• Nenhum resultado encontrado

O Governismo Platônico de Michael Tooley

4 QUAL TEORIA DAS LEIS É COMPATÍVEL COM O (AMCM) DE HUME?

4.4 O Governismo Platônico de Michael Tooley

No eminente artigo “The Nature of Laws” (1977), o filósofo Michael Tooley defende que as leis da natureza existem independentemente das coisas que as instanciam (realismo das leis), e que elas são relações de segunda ordem entre universais de primeira ordem. Os universais, para ele, são de natureza transcendente (algo semelhante à teoria das ideias de Platão), e as relações entre esses universais são, assim como na teoria imanentista de Armstrong, de natureza contingente, mas alegadamente capazes de explicar as regularidades, pois de N(F,G) podemos inferir ∀x(Fx → Gx).

Há, no entanto, um tecnicismo na teoria de Tooley que a difere sobremodo da teoria de Armstrong, que a relação nômica entre os universais é uma função de construção (construction funcion). Ora, em uma lei funcional, lembremo-nos, tal como a segunda lei de Newton, onde temos F = m.a (em que F representa a força aplicada sobre um objeto, m a massa do objeto e a a aceleração do objeto), sempre o valor de uma variável da lei irá variar em função de outras variáveis. Assim, apesar de haver um conjunto infinito de possíveis valores exemplificáveis pela função, a lei natural é suposta como verdadeira para todos eles. Com efeito, Tooley nos fala de funções de construção, pois elas mapeariam grupos de universais a certas proposições, que teriam como valor as proposições às quais os universais são mapeados. Por exemplo, digamos que K(F,G) é uma função de construção na medida em que mapeia os universais F e G a proposições da forma ∀x (Fx → Gx), que teriam como valor justamente essa proposição. Contudo, existem diferentes funções de construção para os mesmos universais F e G, por exemplo: L(F,G) para ∀x (Fx → ¬Gx), que é uma lei de exclusão, e R (F,G) para ∀x(Fx → (Gx v Hx)), que é uma lei disjuntiva. Para Tooley, as funções de construção (K, L, R) seriam responsáveis por conectar universais a proposições, e tal conexão dispensaria qualquer elemento modal de necessitação – o que seria uma vantagem da sua teoria sobre as demais, segundo ele.

No entanto, Cid (2016, p. 61) argumenta que há uma falta de fundamento ontológico para as funções de construção. Tooley não tem como apresentar uma ontologia informativa das suas funções se dispensar o aspecto modal de necessitação entre universais, tal como consta, por exemplo, na teoria de Armstrong. Não adianta mudar o nome “necessitação” por “função de construção” e continuar mantendo as mesmas características da necessitação. Poder falar das leis em termos não-modais não implica que possamos fundamentá-las da mesma forma. À partida, não é nenhum pouco claro o que seriam, na realidade, as funções, mapeamentos e propriedades. Falar de leis de segunda ordem como funções de construção é problemático, pois

já supõe que as leis constituem-se de funções, e que conectam propriedades a proposições. No entanto, propriedades estão no mundo extralinguístico, e proposições, ao menos prima facie, estão no mundo “dos significados”, de modo que não sabemos, no final das coisas, como uma função poderia fazer tal coisa.

Quanto às propriedades lógicas das leis, Tooley, ao contrário de Armstrong, pensa que elas contrapõem. O problema disso, no entanto, é que se N(F,G) contrapõe, então temos que aceitar universais negativos, como N(¬G,¬F). A saída, uma vez que Tooley não aceita universais negativos, seria argumentar que, dado que as leis são funções de construção, então elas mapeiam universais positivos a proposições, que possuem, estas sim, as formas mais variadas, inclusive a forma ∀x(¬Gx →¬Fx). Mas há um problema com tal argumento: as leis que são contraposições, como as funções R(F,G) e S(F,G), mapeadas a proposições diferentes, como ∀x(Fx →Gx) e ∀x(¬Gx →¬Fx), teriam os mesmos confirmadores. Ora, mas se as leis contrapõem e fazem seus equivalentes lógicos serem as mesmas leis, é de se estranhar que tenham confirmadores diferentes.

Outra característica lógica das leis para Tooley é que se as leis equivalentes seriam as mesmas leis, segue-se que elas são transitivas: se é uma lei que N(F,G) e que N(G,H), então é uma lei que N(F,H). Contudo, pensar as leis como transitivas gera o problema, outrora já mencionado, da sobredeterminação causal, isto é: quando duas causas distintas causam completamente, em uma mesma ordem causal, a mesma coisa.

O maior distintivo, porém, da teoria de Tooley é o seu transcendentalismo das propriedades. Para escapar ao problema das leis não instanciadas, Tooley pensa que as leis só podem ter como veridadores relações entre universais platônicos, isto é, universais que são independentes das suas instâncias. Assim, os enunciados das leis não podem ser sobre relações de particulares, nem sobre universais imanentes, mas sobre leis transcendentes. E para demonstrar que apenas leis transcendentes podem ser os veridadores de certos contrafactuais sobre propriedades não instanciadas, Tooley propõe o caso da Partícula Fundamental e o caso da Propriedade Emergente (1977, pp. 669, 685).

Em relação ao primeiro caso, Tooley pede que imaginemos um mundo que contenha apenas dez tipos diferentes de partículas fundamentais. Considerando apenas as interações entre duas partículas, imaginemos que há 55 possibilidades de tipos de interação entre elas. Imaginemos, ademais, que, do total, 54 interações possíveis foram detidamente estudadas, e descobriu-se para cada uma dessas interações uma lei da natureza, e nenhuma delas estão inter- relacionadas de qualquer forma. Suponhamos, em seguida, que o mundo é determinístico, de

modo que seja impossível as duas partículas interagirem entre si em qualquer momento do tempo. Ou seja, temos uma situação em que 55 tipos de interações são possíveis entre duas partículas, com 54 leis conhecidas para 54 tipos de interações. Tooley conclui que mesmo que as duas partículas fundamentais nunca interagissem (dado o determinismo), ainda assim seria razoável acreditar que a sua possível interação deve ser governada por alguma lei natural não instanciada e não derivada, que contenha os universais dos tipos de estados de coisas que resultam da interação ou não dessas partículas.

E em relação ao segundo caso, Tooley pede para começarmos supondo que o materialismo seja falso e que exista uma propriedade (não física) de ser uma experiência da variedade vermelha. Pede, ademais, para imaginarmos que em virtude de um certo arranjo diferente no universo, não existisse lugar para poder acomodar a vida. Neste caso, o universo não conteria nenhum organismo senciente, caso em que não teria contido a experiência da cor vermelha. Segundo Tooley, parece que ainda assim seria verdade que se o universo tivesse tido um arranjo diferente, de modo que contivesse organismos sencientes, então haveriam experiências da variedade vermelha. Mas o que faria essa contrafactual verdadeira? Em parte – responde Tooley –, seria uma lei psicofísica ligando estados físicos complexos a experiências da variedade vermelha. Ora, se assumirmos que as leis da natureza são relações entre universais, então a não ser que a propriedade de ser uma experiência da variedade vermelha exista em tal mundo, não poderia ser uma lei da natureza no mesmo mundo que sempre que um sistema físico complexo está em certo estado F, então há a experiência da variedade vermelha G. Portanto, por mais que as propriedades F e G nunca entrem em contato, basta apenas que isso seja possível para ser racionalmente aceitável que há uma lei que governa a emergência de uma propriedade simples da conjunção F e G, e a forma dessa lei seria N(FG, K), sendo “K” a nova propriedade emergente.

O que os casos de Tooley nos mostram? Em primeiro lugar, nos mostram que há situações possíveis e não realizadas em que parece ser racional crermos que há leis sobre universais não instanciados – contrariamente à teoria imanentista de Armstrong, segundo a qual algo não instanciado não pode ser uma propriedade universal. Se os casos de Tooley são realmente plausíveis, a única saída que Armstrong encontrou foi tentar mostrar que toda lei não instanciada pode ser reduzida a uma lei instanciada, postulando uma lei de ordem superior para explicar uma lei de ordem inferior sobre interações fundamentais. Consequentemente, uma contrafactual sobre propriedades não instanciados seria verdadeira em virtude de uma lei de ordem superior sobre uma lei de ordem inferior, que nos permitiria dizer que uma lei existiria (lei genérica), caso estivessem instanciadas certas propriedades. O problema, porém, é que

Armstrong não consegue mostrar como ele pode deduzir qual lei específica seria o caso, mas não a lei genérica.

Em segundo lugar, os casos de Tooley, se plausíveis, nos mostram que fatos sobre particulares não podem ser veridadores de enunciados nomológicos. No disposicionalismo, por exemplo, as disposições dos particulares são disposições dos particulares concretos, que, por sua vez, são os veridadores das leis. Como os enunciados sobre as disposições não atualizadas deverão ser feitos verdadeiros por algo, e uma vez que esse algo não poderá ser os próprios particulares e suas disposições, pois os tais são tidos como básicos, então parece que os fatos sobre particulares não podem servir como veridadores de leis naturais – o mesmo problema se impõe contra o imanentismo de Armstrong, pelas razões que já aludimos na seção anterior. Ademais, quanto ao regularismo, este sequer consegue distinguir regularidades acidentais e leis da natureza. Enquanto isso, Tooley pensa que os enunciados de leis podem ser verdadeiros por meio das relações de funções de construção entre universais transcendentes, e as regularidades acidentais verdadeiras em virtude de relações entre particulares.

Contudo, se olharmos atentamente, veremos que os argumentos de Tooley nos mostra, no melhor dos casos, que é possível haver universais não instanciados. Mas, para além da mera possibilidade, será que há universais não instanciados? Bem, para chegar a tal conclusão, bastaria apresentar leis naturais irredutíveis às regularidades observadas, o que Tooley não faz. Ele, porém, observa que os cientistas nos dizem que se o universo tivesse tido certo arranjo diferente, então jamais teria havido a vida; portanto, parece que certos universais não instanciados em qualquer momento do tempo são pressupostos pela ciência como existindo atualmente. Em suma, as leis causais que agora regem as contrafactuais só podem ser descritas

adequadamente, segundo Tooley, se for por meio de leis transcendentes. Há, por fim, outro problema na teoria de Tooley, a saber, que a relação entre os

universais transcendentes estabelece apenas uma necessitação contingente. Por exemplo, imaginemos que há dois mundos possíveis, e em ambos há as intâncias de F e G. Se as leis naturais implicam apenas relações de necessitação contingentes, então em um mundo possível acessível a partir do nosso, se temos uma lei que nos diz que todo F é G, em outro mundo, também acessível a partir do nosso, haverá uma lei que implica que nem todo F é G. Assim, parece que a teoria do Tooley não possui a força contrafactual que as leis científicas alegadamente possuem, pois, se estivermos perante uma situação onde um objeto particular não é F, não poderemos, com certeza, alegar, por meio de uma lei científica, que se ele fosse um F, então seria um G. É o problema da falta de fundamentação da contrafactualidade das leis. Mas haverá alguma saída para a teoria de Tooley? Conforme mostraremos na próxima seção,

Rodrigo Cid apresenta um novo governismo platônico das leis, que pretensamente teria todas as vantagens da teoria de Tooley, mas sem sofrer dos mesmos problemas.

4.4.1 Sobre Sua Compatibilidade Com o (AMCM) de Hume

Como vimos, Michael Tooley defende que as leis da natureza existem independentemente das coisas que as instanciam, como relações universais (de segunda ordem) de necessitação entre universais de primeira ordem. Os universais de ordem inferior são de natureza transcendente, caso em que as relações universais entre tais universais são também de natureza transcendente, sendo a relação de necessitação metafisicamente contingente. Tooley argumenta no sentido de mostrar que é possível haver universais não instanciados, mas para demonstrar que realmente há tais universais, seria preciso provar que há, de modo atual, leis da natureza verdadeiras não instanciadas, o que Tooley não faz, senão que apenas aponta que algumas leis científicas parecem pressupor certos universais não instanciados em qualquer momento do tempo, e assim conclui que as leis causais que agora regem as contrafactuais só poderiam ser descritas adequadamente de modo transcendente. Com efeito, segundo a teoria de Tooley, a relação entre os universais transcendentes estabelece apenas uma necessitação contingente, à semelhança da necessitação contingente da teoria de Armstrong, pelo que sofre do mesmo problema desta, a saber, se as leis implicam apenas relações contingentes, então em um mundo possível acessível a partir do nosso, temos uma lei que nos diz que todo F é G, e, em outro mundo, também acessível a partir do nosso, temos que não é uma lei que todo F é G. Portanto, o governismo platônico de Tooley não possui a força contrafactual que as leis científicas alegadamente possuem, visto que as leis de Tooley não tornam algo necessário ou impossível no sentido que importa: em todos os mundos realmente possíveis. Assim sendo, o governismo de Tooley não é compatível com o (AMCM) de Hume. Em continuidade, passaremos a investigar a teoria das leis de Rodrigo Cid.