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consagrada a sua valorização. Ora, o que é que isto significa? Significa que o mesmo diploma académico obtido por um jovem de uma classe social favorecida, de uma classe social desfavo- recida ou de uma minoria étnica destituída de poder, na procura de um posto de trabalho compatível com o diploma obtido não estão, de facto, nas mesmas condições de acesso a esse posto de trabalho.

Os ciganos foram incorporados à escola no período das incerte- zas dada a sua incorporação na escola ter apenas algumas déca- das. O que significa que seu tempo de incorporação à escola foi um tempo extremamente tardio e o seu lugar tem sido um lugar periférico dentro do sistema educativo mundial e nacional dado ter-lhes sido reservado um lugar em função das expectativas ne- gativas associadas à imagem social do seu grupo de pertença. Esta incorporação à escola no período das incertezas tem tam- bém como consequência uma maior descrença nas possibilida- des de melhoria de oportunidades de vida a partir da posse de um diploma académico que, teoricamente, proporcionaria o acesso a lugares de trabalho qualificado. Com efeito, era frequente ouvir as famílias e os jovens com quem trabalhei, dizerem-me: «mas vou estudar muito para quê? Os da vossa raça estão aí com cursos superiores e estão desempregados»; «nós vamos estudar para quê? Somos ciganos, vocês já estão desempregados, nós por causa do racismo, ainda teremos mais dificuldade em arranjar trabalho».

Tendo sido tardia a incorporação dos ciganos à escola, está a re- alizar-se neste momento uma aprendizagem por parte dos mes- mos, da cultura escolar e a construção de uma cultura de escola, porque esta incorporação tardia na escola significa que os grupos socioculturais ciganos têm sido secularmente afastados na esco- la e isto não é uma especificidade da realidade portuguesa. De facto, todos os dados que tenho relativamente a outros países onde existem estudos sobre as comunidades ciganas revelam exactamente isso: baixa escolaridade, alto absentismo e níveis de analfabetismo muito elevados.

Estive há muito pouco tempo num congresso internacional em Budapeste com vários colegas que trabalham com comunidades ciganas na Turquia, na Hungria, na Roménia, em Inglaterra, etc. e, de facto, isto constitui um denominador comum ainda nos dias de hoje. Altas taxas de analfabetismo nas pessoas de idade média, digamos 40, 50 anos, e os jovens a abandonar, precocemente, a educação escolar. Portanto, não é uma realidade nossa, é uma realidade mundial.

Se os ciganos foram incorporados tardiamente à escola significa que se encontram actualmente num processo de aprendizagem do funcionamento da escola e do significado dos saberes esco- lares. Nós não podemos exigir que em poucas décadas a sua familiarização com a instituição escolar seja idêntica à dos grupos que a frequentam há mais de dois séculos, para além do facto de esta não familiarização acabar também por ser agravada pela si- tuação de marginalização social que é vivida pela maior parte das famílias ciganas, quer em Portugal, quer em outros países. Este é um factor importante porque a escola, a cultura da escola, requer uma aprendizagem, uma familiarização que está, neste momento, ainda num processo de construção.

No entanto, eu queria enfatizar que, contrariamente à ideia de senso comum de que os ciganos não gostam da escola, as inves-

tigações que realizei ao longo de todos estes anos revelam que a escola é significativa para este grupo sociocultural, embora este significado apresente várias gradações. Com efeito, em todas as famílias que estudei e como regularidade, a escola aparece valo- rizada fundamentalmente na vertente da sua funcionalidade para o quotidiano da comunidade, nomeadamente a importância da aprendizagem da leitura e da escrita. É importante para desco- dificar os símbolos da linguagem escrita, para a possibilidade de tirar a carta de condução que é, ainda hoje, muito importante para a condução dos veículos para os locais de comercialização que são as feiras.

Portanto, há aqui um grau de instrumentalidade, como aliás existe para todos aqueles que frequentam a escola, embora essa instru- mentalidade possa ter fins diversos em função do grupo sociocul- tural de pertença. Mas para um número significativo de pessoas ciganas (e é esta gradação que eu acho que é importante nós termos em atenção) a escola aparece também valorizada do pon- to de vista do seu contributo para o exercício de uma adequada interacção social. Considero isto muito importante, porque escu- tei com regularidade os jovens dizerem que a aquisição de com- petências linguísticas seria importante para lhes permitir dialogar com «pessoas maiores». Entenda-se por «pessoas maiores», pessoas que têm um nível de escolaridade mais elevado e que, portanto, a frequência da escola os faria sentir menos desiguais face a esses sujeitos. Aliás, como dizia um dos senhores que fez parte da minha investigação, «entrar em qualquer sociedade e sa- ber falar com qualquer pessoa. A escola ensina a saber falar com as palavras certas e a dizer as coisas correctas, já que sem escola o cigano então é que seria atrasado a falar e em tudo».

Esta parece-me ser uma dimensão fundamental para os ciganos com quem trabalhei, que relacionam a ausência de escolarida- de com a falta de competências discursivas consideradas fun- damentais para o desenvolvimento de relações de sociabilidade inter-étnicas. Aliás, como foi regularmente observado durante a realização do trabalho etnográfico, o receio da inferiorização pe- rante o outro letrado tem como consequência o maior fechamen- to da comunidade dentro do próprio grupo, o que acaba por os enclausurar mais no seu grupo de pertença porque o receio de se sentir inferior nessa relação de sociabilidade funciona como um factor inibidor, acabando por os fechar mais dentro do seu grupo de pertença. Portanto, a aquisição de competências linguísticas, uma das competências desejadas, colocaria em situação de me- nor desigualdade os sujeitos actores ciganos face aos actores pertencentes à sociedade maioritária, diminuindo assim esse sen- timento de inferioridade que deriva da percepção desta ausência de competências linguísticas consideradas por si como adequa- das dado serem socialmente valorizadoras do seu portador. Os sujeitos-actores pertencentes ao grupo sociocultural cigano valorizam os saberes escolares, mas têm demonstrado o que de- signei por uma incapacidade estrutural de permanecer na esco- la de forma prolongada. Esta incapacidade estrutural actual de permanência prolongada na escola, não significa uma incapaci- dade estrutural permanente, mas tão somente que se manterá enquanto as condições actuais da sua construção não sofrerem processos de reconfiguração e de mudanças significativas, no- meadamente ao nível da construção do habitus primário no que diz respeito aos processos de socialização e educação familiares e comunitária e à configuração da educação escolar. Significa portanto que não estão construídas as condições, os contextos e

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os processos que permitam que a frequência prolongada da es- cola pelo grupo étnico cigano se constitua numa regularidade em vez das singularidades que actualmente apresenta e que apenas têm dado origem a mobilidades sociais individuais.

Gostaria ainda de referir que esta regularidade, que é a posse de uma baixa escolaridade pela grande maioria do grupo sociocul- tural cigano, o facto de os jovens maioritariamente abandonarem a escola a partir do final do primeiro ciclo do ensino básico, ter também subjacente duas concepções de sucesso: uma das co- munidades ciganas e outra da escola. Com efeito, para as comu- nidades ciganas, quando os jovens já adquiriram aquilo que eles consideram fundamental para o seu quotidiano profissional e pes- soal que é saber ler, saber escrever, e saber realizar operações de aritmética simples, consideram que isso é sucesso e, portanto, quando está adquirido abandonam a escola. Enquanto que para a escola sucesso significa uma continuidade pelos diversos ciclos de escolaridade. Assim, temos aqui duas concepções de suces- so, e não estou a dizer qual é que está certa ou errada, estou simplesmente a fazer uma análise do que está também na origem deste abandono precoce. Como diziam frequentemente alguns dos sujeitos-actores ciganos, «isto de vender nas feiras qualquer um sabe, não é preciso escola». Portanto, há uma conscienciali- zação de que realizam um trabalho indiferenciado para o qual não é necessário uma longa escolaridade e quando consideram que já obtiveram da escola aquilo que consideram essencial acabam por abandonar essa mesma escola.

Se a regularidade tem sido a posse de uma baixa escolaridade, nós temos singularidades que eu considero importante enfatizar porque aquilo que são singularidades hoje, podem-se transformar em regularidades no futuro e é importante estarmos atentos a es- sas singularidades e aos contextos e processos que podem po- tenciar a sua transformação em regularidades. Assim, para além das regularidades, nós temos também a frequência escolar como factor de diferenciação interna e de mobilidade social ascendente. Ou seja, apesar do afastamento dos ciganos em relação à escola se apresentar com uma regularidade, todo o trabalho de campo que eu tenho realizado revelou uma não homogeneidade interna na forma de perspectivar e de se relacionarem com a escola. Com efeito, embora para um número reduzido de pessoas ciganas, a escola é também perspectivada com uma forma de mudança de estatuto social, de mobilidade social ascendente que também tem subjacente o desejo de uma maior integração social. Neste percurso prolongado de escolaridade, uma das dimensões que eu acabei por considerar como muito importante, (porque foi uma evidência empírica), era a construção de relações de con- fiança e de proximidade escola – família – escola. Por exemplo, na comunidade que eu estudei, o bairro onde habitavam está a ser demolido e as famílias estão a ser alojadas em vários bairros de habitação social da cidade do Porto. Enquanto que as famílias não ciganas retiraram os seus filhos da escola do Bairro, passan- do estas a frequentar a nova escola (a escola que serve o novo local de residência), as famílias ciganas mantiveram durante al- gum tempo as crianças na mesma escola. E quando indagava acerca do porquê deste comportamento, os progenitores res- pondiam que se devia ao facto de conhecerem as professoras, porque confiavam nas professoras, sabiam que podiam confiar as suas crianças nelas; as outras escolas eram novas, eram des- conhecidas e, portanto, estas famílias acabavam por continuar a fornecer a morada antiga, para que as suas crianças continuas- sem na escola que elas já conheciam e com a qual tinham desen-

volvido relações de confiança e de proximidade. Só mais tarde é que retiraram as suas crianças daquela escola e as incorporaram nas escolas da sua nova zona de residência. Portanto, esta cons- trução de relações de confiança e de proximidade parecem-me muito importantes, é um dado relevante e a ter em considera- ção pelas escolas e pelos professores em intervenções junto das comunidades ciganas, no sentido de aumentar os níveis de fre- quência e dos resultados escolares. Os resultados das minhas investigações apontam para o facto de quanto maior for o grau de proximidade e de confiança entre pais e professores maior será a probabilidade de garantir uma frequência escolar prolongada e de sucesso por parte das crianças e dos jovens.

No que se refere ao Programa Integrado de Educação e Forma- ção (PIEF), a relação de confiança e de proximidade estabeleci- da entre as equipas do PETI e as famílias dos jovens parece-me também ter sido uma das razões para o retorno e permanência na escola dos jovens que frequentaram o PIEF.

Como se poderá depois verificar pela leitura dos relatos que fa- zem parte do Opúsculo «Minorias», relatos das experiências vi- vidas pelas professoras, professores, pelos técnicos e técnicas, que a nível nacional integraram as equipas que levaram a cabo a implementação deste programa, a construção de uma relação de confiança e de proximidade das escolas, família, através dos pro- fessores, e das professoras, constituiu-se numa razão fundamen- tal para a frequência e certificação escolares de vários dos jovens e das jovens que retornaram à escola através da frequência de turmas constituídas ao abrigo do PIEF.

Constituindo-se o PIEF numa oferta educativa de segunda opor- tunidade (porque é uma segunda oportunidade que é dada aos jovens depois destes terem falhado na frequência do currículo padrão), o PIEF acaba por funcionar como uma oportunidade de segunda, como uma espécie de currículo alternativo cuja opor- tunidade de frequência é possibilitada a quem já abandonou o sistema de ensino sem ter concluído a escolaridade obrigatória, mas estando ainda dentro da idade de escolaridade obrigatória, restringindo-se estes programas aos jovens que fracassaram, em termos da definição académica do saber, fracassos esses que normalmente são perspectivados como um problema individual e não como um fracasso do próprio sistema. Sendo um programa para jovens que já abandonaram o sistema de ensino, mas estan- do ainda em idade de escolaridade obrigatória, eu considero que este tipo de medidas, a existir deverá ter um carácter de excep- ção e não de regularidade, portanto, para situações de abandono escolar efectivo, como é o caso dos jovens que a nível nacional frequentaram o PIEF.

Ou seja, eu considero que esta é uma medida de carácter palia- tivo, que não resolve causas dos problemas e, por essa razão, seria importante que, ao nível do sistema de ensino, se pensasse futuramente em novas estratégias de intervenção curriculares e pedagógicas que passem, não pela existência e frequência deste tipo de programas, mas pela ampliação da base cultural do cur- rículo nacional incorporando um conjunto plural de saberes que são parte integrante da cultura e das experiências de vida das diferentes crianças e jovens que frequentam o sistema de ensino; pela diversificação de estratégias pedagógicas, pela organização da própria escola.

O que eu quero dizer, repito, é que estes programas, a existir (e se existirem /existem significa que o sistema escolar e a socieda-

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de no seu todo falharam) apenas devem existir com carácter de excepção, para jovens que já abandonaram o sistema de ensino e nunca devem ser pensados como uma regularidade e tenho algum receio que se possa pensar nestes programas também como regularidade para os jovens que demonstram alguma ou uma grande probabilidade de abandono do sistema de ensino ou para jovens com as chamadas dificuldades de aprendizagem. Quero no entanto referir aqui que os relatos de alguns jovens ci- ganos e ciganas, que frequentaram este programa, e mesmo os relatos destes jovens que estão aqui presentes na mesa, demons- tram que a frequência do PETI funcionou como uma espécie de consciencialização ao nível das desigualdades de género e da importância dos saberes escolares.

Recordo uma adolescente cigana que dizia: «quando eu tiver fi- lhos vou dar a mesma oportunidade aos meus filhos e às minhas filhas de andar na escola». Temos aqui uma consciencialização de que existe uma discriminação de género na frequência escolar e a construção de uma consciência crítica ao nível da importância de dar as mesmas oportunidades, independentemente da pertença de género. Ou um adolescente cigano que dizia: «quero continuar a estudar porque percebi que o que se aprende na escola é im- portante para o meu futuro». Portanto, a frequência do PIEF deu alguma consciencialização aos jovens da importância da escola e também das relações de género enquanto relações de poder. De acordo com professoras e técnicas, os alunos e as alunas que frequentaram o PIEF consideraram-se menos desiguais pelo fac- to de se mostrarem capazes de realizar as aprendizagens solici- tadas, não colocando em causa a sua auto-estima e o seu valor próprio, contribuindo para uma imagem mais positiva da escola. Ou seja, as tarefas que no PETI e no PIEF foram levados a realizar, foram tarefas potenciadoras da sua auto-estima e que os levaram

a olhar para a escola de uma forma diferente, mais positiva. A mi- nha expectativa é que, a partir daqui, estes jovens, quando pais, proporcionem aos seus filhos e filhas a possibilidade de frequên- cia de percursos escolares prolongados. E pode ser que desta forma, uma medida que é periférica ao sistema de ensino porque não desafia o currículo padrão, acabe por ter, de facto, efeitos di- feridos no tempo, efeitos ao nível da frequência escolar por parte dos filhos destes jovens que, neste momento, frequentam o PIEF. Acho que nós não nos devemos esquecer que a educação esco- lar constitui uma fonte de poder extraordinariamente importante. Mas não a educação que é pensada de forma remediativa e sim a educação num saber que é socialmente valorizado e que, por essa razão, é potenciadora de uma redistribuição de poder na sociedade.

Quero deixar claro que a questão não está na oposição à diver- sificação de vias de ensino. Eu sou favorável à diversificação das vias de ensino. Mas a minha oposição é na desvalorização social a ela associada uma vez que esta diversificação é uma diversifi- cação hierarquizada e hierarquizadora dos seus frequentadores e dos portadores deste tipo de diplomas, que mantém ou acentua desigualdades sociais. Portanto, não é uma diversificação para potenciar melhores oportunidades na vida e é aqui que reside o problema, não é uma diversificação que é equivalente. Estas vias de ensino não são todas consideradas equivalentes, são hierar- quizadas por referência ao currículo-padrão e sendo hierarquiza- das aumentam as desigualdades sociais.

Considero importante que as nossas reflexões incidam sobre estas dimensões para que possamos construir uma escola que, de facto, seja potenciadora de menos desigualdades e de mais oportunidades de vida.

Muito obrigada.