uso direto da força, que as classes dirigentes aceitaram a pressão das classes médias e dos trabalhadores organizados por um sistema democrático. (BRESSER PEREIRA, 1998) Esse panorama fez surgir no final do século XX uma mudança qualitativa na atividade política, com o surgimento de esferas públicas – na acepção do termo utilizado por Habermas – constituídas pela sociedade civil organizada que não se conformava em apenas participar das eleições, mas buscava atuar continuamente na discussão e definição da agenda do Estado. A partir desse momento, o embate social acontecia no sentido de estabelecer canais de inserção social e de institucionalização de novas práticas participativas. Essa situação modificou profundamente os arranjos de poder e a relação entre sociedade civil e Estado, alçando os conceitos de democracia e cidadania para patamares mais elevados e complexos, tanto de práticas quanto de conteúdos.