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O Argumento Epistêmico Contra os Milagres (AECM)

3 OS ARGUMENTOS DE DAVID HUME CONTRA OS MILAGRES

3.3 O Argumento Epistêmico Contra os Milagres (AECM)

Passaremos a defender que Hume tem um argumento contra a racionalidade da crença em milagres, pelo que rejeita a possibilidade de que um testemunho possa servir como indício suficiente em seu favor. Em suma, a ideia de Hume é que o testemunho não justifica a crença em milagres, pois as condições para isso não são concretamente satisfeitas, e nem podem ser, pois, por um lado, o milagre tem, por definição, uma uniformidade em seu desfavor, e, por outro

93 Branquinho (2006, p.635): “Propriedades formam aquela categoria de entidades que se caracterizam por serem

predicáveis de, ou exemplificáveis por algo. P. ex., a propriedade de ser oval é predicável de, ou exemplicicável por, objetos ovais; e diz-se desses objetos que são exemplos ou espécies da propriedade, que é assim vista como um tipo ou universal”.

94 Armstrong (1983) defende um realismo aristotélico das propriedades (imanentismo in rebus), ou seja, que não

há leis na ausência de instâncias. Em contraste, Tooley (1977) e Smith (2001) optam por um realismo platônico das propriedades (transcendentismo ante rem), ou seja, que há leis mesmo na ausência de instâncias ou propriedades. O problema da natureza das propriedades ou universais não será abordado neste capítulo.

lado, a impossibilidade da violabilidade das leis da natureza. O argumento metafísico, portanto, é usado de maneira acessória no (AECM) em certo momento.

Nossa formulação do (AECM) aproxima-se da primeira interpretação de Fogelin (1990), segundo a qual Hume, na segunda parte do seu ensaio, estaria argumentando de maneira hipotética contra a força do testemunho em favor dos milagres, mesmo após ter repugnado a possibilidade dos mesmos. Houve, como mencionamos, uma mudança na opinião de Fogelin (2003) quanto ao argumento de Hume, pelo que passou a defender que se Hume estivesse argumentado na primeira parte do seu ensaio contra a possibilidade dos milagres, então seria uma perda de tempo investigar depois qual é o estatuto da crença em milagres pela força do testemunho, uma vez que a posse de uma razão para se rejeitar a priori qualquer alegação de milagre é, em si mesmo, uma ótima razão para rejeitarmos a racionalidade da crença em tais eventos.

No entanto, desde que os agentes cognitivos não sejam infalíveis, há sempre casos em que têm crenças racionais, adequadamente justificadas, mas falsas. Isso é azar epistémico: um agente forma as suas crenças cuidadosamente, com as melhores justificações de que é capaz, e conclui p, mas p é falsa. O fato de se tratar de verdades ou falsidades contingentes, ou necessárias (metafisicamente) não faz diferença alguma. Faria diferença se se tratasse de frases conceitualmente impossíveis e que, ao mesmo tempo, fossem muito simples, como “chove e não chove”. Portanto, não é algo impróprio investigar as condições epistêmicas que tornariam alguém racionalmente autorizado a crer em milagres mesmo após ter concluído que milagres são impossíveis. De acordo com a nossa interpretação, Hume tem, na verdade, uma dupla preocupação no seu ensaio. Em primeiro lugar, quer argumentar que uma das condições para que um evento seja miraculoso é a “condição de violação” e, em seguida, que a natureza é tal que as suas leis verdadeiras não podem ser violadas, donde se segue que milagres não podem realmente ocorrer. E, em segundo lugar, que a crença em milagres é tal que nunca se tem (nem se pode ter) justificação apropriada com base testemunhal para eles.

Segundo o (AECM) de Hume, mesmo que um testemunho satisfaça as exigências para tornar-se uma prova em favor do milagre, ele ainda teria uma evidência indutiva prévia uniforme contrária, bem como a inviolabilidade das leis da natureza, o que seria uma evidência imbatível contra qualquer testemunho em favor de milagres.

O argumento de Hume, conforme formularemos, é compatível com a distinção feita por Fogelin (2002) entre o “método direto” e o “método indireto” de avaliação do testemunho. No entanto, destacamos que, para Hume, o “método direto” (que é aquele que trata das qualidades intrínsecas ao testemunho), quando tomado em si mesmo, não é capaz se superar a evidência

indutiva prévia acumulada pelo “método indireto” sobre as regularidades observadas, isto independente se o milagre pretende ou não ser fundamento de algum sistema religioso – caso em que, neste ponto, discordamos de Fogelin e Flew. Entendemos, juntamente com Ellin (1993, p. 206), que Hume defende que tudo aquilo que possa pertencer aparentemente ao campo do miraculoso (religioso ou não), pertence, antes sim, ao campo do maravilhoso, caso em que jamais pode fundamentar uma religião.

Quanto à máxima de Hume (EHU, 10, §13), que diz: “não há testemunho que seja suficiente para estabelecer um milagre, a menos que o testemunho seja de tal natureza, que sua falsidade seria ainda mais miraculosa do que o fato que se propõe a estabelecer”, Earman entende corretamente que o argumento de Hume pressupõe, em princípio, que o milagre, dado o nosso conhecimento de fundo, é sempre mais improvável. Assim, a falsidade do testemunho em apoio ao milagre é sempre mais provável. Aliás, para Hume, eventos extraordinários exigem evidências extraordinárias (EHU, 10, §24).

Swinburne também notou acertadamente acerca de Hume que “A evidência do que geralmente acontece conta pesadamente contra o testemunho de testemunhas sobre o que aconteceu” (1970, p. 14). Como uma lei da natureza já pressupõe uma sequência invariável de eventos de um certo tipo no passado, segue-se que qualquer alegação de que houve uma exceção ao padrão invariável terá, à partida, um ônus enorme para arcar, que é o de fornecer, em termos de frequência, evidências contra a lei da natureza já estabelecida, o que exigirá um número incrível de testemunhas confiáveis para que se possa contrabalançar o peso da evidência das leis da natureza em prol do testemunho do milagre.

Ora, como não temos tais evidências em favor do milagre, a crença em milagres é sempre irracional. Ademais, sequer é possível que a crença em milagres seja racional, pois, mesmo que haja boa evidência testemunhal em favor do milagre (por hipótese), ela não será jamais capaz de contrapor a uniformidade da natureza nem a impossibilidade metafísica das leis da natureza, conforme o (AMCM).

Vejamos aqui a nossa proposta de formulação do argumento (ou argumentos) de Hume:

(1) É sempre racional acreditar naquilo que é mais provável.

(2) A evidência testemunhal em favor de um milagre M deve ser sempre dosada com a evidência indutiva que dispomos previamente em favor de ¬M.

(3) Se M é um milagre, então há sempre uma experiência uniforme contrária a M. (4) A ocorrência de M é mais provável do que ¬M se a evidência testemunhal que dispomos em favor de M for maior do que a evidência indutiva que dispomos previamente em favor de ¬M.

(5) Portanto, a evidência indutiva que dispomos previamente em favor de ¬M é sempre maior do que a evidência testemunhal que dispomos em favor de M. (De 3 e 4)

(6) Portanto, a crença em M é sempre irrazoável. (De 1, 2 e 5)

(7) Se M é um milagre, então M é uma impossibilidade metafísica (pelo AMCM). (8) Nenhuma evidência indutiva pode tornar razoável a crença de que um evento que é uma impossibilidade metafísica ocorreu.

(9) Portanto, não é possível que a crença em M se torne razoável. (De 7 e 8)

De cara, vemos que é possível criticar a premissa (2), pois, para ela ser verdadeira, a concepção reducionista de testemunho terá de ser a mais plausível. No entanto, é muito disputável na epistemologia do testemunho contemporânea se tal concepção é plausível. Assim, é importante apresentar, ao menos em linhas gerais, a epistemologia do testemunho de Hume.

3.3.1 Hume e a Epistemologia Reducionista do Testemunho

Quanto ao testemunho humano, Hume diz o seguinte (EHU, 10, §8):

A razão pela qual atribuímos qualquer crédito a testemunhas e historiadores não é derivada de qualquer conexão que percebemos a priori entre o testemunho e a realidade, mas porque estamos acostumados a encontrar uma conformidade entre eles.

Hume defende que os ouvintes de um testemunho deveriam observar uma conformidade constante e regular entre o testemunho e os eventos correspondentes, de modo que o relato testemunhado só estaria justificado se estivesse em conformidade com a experiência do ouvinte. Ou seja, o estatuto epistémico do testemunho é, em última análise, redutível à nossa percepção sensorial, à memória e à inferência indutiva – por isso chama-se reducionismo. O que se segue é que o ouvinte deve possuir razões positivas de que o testemunho está justificado. Tais razões, obviamente, não podem ser elas mesmas testemunhais; do contrário, seria uma justificação circular.

Contrasta com o reducionismo a visão, comumente atribuída a Thomas Reid (2013), de que a justificação testemunhal é uma fonte epistêmica irredutível, ou seja, que o testemunho é uma fonte básica de justificação, estando, portanto, em pé de igualdade com a percepção dos sentidos, memória e inferência indutiva – por isso chama-se não-reducionismo. O que se segue é que, apesar de ser facultativo a posse de razões positivas em favor do testemunho, a ausência de razões negativais ou contrárias é necessária, a fim de evitar a irracionalidade ou irresponsabilidade doxástica. Segundo Faria (2017, p. 282), podemos formular a tese reducionista da seguinte maneira:

(TR) Para cada falante, A, e ouvinte, B, B acredita que p com garantia com base do testemunho de A sse B tem razões positivas, não-testemunhais, suficientemente boas para aceitar o testemunho de A. Ou seja, a garantia testemunhal é redutível à garantia da percepção, memória, e inferência indutiva.

Faria (2017) ainda distingue duas formas diferentes de reducionismo de testemunho. A primeira, chama-se reducionismo global, pois estabelece que os ouvintes de testemunho devem possuir razões positivas (não-testemunhais, para evitar a circularidade) para acreditar que ele é, em geral, uma fonte fiável de crença. A segunda, chama-se reducionismo local, pois estabelece que os ouvintes devem possuir razões positivas (não-testemunhais) para acreditar no testemunho em particular e, portanto, a justificação de cada relato seria redutível às instâncias da percepção sensorial, memória e inferência indutiva.

De acordo com a premissa (2) do nosso (AECM), a evidência testemunhal em favor de um milagre M deve ser sempre dosada com a evidência indutiva que dispomos previamente em favor de ¬M. Ou seja, o estatuto epistêmico do testemunho em favor do milagre deve ser, em última análise, redutível à nossa percepção sensorial, à memória e à inferência indutiva. É preciso que o ouvinte tenha razões positivas (não-testemunhais) de em favor do testemunho do falante.

É possível criticar a premissa (2) do (AECM) atacando a teoria reducionista do testemunho, e apresentando em seu lugar uma concepção não-reducionista ou híbrida do testemunho, e assim o argumento de Hume seria seriamente comprometido.