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3 OS ARGUMENTOS DE DAVID HUME CONTRA OS MILAGRES

3.1 Interpretações Contemporâneas ao Ensaio “Dos Milagres” de Hume

3.1.2 Antony Flew

Antony Flew, na sua obra “Hume’s Philosophy of Belief” (1961), argumenta que Hume apresentou dois tipos de argumentos contra os milagres: o primeiro, correspondente à primeira parte do ensaio “Dos Milagres”, é um argumento a priori acerca da evidência necessária para se estabelecer a ocorrência de um evento miraculoso; o segundo, correspondente à segunda parte do ensaio, um argumento a posteriori, cujo ensejo é estabelecer as implicações factuais do argumento a priori.

Flew concorda com a tese (1) da leitura tradicional, de acordo com a qual Hume não teria apresentado um argumento a priori contra a possibilidade de milagres, pois entende que o argumento de Hume, na primeira parte do ensaio, é meramente epistêmico, nomeadamente acerca do conflito de indícios contrários. No entanto, discorda da tese (2), de acordo com a qual Hume teria apresentado um argumento a priori contra a racionalidade da crença em milagres por meio do testemunho. O argumento da primeira parte pretende, segundo Flew, estabelecer que, dada a definição de milagre, deve haver um conflito de evidências para qualquer pretenso milagre (1961, p. 178), mas não exige, a priori, que seja impossível estabelecê-lo por meio do testemunho. O argumento a priori de Hume, portanto, só estabelece que em casos alegados de milagres deve sempre haver um conflito de evidências, mas não exige que a crença no testemunho do miraculoso seja sempre sem suporte evidencial suficiente. Portanto, trata-se de

interventora na explicação do fenômeno – lembremo-nos que, para Hume, a intervenção divina é uma das condições necessárias para que um evento seja considerado miraculoso. À vista do que foi dito, parece que o caso relatado no parágrafo 36 não é propriamente um caso de milagre, senão que de um evento maravilhoso (marvellous) ou extraordinário; e, portanto, é um caso que não implica necessariamente que a condição de violação de uma lei da natureza foi satisfeita. Por isso que admitir o testemunho em favor de tal foi cogitado por Hume, conforme a interpretação de Ellin (1993, p. 206).

um argumento epistêmico a priori bastante modesto, mas suficientemente modesto para ser incompatível com a tese (2).

À semelhança de Fogelin, Flew também insiste que Hume não pode ter um argumento contra a possibilidade de milagres, pois isso seria incoerente com a sua metafísica. Como vimos, nos ensaios IV e V da EHU, Hume deu razões para negarmos que há uma necessidade inerente às coisas. A necessidade que atribuímos às coisas é meramente uma ideia projetada na nossa mente pelo hábito. Ora, se isso é assim, então nada na realidade que não implique uma contradição lógica, poderá ser considerado realmente impossível – é o argumento da negação. Portanto, Hume não poderia agora estar apresentando um argumento a priori contra a possibilidade da ocorrência física de qualquer evento miraculoso (que sequer é uma contradição lógica), pois estaria sendo incoerente com a sua própria metafísica72.

Flew destaca a afirmação de Hume, que diz (EHU, 10, §12): “[...] temos aqui uma prova direta e cabal contra a existência de qualquer milagre, pela própria natureza do fato [...]”, e pontua que ela é destituída de qualquer conteúdo metafísico, que apele à natureza intrínseca do mundo. Flew entende que “a natureza do fato” a que Hume se refere é o conflito de evidências que acontece sempre que se pretende estabelecer um milagre. Com efeito, se Flew estiver com a razão, então Hume mantém uma posição meramente defensiva, na medida em que não refuta a priori positivamente quaisquer alegações em favor de milagres.

As consequências naturais do exame das evidências para aquele que pretende estabelecer um milagre é o objeto de estudo da segunda parte do ensaio. O exame das evidências contrárias mostra que o milagre é algo sempre mais improvável, e Hume chega a tal conclusão por meio de quatro razões, a saber: (1) há uma ausência de evidências suficientes a favor do testemunho do milagroso; (2) a natureza humana tem uma tendência ao raro e extraordinário; (3) relatos de milagres prosperam sobretudo entre povos bárbaros e ignorantes; e, por fim, (4) há um desacordo generalizado entre as diversas religiões que apelam aos milagres como fundamento dos seus sistemas. Tudo isso parece mostrar que, na realidade, a crença em milagres enfrenta uma forte oposição de evidências contrárias. Flew conclui que o argumento de Hume é apenas evidencial73, e não demonstra, a priori, que a crença em milagres é irracional, nem tão

pouco que o milagre é um evento impossível.

72 Para uma abordagem dos argumentos anti-essencialistas de Hume, veja-se 2.2: “A Epistemologia e a Metafísica

de Hume”.

73 E aqui está pressuposta uma teoria empirista da evidência, de acordo com a qual para afirmarmos algo com

A passagem na qual Hume diz que nenhum testemunho em favor do milagre (de qualquer tipo) jamais chegou a ser uma prova dele, nem tão pouco de torná-lo provável74, é interpretada por Flew de maneira diferente de Fogelin (1990), pois, para aquele, Hume não está usando provas contra provas de maneira unívoca – como se o termo “prova” sempre estivesse a significar em Hume um tipo de argumento em si mesmo conclusivo –, uma vez que “provas contra provas não são provas” (1990, p.142). Um dos argumentos de Flew baseia-se na afirmação de Hume, que diz que o testemunho para o milagre, quando considerado separado e em si equivale a uma prova inteira. Segundo Flew, Hume está invocando um duplo padrão de prova, distinguindo o tipo de evidência cabível.

Há situações em que uma alegação testemunhal é considerada uma prova, mas que não o é em outra, nomeadamente no caso de um milagre. Por exemplo, se cem pessoas afirmam ter visto a rainha Elisabeth passeando no jardim do seu palácio, consideramos isso uma prova. Mas se acrescentarmos que ela morreu a um mês, não consideramos uma mais uma prova tão facilmente. Flew conclui que Hume só admite uma prova testemunhal de um milagre apenas em uma situação específica, qual seja: no caso de milagres não religiosos.

Flew pressupõe que existem dois tipos de milagres em Hume: por um lado, aqueles milagres que não podem ser provados (aqueles nos quais a religião poderia ser fundada, se pudessem ser provados), e milagres que podem ser provados, mas que, no entanto, não são os que podem servir para fundamentar uma religião (1961, p. 182).75 Ou seja, contra a tese (2) Flew está a argumentar que ainda é possível provar certos milagres, mas não aqueles que poderiam ser a base de uma religião. Em suma, a ideia dele é que pode haver verdadeiros milagres atestados pelo testemunho, mas, no entanto, não poderiam servir para fundamentar uma religião.