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Etapa 5: Explanação dos resultados da investigação Correspondeu à fase conclusiva com a redação da versão final da dissertação contendo o processo e os

3. A PARTICIPAÇÃO COMO CONSTRUÇÃO: POSSIBILIDADES E LIMITES PARA A CONQUISTA DA CIDADANIA NO PLANEJAMENTO E NA GESTÃO DA CIDADE

3.2 Aspectos da qualidade participativa

3.2.3 Democratizar a política

Como já colocado anteriormente, a análise do processo participativo na elaboração do novo plano diretor de Itajaí busca compreender quais são os aspectos que têm condicionado a democratização no campo do planejamento e gestão urbanos e de que forma tem se dado as modificações na relação entre Estado e sociedade civil no plano local.

Neste sentido, compreendemos que ao contrário das formas anteriores, a atual prática do planejamento e da gestão da cidade - e conseqüentemente dos planos diretores - é acima de tudo um processo político, pois implica em uma correlação de forças (políticas, econômicas, sociais) que atuam no plano local. São essas forças que poderão conferir legitimidade e caráter realizável aos planos. Um plano diretor é um projeto de cidade, de um modelo de cidade a ser perseguido e, por isso, guarda intrinsecamente um conteúdo complexo e conflituoso. Esse conteúdo conflituoso não pode ser reduzido a compreensões técnicas – tidas como neutras -, nem tampouco trabalhar isoladamente, sem se articular a outras esferas e escalas políticas.

A politização do urbanismo significa antes e mais fundamentalmente que o debate público e aberto, de essência política, sobre a organização da cidade e o ser-conjunto na cidade torna-se mais a garantia de um melhor urbanismo ou de um urbanismo ótimo do que a excelência técnica, estética, funcional e racional, ou mesmo do que a ideologia enquanto discurso construído sobre o social, com um conteúdo estruturado, um pleno sentido, enunciados precisos, propostas e soluções. (CHALAS, 2001)

Percebe-se, portanto, que há um deslocamento das competências em relação ao planejamento urbano e à gestão da cidade. A vocação técnica característica dos planos passa a ser revestida de valores políticos, conforme a idéia trazida por Chalas:

A politização do urbanismo ou o urbanismo político significa, em primeiro lugar e concretamente, não apenas que os políticos ocupam a cena pública que é a do urbanismo e que eles estão em contato direto com os habitantes no mesmo terreno, porque eles sempre tiveram mais ou menos este tipo de prática, mas que são os políticos mais que os técnicos que hoje, sobre a questão dos bairros, da cidade e dos projetos, respondem ou oferecem, ouvem ou propõem e negociam soluções. (CHALAS, 2001)

O plano diretor de Itajaí é, pois, uma das representações desse processo de politização do planejamento urbano. Um dos pressupostos contidos nesta investigação é a de que cada processo participativo contém aspectos comuns, sobretudo aquelas condicionantes vindas de escalas mais amplas - do plano regional, nacional ou global, mas também apresentam aspectos específicos ligados às formas como as relações de poder se estruturam em cada localidade. Apesar das formas de institucionalização dos direitos sociais e políticos se darem geralmente em nível nacional, é fato que cada municipalidade apresenta um conteúdo diferenciado no que tange ao bloqueio ou ampliação desses direitos, e o modo como se apresenta a diferenciação do acesso à renda, escolaridade, equipamentos e serviços urbanos entre outros.

As condicionantes locais passam também pelas formas como a participação social se institucionaliza, através dos canais e oportunidades criados, como também no modo como a população se articula e ocupa estes canais existentes, exercendo ou deixando de exercer o seu direito de participação e controle das iniciativas do poder público.

A conformação de uma esfera pública capaz de ressignificar o conteúdo da participação social - e conseqüentemente da cidadania e da democracia - passa necessariamente pela reconstrução das relações estabelecidas no interior da sociedade civil, como também nas práticas e ações instituídas no interior do aparelho de Estado.

Muitos autores, entre eles HABERMAS (1984), SANTOS JÚNIOR (2001) e SOUZA (2004 e 2006), destacam o plano local como lugar prioritário para a dinamização de mudanças qualitativas na democracia e nas formas de estruturação da sociedade. Segundo essa visão, o plano local – ou poder local – é o espaço privilegiado para o exercício político, para a construção da autonomia, para a consolidação de espaços participativos e para a discussão dos temas de interesse comum.

Neste contexto, é imperioso democratizar a política nas diversas escalas, desde o plano local até esferas mais amplas. Uma democratização que deve ocorrer não somente no sentido da política inscrita nos limites do Estado, mas também expandir-se para a sociedade civil de uma forma ampliada. Significa, pois, inevitavelmente ampliar a politização da sociedade em geral, possibilitando um reequilíbrio de poder e a construção da esfera pública nos moldes defendidos por Habermas.

O Estado terá um regime democrático se o governo que o dirigir, além de possuir legitimidade, ou seja, apoio da sociedade civil, estiver submetido às regras procedurais que definem a democracia, particularmente a liberdade de expressão e a existência de eleições livres. O regime político, entretanto, será substantivamente mais ou menos democrático dependendo do tipo de sociedade civil a que estiver ligado. Se se tratar de uma sociedade civil ampla, diversificada, e razoavelmente igualitária, a democracia será substantiva. Em contrapartida, se se tratar de uma sociedade civil, ela própria autoritária, na qual as diferenças de classe são enormes e os valores democráticos débeis, a democracia tenderá a ser meramente formal. (BRESSER PEREIRA, 1995, pág. 101)

Para DAHL (1993) a tomada de decisões, em um regime democrático, deve apresentar as seguintes características: 1) inclusão de todos os afetados; 2) igual distribuição de oportunidades de participar do processo político; 3) igual direito de votar em decisões; 4) igual direito de escolher tópicos e controlar a agenda; 5) situação que permita a todos os participantes desenvolver, à luz de suficiente informação, uma articulada compreensão do assentimento necessário à regulação de interesses contestados.

Os princípios da democracia não encontram muita contestação, tanto no meio acadêmico quanto no plano político. Os grandes embates surgem no questionamento das formas possíveis de se garantir a expressão política ampliada, ou seja, na questão de como inserir nos processos políticos a diversidade da sociedade. Dentre essas discussões, aquela que tem ganhado visibilidade é o embate entre os defensores da democracia representativa e aqueles que sugerem a superação deste modelo por outro, de democracia deliberativa.

Não temos a pretensão de nos aprofundarmos nesse embate. Por hora nos ateremos a, dentre alguns limites e abordagens dadas aos conceitos, delimitar um modelo que julgamos adequado de participação social no campo do planejamento e gestão urbana, já que estes, por se tratarem também de processos políticos, estão condicionados às formas como se estruturam e institucionalizam os poderes no interior da sociedade.

Compreendemos que o plano diretor de Itajaí, da forma como foi concebido e construído, esteve condicionado a processos políticos de duas formas diferenciadas: a primeira internamente e segunda externamente. Internamente correspondeu ao desafio do poder executivo municipal em responder as seguintes perguntas -chave: quem pode e deve participar? E de que forma é possível participar? Neste momento o poder executivo

municipal teve autonomia para implementar formas diferenciadas de participação e de inserção social nas discussões do plano diretor. A resposta a esses questionamentos delimitou as formas institucionalizadas para a participação no plano diretor, restringindo ou ampliando a participação. A qualidade da participação será objeto de análise mais à frente, no terceiro e quarto capítulo.

Externamente, o plano diretor esteve condicionado a outro processo político relacionado a sua inserção na estrutura tradicional do poder político instituído, onde o plano, ao ser compreendido como legislação, torna-se competência do poder legislativo municipal, sujeito a outras lógicas e valores em relação ao plano político e à democracia.

Em ambos os processos, o plano diretor apresentou formas variadas de retratar os valores democráticos e os desafios que vêm a eles sendo colocando. Por isso, julgamos importante a discussão sobre as formas possíveis de democratizar a política, já que é bastante pertinente a idéia de que os valores democráticos ao serem rediscutidos e reconstruídos tendem a modificar as relações políticas e de poder nas mais diversas escalas e esferas. As questões de participação social, representação, deliberação apresentaram-se também como condicionantes-chave dentro do processo de elaboração do plano diretor de Itajaí.

A história recente do Brasil coloca a diferenciação entre as possíveis formas de inserção da participação nos processos políticos. A existência, durante a constituinte de 1988, de uma articulação de movimentos populares em torno da democratização política, sugeria a incorporação, por parte do Estado, de esferas ativas de participação social.

A Constituição de 1988 cristalizou estas expectativas em seu artigo 1º, onde coloca que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. A Carta Magna previu, portanto, uma convivência entre democracia representativa e direta, garantindo direitos de soberania através de plebiscitos e referendos. A partir de então se criou uma expectativa de que a democracia representativa - e a participação direta da população em temas-chave - pudesse imprimir modificações no cenário político brasileiro.

Essas esperanças não foram confirmadas e a democracia representativa passou, sobretudo nos últimos anos, a ser questionada, e em muitos casos desacreditada. Da mesma forma a possibilidade de confirmação da soberania popular através da democracia direta nunca chegou a ser configurar efetivamente.

O desvanecimento do poder representante do cidadão, limitado no seu poder de escolha do mandatário, e a liberdade do mandatário, agindo sem vínculo com a representação, agravam a falência da democracia representativa tanto mais quando outros órgãos, organismos, instituições e entidades, sem raiz na vontade popular, sem pouso na soberania do voto, sem legitimidade popular, adquirem poder constituinte e, assim, passam a gerar direitos e poder, numa flagrante usurpação de mandato, que fratura de forma irremediável a democracia e a representação popular, sem a qual aquela falece por inanição. (AMARAL, 2001:33)

O artigo 1° da Constituição Federal apóia-se no pressuposto de que todos os cidadãos estejam interessados numa participação constante nos assuntos públicos, o que não reflete a realidade política brasileira. Em grande medida os mecanismos e processos de tomada de decisão não são percebidos como passíveis de serem utilizados pela sociedade civil. Os canais de partilha de poder são vistos com desconfiança ou descrédito, quando não se tornam instrumentos de manipulação e cooptação. Assim, a participação social no Brasil tem se restringido aos processos político-eleitorais, onde o voto se torna um sinônimo estrito de cidadania.

Temos, portanto, um modelo de representação política que não tem conseguido realizar os pressupostos distributivistas e igualitários presentes nas reivindicações populares e na Constituição de 1988, e nem tampouco construir espaços efetivos de participação e de prática da cidadania.

Questionar o conteúdo da representação significa questionar a prática política que se tornou comum nas mais diversas instituições, esferas e escalas. Até mesmo o plano diretor de Itajaí, ao conformar um Núcleo Gestor responsável por conduzir o processo de elaboração deste plano diretor - compostos por representantes do poder público e da sociedade civil - reproduziu na microescala o modelo e os problemas da democracia representativa.

O questionamento da forma como se estruturou a democracia representativa no Brasil tem influenciado o surgimento de críticas e alternativas que procuram garantir uma vinculação maior entre as decisões políticas e a vontade da população, superando, assim, os limites impostos pela representação.

Como contraposição à democracia representativa, é oferecido o modelo de democracia deliberativa, que tem nas idéias de Habermas a principal referência. HABERMAS (1997) trabalha a perspectiva deliberativa a partir de alguns pressupostos: articulação entre o pluralismo e a construção do interesse comum; participação igualitária de diferentes cidadãos; necessidade de formatação de um processo decisório, advindo de discussões coletivas e públicas; e, por fim, o estabelecimento de mecanismos que reduzam o quadro de dificuldades – as desigualdade sociais - da participação, dando oportunidade, portanto, à ampliação dos grupos e dos cidadãos envolvidos com a dinâmica deliberativa.

COHEN (apud LUCHMANN, 2007), ampliando as concepções de Habermas, apresenta alguns postulados presentes na democracia deliberativa que possibilitam uma maior legitimidade ao processo de tomada de decisões a partir da modificação dos procedimentos formais: (1) os processos de deliberação assumem uma forma argumentativa, sendo caracterizados pelo intercâmbio de informações e da melhor argumentação entre as partes em discussão; (2) ninguém pode ser excluído legitimamente dos processos de deliberação, conferindo-lhes um caráter público e transparente; (3) estas deliberações são livres de coerções externas, já que os participantes devem se restringir somente aos pressupostos de comunicação e de argumentação; (4) as deliberações não permitem a existência de coerção interna, já que deve ser obedecido o princípio de igualdade dos participantes, que se traduz na capacidade de todos poderem ser ouvidos, introduzir temas de debate, produzir contribuições próprias e criticar propostas de terceiros. A única coerção interna é a força do melhor argumento.

O modelo deliberativo de Habermas compreende uma esfera pública, nos moldes que já apresentamos anteriormente, onde os indivíduos tornam-se atores políticos, necessariamente articulados, informados e coletivamente conscientes. O modelo deliberativo apresenta-se como uma concepção mais ampla de atividade política e de participação democrática. Para HABERMAS (1997) a concepção de política deliberativa

depende de associações da sociedade civil que tenham a capacidade de institucionalizar esses procedimentos e, principalmente, de regular as condições de vida coletiva. A política deliberativa de Habermas é uma forma de descentralização dos processos de tomada de decisão que devem se dar no interior da esfera pública, ou seja, no interior da sociedade civil.

A democracia deliberativa de Habermas está baseada na existência de duas estruturas políticas complementares: de um lado esferas públicas diferenciadas quanto ao poder de discussão e decisão, responsáveis por tematizar os problemas que afetam a sociedade; e por outro lado o papel deliberativo do sistema político tradicional, enquanto esfera pública precedimentalmente regulada, responsável pela tomada de decisão condicionada pelos interesses e as influências da esfera pública geral. Esse modelo, e não a esfera da política pública tradicional, condiciona o seu poder às discussões e decisões da esfera pública.

As principais críticas ao modelo de democracia deliberativa de Habermas são as seguintes: (1) o modelo de sociedade civil e de esfera pública possui pouca representação nas sociedades reais, já que preconizam um “raciocínio público livre entre iguais” em meio a um contexto crônico de desigualdade e dominação (COHEN apud MIGUEL, 2001); (2) em meio à complexidão da sociedade e o pluralismo cultural de milhões de pessoas, torna-se inviável a construção de uma esfera pública efetiva, o que somente seria viável para pequenos comitês (DAHL, 1997); (3) existe a possibilidade de que as esferas públicas de “iguais”, idealizadas por Habermas, seja substituído por esferas públicas de conteúdo populista e elitista, com o favorecimento dos grupos sociais mais organizados e com maior poder e recursos (ELSTER, apud LUCHMANN, 2002:20).

Frente a essas condicionantes, compreendemos que uma alternativa viável à necessária democratização da política seja possível não através da radicalização das instituições democráticas conforme a concepção de Habermas, mas através de novas formas de organização política que possibilitem uma construção gradual da autonomia social, dentro das atuais estruturas institucionalizadas.

Consentindo com DRYZEK (apud MIGUEL, 2001), acreditamos que o foco principal da discussão não deve ser a democracia como tal, mas os processos de democratização. Não se

deve discutir o caráter representativo da democracia, mas sim analisar e propor alternativas para que esta representação torne-se efetiva e qualificada.

Um processo na história que se está construindo e em relação aos problemas concretos que deve ir resolvendo. É, portanto uma coisa construída, que não cai do céu por milagre. [...] A democracia não está tanto em representar as opiniões, mas sim em como elas são construídas. Porque as opiniões, como tudo mais, não estão aí preexistentes, à espera que venhamos descobri-las, mas estão em permanente construção, e o interessante é que se possa construir livremente e com a maior informação possível. A democracia não é uma coisa abstrata realmente existente ou não, mas sim processos que se constroem ou destroem, dependendo do papel desempenhado pelas diferentes forças sociais, em cada situação concreta e complexa. (VILLASANTE 1999: 98)

No campo do planejamento urbano institucionalizado, a resposta crítica ao conteúdo atual da democracia, parece ser a aproximação gradual entre o poder público e sociedade civil, a partir de mecanismos de interação entre as decisões políticas e a vontade da população. Mais recentemente, com o Estatuto da Cidade, foram estabelecidos novos ordenamentos jurídicos que possibilitam a participação direta da população na formulação das ações governamentais, originando um novo conceito de democracia participativa, compreendida como um processo que não abrange o banimento de todas as formas de representação, mas sua substituição por instrumentos de participação popular que implicam intervenção da sociedade civil sobre o Estado, através do controle de seu aparelho e de seus governantes.

Dois desafios, no entanto, se colocam a esse processo. O primeiro se refere às dificuldades de incorporação dos novos canais e ordenamentos jurídicos aos processos sociais, tendo em vista a falta de cultura cidadã da população. Esse quadro condiciona esferas políticas onde poucos estão habilitados a participar, afastando-se assim de um dos requisitos básicos para a democratização da política e a conformação da esfera pública, conforme nos coloca SANTOS JR. (2001):

(...) a base social dessas esferas públicas é a sociedade civil organizada, cujo núcleo institucional é formado por associações e organizações autônomas, capazes de constituirem-se como sujeitos coletivos, expressando os problemas sociais vividos nas esferas privadas e fazendo a mediação entre a esfera pública e o complexo institucional – os órgãos de administração pública e o parlamento. (SANTOS JR., 2001:87)

O segundo desafio, que está diretamente ligado ao primeiro, diz respeito à necessidade de se encontrar mecanismos de inclusão política nos processos democráticos que possibilitem uma maior representação dos grupos tradicionalmente marginalizados, especialmente as minorias e os grupos sujeitos às desigualdades estruturais da sociedade.