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Etapa 5: Explanação dos resultados da investigação Correspondeu à fase conclusiva com a redação da versão final da dissertação contendo o processo e os

3. A PARTICIPAÇÃO COMO CONSTRUÇÃO: POSSIBILIDADES E LIMITES PARA A CONQUISTA DA CIDADANIA NO PLANEJAMENTO E NA GESTÃO DA CIDADE

3.1 Conceitos correlatos à participação social

3.1.2 O conceito de esfera pública

Entre as formas possíveis de qualificação política e de inserção de valores efetivamente democráticos aos processos decisórios nas políticas urbanas, um conceito que se apresentou como fundamental no decorrer da presente pesquisa foi o de “esfera pública”. A noção de esfera pública, por sua multiplicidade de idéias e concepções apresenta tamanha complexidade que faremos apenas um delineamento deste conceito, considerando análises de diferentes autores.

HABERMAS (1984) apresenta o termo esfera pública para designar um espaço público de discussão situado fora da estrutura do Estado. Segundo o autor, esse espaço seria aquele onde os indivíduos, ao interagirem uns com os outros, debateriam e pactuariam os mais variados temas relacionados à vida em comunidade, sobretudo as decisões tomadas pelo poder político público, discutindo o conteúdo moral de tais decisões e, complementarmente, apresentando demandas ao Estado. A característica principal da esfera pública seria a possibilidade de participação igualitária e pública de agentes individuais ou coletivos, prevalecendo a ordem do melhor argumento.

“[...] apresentar novas contribuições para a solução de problemas, de oferecer novas informações e de corroborar os bons motivos, denunciando os maus, de forma a introduzir um impulso nos ânimos capaz de alterar os parâmetros constitucionais da formação da vontade política e de pressionar os parlamentos, os judiciários e os governos em favor de determinadas políticas”. (HABERMAS, apud AVIRITZER, 2004)

Habermas apresenta também uma visão complementar a respeito de sociedade civil, sendo esta composta de organizações, movimentos e associações que condensam os problemas sociais das esferas privadas e as transformam em demandas para a esfera pública política. Neste sentido, o autor coloca em categorias diferentes o poder público político – o Estado e seus aparelhos – e a esfera de opinião pública situada no interior da sociedade.

Ainda segundo Habermas, a construção da esfera pública passa pela constituição de uma sociedade civil por sujeitos ativos e públicos que possam tematizar problemas, demandar direitos, construir novas identidades e solidariedades, reconstruir valores, requerer novas instituições, baseados em dimensões autônomas e pluralistas dos agentes sociais, particulares ou coletivamente organizados. Seguindo esse modelo, teríamos de um lado a esfera pública, responsável pela tematização pública dos problemas e, de outro, o papel deliberativo do sistema político, de poder institucionalizado, responsável pela tomada de decisões condicionada pelos interesses e as influências da esfera pública.

No Brasil, é marcante a ausência dessa esfera pública. A relação historicamente construída entre sociedade civil e Estado não chegou a possibilitar o surgimento da esfera pública, já que na maioria das vezes as ações e decisões partiram diretamente do plano particular para o plano público político, condicionando as ações do Estado antes mesmo de serem discutidas e compreendidas pela sociedade, ou pela esfera pública que dela deveria desprender.

O surgimento dos movimentos sociais urbanos, a multiplicação de organizações e associações civis que ganham corpo no Brasil em meados da década de 80, a absorção de valores de Reforma Urbana no Estatuto da Cidade e novo arranjo institucional que se configura nos últimos anos podem ser consideradas respostas a este contexto de ausência, ou fraqueza, da esfera pública.

O momento atual de democratização da gestão pública acena uma tentativa de estabelecer novas relações entre Estado e sociedade civil que trabalhem afirmativamente na potencialização da influência dos grupos sociais nas diretrizes de formulação e implantação das políticas públicas.

É exatamente por se constituir em um conjunto de sujeitos que tematizam novas questões e problemas, que clamam por justiça social e que organizam e representam os interesses dos que são excluídos dos debates e deliberações políticas, construindo e ampliando a esfera pública, que a sociedade civil passa a se articular, ou a se constituir em um núcleo central do conceito de democracia deliberativa. (LUCHMANN, 2002: 05)

No entanto, conforme nos coloca AVRITZER & COSTA (2004: 704), mais do que construção de instituições democráticas (eleições livres, parlamento ativo, liberdade de imprensa, entre outros) a construção da democracia implica na incorporação dos valores democráticos às práticas cotidianas, o que significa a produção de esferas públicas de discussão fora do Estado, inserindo-se na complexidade do tecido social e fortalecendo-se a partir da prática política nas mais diferentes escalas sociais.

Como entraves à constituição da esfera pública, no contexto brasileiro, estão: a profunda desigualdade social, que reproduz um círculo vicioso de exclusão econômica e política; a complexidade social, que obriga a construção de espaços ricos de possibilidades e formas de inserção e a diversidade cultural e de interesses, que acirra as disputas e as discussões e atravanca os processos de participação social.

Neste panorama, os movimentos sociais aparecem como os agentes principais de uma nova estrutura democrática, pois são responsáveis por articular as diferentes estratégias e mecanismos organizacionais de debate e interlocução, com possibilidades de estabelecimento de uma esfera pública que, de um lado impacte a agenda política e as decisões e de outro, seja acessível e representativa da sociedade.

Assim, a influência da sociedade civil se concretiza de forma anônima e difusa por meio da existência de uma esfera pública transparente e porosa, permeável às questões originadas no mundo da vida. Somente através da mediação dos processos institucionais de formação da opinião e da vontade é que o poder de influência da sociedade civil deve chegar ao estado, não mais a contraparte institucional da sociedade civil, como na concepção republicana, mas a esfera com

competências funcionais e políticas delimitadas pelo direito e pela lei. (COSTA, 1999)

HABERMAS (1984) traz a ágora grega como referencial para a compreensão do conceito de esfera pública que ele apresenta. O autor caracteriza a ágora como um lugar concreto onde os cidadãos se encontravam para debater questões relativas ao governo e à cidade ateniense. Era o espaço da cidadania, símbolo da democracia direta, na qual todos os cidadãos tinham igual voz e direito de voto. A idéia de esfera pública é, pois, uma idealização da democracia, onde a necessidade da existência de indivíduos livres e coletivamente conscientes contrasta com a inércia generalizada e a individualidade imposta pela modernidade, que restringe os vínculos sociais e exacerba a competitividade.

A transformação do cidadão em consumidor (subordinado aos imperativos do sistema econômico) e em cliente (subordinado ao sistema político), característicos de um processo de burocratização e monetarização, ancora-se em uma racionalidade pautada nos interesses individuais, suprimindo os espaços de autonomia, diluindo as solidariedades e limitando a participação coletiva. (LUCHMANN, 2002:06)

Contudo, o próprio autor compreende estas dificuldades e coloca que a mercantilização das relações sociais, o consumo e os meios de comunicação de massa conformam um quadro que tem debilitado a esfera pública. Nesta perspectiva, a esfera pública deixaria de ser fórum de debate para ser um domínio do consumo e da comercialização e da comunicação de massa.

THOMPSON (2002), ao analisar o papel da comunicação de massa na contemporaneidade, coloca que a democracia idealizada por HABERMAS está cada vez mais distante, tendo em vista o fato de que a população é excluída da discussão e das decisões políticas, sendo “manipulada” através das técnicas de uso dos meios de comunicação:

A vida pública assume um caráter quase feudal(...). Esta “refeudalização da esfera pública” torna a política um espetáculo que os políticos e os partidos procuram administrar, de tempo em tempo, com o consentimento aclamante

da população despolitizada. A massa da população é excluída da discussão pública e do processo de tomada de decisão, e é tratada como recurso manipulável que os líderes políticos podem utilizar para extrair, com o auxílio das técnicas da mídia, aprovação suficiente para legitimar seus programas políticos. (THOMPSON; 2002:71)

BOHMAN (apud LUCHMANN, 2002, pág. 15) afirma que “a razão pública é exercida não pelo Estado, mas na esfera pública de cidadãos livres e iguais”. Assim, podemos compreender a democracia habermasiana - baseada na esfera pública - como o desenho de uma nova articulação entre o Estado e a sociedade civil que questiona a prerrogativa unilateral da ação política – do estado para a sociedade.

Entendemos que para a construção da esfera pública habermasiana, no contexto brasileiro, é necessária uma profunda modificação nas formas de estruturação da sociedade, onde os valores tradicionais de patrimonialismo, autoritarismo, diferenciação e alienação política sejam substituídos por laços de solidariedade, possibilitando a construção de cidadãos plenos, autônomos e críticos que possam articular novas lógicas às organizações da sociedade civil.

Compreendemos que esse processo passa, fundamentalmente, pela incorporação na cena política – tanto nas políticas de Estado quanto na esfera pública civil - de grupos marginalizados e/ou minoritários, configurando um caráter tensionador à esfera pública, o que oferece legitimidade às políticas e altera o conteúdo dos espaços, antes restrito ao poder tradicional, para novos horizontes de participação social efetiva.