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TRABALHO INFANTIL E QUESTÕES DE GÉNERO

Facilmente nos damos conta de que a realidade não correspon- de a estas representações e a esta forma restritiva de classificar as pessoas (mulheres e homens) reais, mas é justo interrogarmo- nos se este pensamento sobre os sexos não terá implicações nas nossas vidas e na organização social.

O efeito da estereotipia e da representação de homens e mu- lheres, rapazes e raparigas manifesta-se e ganha eficácia porque assumimos os estereótipos como ‘dados objectivos e lhes atribu- ímos um estatuto de «realidade», em vez de os questionarmos. Com efeito, os conteúdos das descrições de cada um dos sexos não advêm directamente da natureza, mas resultam de uma cons- trução social. Por isso, a explicação das diferenças entre sexos tem de ser encarada como variável e mutável, logo, discutível. O conceito de género assenta no reconhecimento da incerteza e na necessidade de subjectivação, questionando o primado da natureza na explicação dos significados de homem e de mulher, bem como os argumentos que favorecem as desigualdades so- ciais entre ambos.

De forma simplificada, poderíamos admitir uma das formas mais comuns de distinguir sexo e género. Ou seja, o primeiro radica- do nos aspectos físicos e biológicos, o segundo com tudo o que acrescentamos ao que a natureza nos dá.

É importante, todavia, referir a tendência hegemónica para rei- vindicar a inexistência de nuances, como se cada pessoa ape- nas pudesse ser masculina ou feminina. O discurso construtor do género é marcado por essa bi-polarização, uma vez que apenas admite a possibilidade de se ser feminino ou masculino e, em simultâneo, legitima a assimetria entre essas duas categorias e entre mulheres e homens.

Do ponto de vista da acção directa e do universo das ocupações e do trabalho, como os casos analisados bem ilustram, a leitura que se faz é justamente essa: ou vais para um lado, ou vais para outro, só tens duas possibilidades de ser.

A leitura dos casos permite evidenciar que não é só a questão do ser diferente, é como essa diferença alimenta a desigualdade entre rapazes e raparigas. Porque não estamos a falar somente de acentuação das diferenças, falamos de uma assimetria que, apesar de alguns casos pontuais distintos, dão vantagens ao sexo masculino.

Como diz Conceição Nogueira, quando o género é concebido como «sistema de significados», em lugar de uma característica intrínseca e fixa de cada indivíduo, é possível entender a constru- ção e manutenção da hierarquia, da diferença e da desigualdade como um sistema que compreende três níveis: societal, interpes- soal e individual.

Portanto, a eficácia do todo processo desta construção e da for- ma como ela se enraíza em cada um, está presente nas nossas relações pessoais e na organização social como um todo. Não é somente individual e organizacional. Essa eficácia está claramen- te presente em cada um dos casos, determinando as escolhas possíveis e as vivências ligadas ao mundo do trabalho.

É fácil darmo-nos conta da divisão sexual do trabalho, que os homens e mulheres, os rapazes e as raparigas não desempenham as mesmas tarefas.

Há sempre pequenos indícios de mudança que nos animam, mas uma exaltação em termos de mudança radical de valores e de ideologias deve ser atenuada. Realmente, há pequenas novidades todos os dias mas são apenas alguns elementos de modernidade, insuficientes para que possamos falar numa mudança radical. Nos casos do PETI analisados não vi nada de extraordinário, algo que não tivesse visto antes. Ou seja, não vi nada que não me seja acessível, empiricamente e na literatura, quanto à sociedade por- tuguesa em geral e quanto aos efeitos do género.

O aspecto mais original ou diferente é o da facilidade de acesso a esses efeitos. Vemos, com nitidez, como a organização familiar está construída, como as escolhas são feitas, como se desenham as trajectórias de vida.

A mim só me aparece a palavra descaramento, devido à falta de subtileza com que, noutros contextos um pouco mais sofistica- dos, se consegue ocultar a realidade. No contexto do trabalho infantil, é tudo muito visível e muito cru mas, insisto, não vi nada que seja diferente da sociedade portuguesa em geral, pois pode- mos identificar os mesmos fenómenos em situações e em famílias de classes média e alta e nas profissões de elite.

Nos casos analisados, a representação social acerca dos sexos influencia e determina a competência e a atribuição das diferen- tes tarefas, como sejam, o cuidado da casa, das crianças, a ali- mentação, os aspectos financeiros, entre outras. Os critérios de divisão das tarefas domésticas continuam a ser claramente gen- derizados, com uma nítida desvantagem para o sexo feminino. A análise dos casos mostra que, no espaço familiar, existe uma for- te correspondência entre as responsabilidades e o sexo de cada elemento do agregado. Ao sexo feminino são atribuídas as tare- fas de gestão doméstica, cuidado dos mais novos, esperando-se uma maior permanência em casa e submissão à autoridade mas- culina. Ao sexo masculino é-lhe dado o papel de sustento familiar, numa orientação pela ética do trabalho e da produtividade, sendo desvalorizado o valor da escolarização e dos diplomas

O que é efectivamente diferente, no meu olhar, é a escala des- ta realidade, pois tudo é ampliado: uma pequena desigualdade transforma-se numa enorme desigualdade e, portanto, a gravida- de e o impacte da diferença nos casos descritos transparece de forma muito viva.

Do ponto de vista das profissões, a construção social do género é igualmente muito visível.

Existe, na sociedade portuguesa, um discurso encantado pelas «grandes mudanças» neste domínio. De facto, a liberdade de esco- lha aumentou grandemente e, hoje em dia, a divisão das profissões entre os sexos pode ser menos rígidas do que há décadas atrás. Mas, um olhar mais próximo permite-nos constatar que, de facto, a mudança não é assim tão radical, qualquer que seja o universo profissional.

A atribuição de profissões a cada um dos sexos continua bastan- te marcada, apesar da aparente mudança social e as sociedades tendem a proceder à divisão genderizada do trabalho e as organi- zações evidenciarão elementos dessa genderização. As mulheres em profissões tradicionalmente de homens terão de despender energias e adoptar estratégias para viabilizar a sua sobrevivência na profissão, têm de contrariar as expectativas de insucesso e

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TRABALHO INFANTIL E QUESTÕES DE GÉNERO

demonstrar, continuamente, as suas capacidades de cumprimen- to (ou superação) dos padrões normativos.

Numa situação minoritária em profissões de predomínio numérico feminino, em termos de tradição, os homens podem ser objecto de estigmatização, de suspeição relativamente à sua «não-mas- culinidade» ou categorizados como excêntricos ou falhados. A homossexualidade e a efeminização podem fazer parte da re- presentação dos rapazes ou homens que estudam ou desempe- nham profissões de predomínio numérico feminino. Por isso, a antecipação e a vivência deste cenário podem ser temidas pelos próprios e influenciar as suas decisões de adesão ou de fuga a profissões tipificadas como femininas.

Na leitura dos casos do PETI, este conjunto de aspectos eviden- cia-se em múltiplas profissões, situações e argumentos: na rapa- riga que queria ser electricista, na que queria ser mecânica e não pôde por não existirem condições logísticas, por existirem dema- siados homens no espaço de trabalho, porque é muito perigoso, porque a sua presença seria perturbadora, porque não existem balneários…

A experiência daquelas que conseguiram realizar a formação e ser integradas num local de trabalho confirmam o que já há muito a investigação tem salientado: elas procuram ser excepcionais e têm de o ser para serem aceites.

Os técnicos do PETI que estiveram envolvidos neste trabalho re- feriram, num primeiro momento, situações relativas a raparigas e mulheres. No entanto, em seguida, narraram situações relativas a rapazes que acompanharam, sobretudo relacionadas com as escolhas da formação a seguir, os locais de estágio e que profis- são exercer. Foi importantíssimo ver que, ao serem estimulados a pensar sobre situações que acompanharam e que pudessem evi- denciar os efeitos do género, os técnicos do PETI identificassem casos muito significativos em que os protagonistas eram rapazes, resistindo, assim, à tentação comum de associarem as «coisas do género» a «coisas das mulheres».

Apareceram narrativas acerca de rapazes que queriam ser cabe- leireiros e não puderam seguir essa via, «porque as clientes da empregadora não iriam gostar de ver lá um rapaz», de um jardim- de-infância que não quis um rapaz a fazer a sua experiência pro- fissional «porque não é suposto um rapaz estar num jardim-de- infância e ter capacidade para cuidar de crianças».

Gostaria, por fim, de salientar algumas conclusões e elementos para reflexão. Apesar de não termos seguido uma metodologia de investigação, foi possível caracterizar a complexidade das si- tuações acompanhadas pelas equipas do PETI, neste caso, pers- pectivadas pelo olhar do género. Há uma espécie de confirma- ção, num contexto específico, do que a literatura e a investigação têm apontado.

As resistências e as indecisões das crianças e jovens acompa- nhados pelas equipas do PETI espelham percursos de vida que tendem a fragilizar a autonomia, as capacidades de afirmação e as aspirações individuais. O seguimento estrito das normas do género nem sempre é o factor desencadeador das dificuldades da existência destas crianças e jovens: este funciona como mais uma fonte da desigualdade que se cruza e potencia outras.

Do ponto de vista individual, as indecisões dos e das jovens, o medo do que as outras pessoas possam dizer, as dificuldades no exercício da sua própria autonomia, de exigir, de querer, e de pensar doutra forma estão claramente presentes. Portanto, já não estamos somente a falar da questão da diferença, falamos de algo que, efectivamente, cria desigualdades e a questão do género é mais uma que se cruza com outras.

Por fim, algumas palavras sobre os aspectos organizacionais. As organizações não são neutras no que se refere ao modo de encarar as diferenças entre os sexos. Criadas e constituídas por indivíduos, as organizações escolares e laborais a que os casos analisados aludem participam activamente na defesa de cultu- ras genderizadas. Os casos identificados clarificam a eficácia dos processos que, a vários níveis, possibilitam manutenção da ordem e dos regimes de género, mas também as dificuldades de introdução – algumas vezes bem sucedida – de elementos de mudança.

Achei interessantes as reflexões de alguns técnicos quando afir- maram: «eu, se calhar, às vezes, também já fiz isto; talvez não tenha apresentado determinadas opções a rapazes e a raparigas por pensar que não são adequadas».

Temos de ver estas reflexões pelo seu lado positivo. Quem faz estas reflexões já deu um passo para a mudança, já se deu conta da sua contribuição (mesmo que involuntária) para a produção da desigualdade e, por isso, estará mais apto a mudar algo em si e na realidade circundante.

Assim, os empregadores, as pessoas que organizam os cursos, as equipas que vão acompanhando estas crianças e jovens, de facto, elas próprias, sem darem conta, muitas vezes, canalizam, genderizam, a intervenção do PETI. Poderá ser assim, mas pode- rá ser transformada doutra forma se ela for consciencializada e se houver reflexão crítica e decisão.

Através desta imagem de corredores labirínticos, simbolizo os corredores estreitos que nos apertam e nos condicionam, limitam os nossos olhares, empobrecem as nossas intervenções técnicas e aqueles com quem trabalhamos. Pelo que antes disse, para es- tas pessoas com quem trabalhamos, os corredores podem ser ainda bastante mais apertados e limitativos.

Simultaneamente, esta imagem também poderá simbolizar a pro- cura de soluções e de caminhos para a mudança, a qual passará pela reflexão colectiva e individual. Há, penso, um trabalho indivi- dual a realizar, orientado pela certeza de que, apesar de estarem em causa fenómenos com raízes históricas bastante fortes, vai ser possível fazer de modo diferente e introduzir laivos de mu- dança.

Por muito poucas e pequenas que tenham sido, as mudanças conseguidas nas vidas de algumas crianças e jovens acompa- nhados pelo PETI, espelhadas nas narrativas de casos bem suce- didos, podem vir a ser mais no futuro que se espera próximo. Muito obrigado.

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TRABALHO INFANTIL E A COMUNIDADE CIGANA

Jovem do PIEF da Moita

Queria começar por cumprimentar todas e todos os presentes. E por agradecer à Dr.ª Joaquina Cadete o seu convite para par- ticipar na elaboração desta obra que marca dez anos do PETI e também o convite para estar aqui presente, a partilhar convosco algumas das reflexões que tenho desenvolvido ao longo de déca- da e meia de trabalho com comunidades ciganas. Queria também cumprimentar os meus colegas de mesa, o Dr. Pedro Calado e o Dr. António Marques e os jovens que nos dão o prazer da sua presença e do seu testemunho relativamente à sua experiência no PETI.

Não vou fazer uma reflexão teórica relativamente à educação es- colar que deixo depois para a leitura do livro, vou apenas abordar alguns pontos de forma sintética.

Como acabei de referir, em termos de investigação, trabalho há década e meia com comunidades ciganas, trabalho mais exacta- mente desde 1991 e tenho abordado as questões relacionadas com a relação dos ciganos com a escola pública mas também a relação com o mercado de trabalho e a importância dos pro- cessos de socialização e educação familiares na construção da etnicidade cigana e na construção da relação com a escola e o mercado de trabalho.

Intitulei a minha intervenção de «Tempos e lugares dos ciganos na educação escolar pública, aproximações ao conhecimento da realidade». Iria começar por referir que, como todos nós sabe- mos mas nem sempre temos presente, a escola pública aberta a todos, como nós a conhecemos actualmente, é uma realidade socio-histórica recente que tem pouco mais de 200 anos no que diz respeito à incorporação das classes sociais desfavorecidas nessa escola pública, tem menos de 200 anos no que diz respeito à incorporação das mulheres nessa escola pública e tem algumas décadas no que diz respeito à incorporação das minorias. Veja-se o exemplo dos negros nos Estados Unidos que começaram por frequentar escolas unicamente para crianças negras e, em Espa- nha, os ciganos que até 1976 estiveram nas chamadas «escolas ponte» e só posteriormente foram integrados nas escolas ditas regulares. Portanto, nós assistimos a uma incorporação fasea- da e diferenciada dos diferentes actores sociais que constituem

as sociedades, também com resultados diferenciados no que diz respeito à sua frequência efectiva e aos resultados escolares. Os ciganos foram incorporados na escola tardiamente e, no que diz respeito à realidade portuguesa, aqueles encontravam-se, não de lei mas de facto, excluídos do sistema de ensino português até à transição de Abril de 1974-finais da década de 80 do século XX. Não só no que diz respeito aos ciganos nómadas mas também aos sedentários e semi-sedentários. Os primeiros pela obrigação da itinerância, os segundos pela exclusão e pelos estereótipos construídos pela sociedade maioritária em relação a estas comu- nidades.

Recordo aqui Rui Canário, quando este investigador dizia que até à década de 80 nós estávamos numa escola que se designaria de uma escola das «promessas» e a partir da década de 80 entra- mos naquilo que designou de escola das «incertezas» que é «uma escola onde a crescente raridade dos empregos se conjuga com a desvalorização rápida desses mesmos diplomas, tornando-os, simultaneamente, imprescindíveis e cada vez menos rentáveis». Actualmente uma longa escolaridade já não significa uma garan- tia de acesso a postos de trabalho qualificados, ou tão somente o acesso a um posto de trabalho, o que acaba por frustrar as expectativas de um melhor futuro profissional e pessoal, levando ao desencanto em relação a essa própria escola e ao abandono precoce, frequentemente antes de terminar a idade de escolari- dade obrigatória.

No que diz respeito aos jovens ciganos, esta não correspondên- cia entre qualificações académicas elevadas e exercício de tra- balho qualificado, aparece agravada pela pertença étnica e pe- los estereótipos que são associados a esta minoria. Não posso deixar de lembrar Pierre Bourdieu (sociólogo francês que morreu no início desta década mas cuja obra é incontornável pelos con- tributos teóricos que nos deixou a vários níveis), quando dizia (e cito de cor) que o valor do diploma fora do mercado propriamente escolar depende do valor económico e social do seu detentor. O rendimento do capital escolar, que é uma conversão do capital cultural, depende do capital económico e social em que pode ser