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O Que Significa Dizer Que Uma Lei da Natureza é Inviolável?

5 ANÁLISE DOS ARGUMENTOS DE HUME CONTRA OS MILAGRES

5.1 Análise do Argumento Metafísico Contra os Milagres (AMCM)

5.1.1 O Que Significa Dizer Que Uma Lei da Natureza é Inviolável?

Conforme a nossa interpretação estabelecida no ponto 3, Hume entende que há uma “condição de violação” para que um evento seja um milagre, e tal condição envolve três exigências, quais sejam:

a) Que as leis da natureza, dada a natureza intrínseca do mundo, sejam realmente invioláveis;

b) Que a ocorrência de um milagre implique necessariamente na violação de uma lei da natureza;

Conforme a definição de Hume para milagre, este deve ter por causa um agente sobrenatural; avançaremos, no entanto, e diremos que tal agente deve ser Deus. Consideramos, ademais, que Hume erra ao pressupor que um milagre deve, necessariamente, envolver a violação de uma lei natural. Pois bem, explicaremos antes o que significa dizer que as leis da natureza são invioláveis.

No ponto 2 fizemos um estudo pormenorizado e comparativo das modalidades. Vimos que as nossas crenças nas necessidades metafísicas são melhor explicadas pela existência das próprias necessidades metafísicas. Ou, de modo mais amplo, que a existência da modalidade metafísica (possibilidade e necessidade metafísicas) é o que melhor explica a nossa intuição quanto à existência da modalidade absoluta (ou seja, que tudo aquilo que é metafisicamente possível [ou necessário], é absolutamente possível [ou necessário]). Mas o que são as necessidades metafísicas? A partir do contraste com as modalidades lógica e natural, vimos que a modalidade metafísica parecer ser a única que pode dar conta da nossa intuição de que há uma modalidade absoluta, pois com ela podemos captar aquilo que há de mais essencial quanto à natureza intrínseca das coisas mesmas; algo, por exemplo, que as leis lógicas e físicas não conseguem fazer.

A necessidade metafísica é absoluta no seguinte sentido: se algo é metafisicamente necessário, então é necessário. Ou seja, a necessidade metafísica é aquilo que deve ser o caso em todos os mundos realmente possíveis. Vê-se, portanto, que a modalidade metafísica distingue-se das modalidades lógica e natural, nos seguintes aspectos: não é tão ampla como a possibilidade lógica, nem tão restrita como a necessidade física, pois de algo ser logicamente possível, não segue-se que seja metafisicamente possível, e de algo ser fisicamente necessário, não segue-se que seja metafisicamente necessário. O que estamos a dizer torna-se mais óbvio quando notamos que às vezes queremos saber, de algo que é naturalmente necessário, se é realmente necessário; como, por exemplo, quando sabemos que é naturalmente necessário que nenhum objeto viaje mais rápido do que a luz, mas queremos saber se disso (da necessidade natural) se segue que seja realmente necessário. Ou seja, não queremos nos restringir apenas às leis da natureza vigentes no nosso mundo atual, mas saber sobre aquilo que é absolutamente impossível, sem mais qualificações. Por outro lado, às vezes queremos saber, de algo logicamente contingente, se é realmente contingente, como, por exemplo, quando sabemos que é logicamente contingente que haja algum objeto que viaje mais rápido do que a luz, mas queremos saber se disso (ou seja, do fato de algo não ser logicamente necessário) se segue que seja realmente contingente. Com a pergunta, portanto, não queremos nos restringir às leis da

lógica, mas saber sobre aquilo que é real e absolutamente contingente na realidade, sem mais qualificações. Assim sendo, se quisermos saber se algo é uma necessidade metafísica, independente se é uma necessidade natural ou uma contingência lógica, o que queremos realmente saber é se algo é irrestritamente possível ou impossível. Pois bem, agora podemos voltar às leis.

Se quisermos saber se as leis da natureza são realmente necessárias ou contingentes, então já estamos no campo da modalidade metafísica – e este é o campo próprio e adequado para entendermos o problema sobre se as leis da natureza são necessárias ou contingentes. Sem a modalidade metafísica, sequer há sentido na pergunta que fizemos, pois todos sabemos que as leis da física (tomando a física como mais fundamental que a biologia e a química) são fisicamente necessárias – aliás, se são verdades da física, não poderiam não ser fisicamente necessárias –, e também sabemos que as leis da física são logicamente contingentes, pois, se não contrariam qualquer lei da lógica, então são logicamente possíveis. Assim sendo, só com a modalidade metafísica e, consequentemente com a necessidade metafísica, podemos perguntar se as leis da física são realmente necessárias, isto é, se as leis da física não poderiam ter sido diferentes. Pois bem, é aqui que está o sentido que é fundamento da ideia de impossibilidade de violação de uma lei natural. Contudo, está claro, desde já, que relacionada à admissão da existência da modalidade metafísica está a crença de que existem verdades empíricas necessárias, que é justamente a premissa fundamental do essencialismo - incompatível, insista- se, com a metafísica de Hume.

Recordemos que as leis da natureza não são verdades empíricas do tipo “água é H2O”.

A proposição que tal frase expressa é apenas uma verdade essencialista, que diz respeito à identidade da água. Pode-se falar de ela, no entanto, como uma “lei interna”, tal como Cid concebe (2016, p. 44). No entanto, uma “lei interna”, segundo Cid, nada mais é do que uma verdade na forma a=b, ou seja, trata-se de uma identificação teórica; mas leis naturais de que estamos falando envolvem uma relação de necessitação N, não apenas uma simples instanciação da verdade lógica da identidade (A=A).

Com efeito, deixando de lado as teorias regularistas (incluindo a de Lewis), bem como a teoria disposicionalista de Mumford, a imanentista de Armstrong e o governismo de Tooley, examinaremos aqui o problema da necessidade das leis apenas com base naquelas teorias que são compatíveis com o (AMCM) de Hume, a saber: o Novo Governismo Platônico de Cid e a Nova Teoria Aristotélico-Tomista das Leis, uma vez que, para estas, as leis naturais são relações de necessitação metafisicamente necessárias entre universais de primeira ordem, caso em que possuem a força contrafactual pressuposta no argumento de Hume.

As leis da natureza, conforme as duas teorias acima mencionadas, estabelecem uma relação de necessitação, N, entre duas propriedades (ou universais) de primeira ordem, de modo que as instâncias das leis naturais, de acordo com tais perspectivas, são as relações causais (por exemplo, o sal se dissolvendo em água), ao contrário das chamadas “leis internas”, cujas instâncias são (para permanecer no exemplo) as porções particulares de água. Um evento causal (que não é ou implique uma contradição lógica) só pode ser realmente impossível (isto é, com uma força contrafactual de modo a não existir em nenhum mundo realmente ou metafisicamente possível) se ele for contrário à alguma lei natural metafisicamente necessária. Ou seja, quando um cientista diz que, em certas condições, um objeto não pode sair da inércia e mover-se de modo a ultrapassar a velocidade da luz, se ele pressupõe que tal coisa é realmente impossível, então ele deve admitir que tal lei é metafisicamente necessária. Pressupor que as verdadeiras leis naturais se mantém apenas no nosso mundo, ou naqueles em que há as instâncias das leis, não parece suportar a força contrafactual suposta nas leis, conforme já analisamos no Cap. 3 desta dissertação. Aliás, deveria ser algo óbvio para todos o seguinte: se dissermos que um fenômeno ou evento é naturalmente impossível e depois dissermos que a lei que o torna naturalmente impossível é metafisicamente contingente, estaremos tão somente dizendo que a lei e, portanto, o fenômeno é apenas contingente, no sentido mais preciso da palavra. Portanto, dizer que uma lei da natureza é algo inviolável é dizer, em outras palavras, que a realidade repugna que haja tal evento. Assim, em outros termos, que não há mundo realmente possível em que ocorre um evento que é uma violação de uma lei natural metafisicamente necessária.

Pelo dito, Hume até teria razão: se os milagres acarretam, necessariamente, a violação de alguma lei natural (metafisicamente necessária), então milagres são, por definição, impossíveis. Ademais, diga-se que algo que é metafisicamente impossível é impossível até mesmo para um ser omnipotente, como Deus. E talvez seja por isso que Hume não se dá ao trabalho de argumentar contra a existência de Deus, para com isso negar a possibilidade dos milagres. Hume, na verdade, parece que pensou assim: se milagres são metafisicamente impossíveis, exista Deus ou não, eles permanecem sendo absolutamente impossíveis, e ponto. Pois bem, se Hume pensou assim, então ele tinha razão. Contudo, basta reparar que enquanto Hume acerta no aspecto modal, erra quanto ao entendimento do que um milagre é, pois, conforme veremos, não nos parece necessário que os milagres, concebidos de modo adequado, envolvam violações de leis da natureza.

5.1.2 É Necessário Que os Milagres Sejam Violações de Leis Naturais?