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3 OS ARGUMENTOS DE DAVID HUME CONTRA OS MILAGRES

3.1 Interpretações Contemporâneas ao Ensaio “Dos Milagres” de Hume

3.1.1 Robert J Fogelin

No artigo “What Hume Actually Said About Miracles” (1990), Robert J. Fogelin, baseando-se em uma investigação minuciosa acerca das opiniões precedentes acerca dos argumentos de Hume contra os milagres da seção X da Investigação, começa mencionando o que entende ser a interpretação tradicional desses argumentos, que consiste em duas teses:

(1) Hume não apresenta um argumento a priori contra a possibilidade de milagres; (2) Hume apresenta um argumento a priori contra a racionalidade da crença em milagres por meio do testemunho.

Contra a tese (1), Fogelin argumenta que Hume tem um argumento a priori contra a possibilidade de milagres na primeira parte do seu ensaio, pois, argumenta Hume: a falsidade de um testemunho de milagre não pode ser mais miraculosa do que o fato que pretende estabelecer (EHU, 10, §13). Ou seja, a falsidade do testemunho de um milagre jamais poderá ser algo mais miraculoso do que o fato que pretende estabelecer, pois a evidência contrária ao milagre baseia-se nas leis invioláveis da natureza (EHU, 10, §11).

Com efeito, Fogelin aponta para uma afirmação de Hume, que diz (EHU, 10, §11) “[...] a prova contra um milagre, pela própria natureza do fato, é tão cabal quanto qualquer argumento imaginável derivado da experiência”, e destaca que a “prova” a que Hume se refere advém das leis da natureza (ou “experiência uniforme”). Trata-se, portanto, conforme o próprio Hume diz, de “uma prova direta e cabal contra a existência de qualquer milagre (“against the existence of any miracle”), pela própria natureza do fato” (EHU, 10, §11). Portanto, com base nesta citação, Fogelin entende há uma prova direta e completa referente a natureza do fato miraculoso, e

conclui o seu artigo de (1990) com a tese de que Hume está argumentando contra a possibilidade de milagres.

O argumento de Hume, na visão de Fogelin, é o seguinte: uma vez que a natureza do mundo é tal que as suas leis não podem ser violadas, segue-se que as evidências (totais) sempre estarão ao lado das leis da natureza e, consequentemente, contra os milagres (que são violações dessas leis), e conclui (1990, p. 82): “[...] agora é possível - usando apenas citações do texto imediato - mostrar que, ao contrário da interpretação tradicional, Hume apresenta um argumento a priori contra a existência de milagres”.

Ademais, Fogelin também entende que Hume, com base no seu argumento contra a possibilidade dos milagres, salta para uma conclusão epistêmica, a saber: que o milagre não pode jamais ser crível, pois, para que o fosse, precisaria sê-lo com base em uma prova superior às provas em favor das leis da natureza. Portanto, Fogelin concorda, em certo sentido, com a tese (2) da interpretação tradicional. Assim, no seu artigo de (1990), Fogelin nega a tese (1) da leitura tradicional e afirma a (2), mas conectando-a com o argumento contra a possibilidade de milagres.

No que diz respeito à segunda parte do ensaio, Fogelin diz que Hume usa um argumento simplesmente retórico ou hipotético contra o testemunho de milagres, considerando apenas aquelas consequências que poderíamos esperar se as evidências em favor dos milagres fossem superiores às evidências em favor das leis da natureza – hipótese essa, diga-se, rejeitada pelo próprio Hume na primeira parte do seu ensaio.

Uma vez tendo assumido que não pode haver evidência suficiente favorável que estabeleça o fato miraculoso, Hume, na segunda parte do seu ensaio, investiga apenas a força do testemunho em favor dos supostos milagres a partir dos méritos do próprio testemunho e da testemunha, sem atentar ao fato miraculoso em si mesmo.

Para Fogelin, Hume está argumentando de maneira apenas hipotética, pois põe de lado a prova das leis da natureza para investigar a procedência do testemunho, isto é, põe de lado a questão metafísica para tratar da questão epistêmica. Hume conclui, por conseguinte, que o testemunho, tomado em si mesmo, não pode estabelecer o milagre. Portanto, é como se Hume estivesse concedendo, apenas pelo argumento, que seria possível um testemunho satisfazer as exigências para tornar-se uma prova em favor do milagre; mas, neste caso hipotético (que, diga- se, seria ainda assim contrário ao nosso melhor conhecimento factual), bastaria embutir o argumento contra a possibilidade de milagres a partir da inviolabilidade das leis da natureza, e assim teríamos uma evidência imbatível contra qualquer testemunho.

No entanto, em oposição ao seu artigo de 1990, Fogelin muda de ideia, e agora argumenta na sua obra “Defense of Hume on Miracles” (2003) que é incorreta a intepretação que Hume teria argumentado que a priori nenhum testemunho poderia ser suficiente para estabelecer um milagre - ou seja, Fogelin passa a discordar da tese (2) da leitura tradicional -, além de dizer que é incorreta a ideia de que Hume teria apresentado, na parte 1 do seu ensaio, um argumento a priori contra a possibilidade de milagres - concordando, portanto, com a tese (1) da leitura tradicional. Ou seja, Fogelin acabou mudando completamente quanto à sua visão da interpretação tradicional.

Na sua nova interpretação, Fogelin entende que existem dois métodos de avaliação do testemunho humano em Hume. O primeiro é chamado por ele de “método direto”, pois trata das qualidades intrínsecas ao testemunho, quando tomado em si mesmo; o segundo método é o “método indireto”, pois trata da probabilidade de um evento ter ocorrido dada a natureza intrínseca do fato, sem atentar para o testemunho acerca dele.

Quanto ao “método direto”, Fogelin acredita que Hume pretende estabelecer a força evidencial do testemunho humano, sopesando seus pontos fracos e fortes, que são basicamente os seguintes (2003, p. 8): 1. Se as testemunhas concordam umas com as outras, em vez de se contradizerem69; 2. Se são muitas, não poucas; 3. Se são de caráter indubitável, mais do que dubitável; 4. Se são de partidos desinteressados, ao invés de interessados; 5. Se testemunham moderadamente, com tom de confiança, ao invés de excitação ou demasiada violência e confiança. Tais situações são os “marcos de excelência”, e quando um testemunho é instância desses marcos, temos o indício de que ele é provavelmente verdadeiro.

Em relação ao “método indireto”, diz Fogelin que este pode representar uma prova em virtude da altíssima improbabilidade intrínseca de que um evento ocorra. Assim, da mesma forma que um testemunho irrepreensível pode fornecer forte apoio para a ocorrência de um acontecimento improvável, a altíssima improbabilidade pelo método indireto da ocorrência de um evento, quando tomado em si mesmo, pode fornecer um forte suporte para a crença na não ocorrência desse evento, contra o testemunho favorável.

À guisa de conclusão, a ideia central de Fogelin é que o principal propósito de Hume na primeira parte do seu ensaio é investigar o conflito entre o “método direto” e o “método indireto” de avaliação do testemunho, ou seja, investigar o confronto de provas contra provas.

69 Em casos de relatos contrários, Hume diz que geralmente hesitamos assentir a qualquer um dos lados da história,

pois é racional contrapor as circunstâncias à luz da nossa experiência passada, e quando identificamos uma superioridade de um dos lados, nos inclinamos para ele. Porém, neste caso, há também um decréscimo de confiança proporcional ao grau de força do testemunho antagônico. Veja-se em (EHU, 10, §6).

Portanto, seria sem sentido pressupor, como ele mesmo fez em no artigo de 1990, que Hume teria um argumento a priori contra a possibilidade de milagres.

De acordo com sua nova leitura, a questão é a seguinte: quando notamos que as situações beneficiam ou favorecem o testemunho, tomando em si mesmo, podemos considerar que há uma prova (pelo método direto) de que o evento ocorreu; mas, por outro lado, se considerarmos o evento relatado em si mesmo, isto é, pela sua própria natureza improvável do fato, podemos considerar que há uma prova (pelo método indireto) de que o evento não ocorreu, ou assim vice-versa. Portanto, o que fazer quando um confronto entre provas diretas e indiretas ocorre? Aliás, o que fazer quando o evento em causa é algo como o presidente Bush andando sem afundar sobre a superfície da água, ou seja, quando trata-se de um milagre?

Segundo Fogelin, Hume concede, por amor do argumento, que pode haver uma circunstância em que o testemunho miraculoso avaliado pelo método direto seja equivalente a uma prova de que o evento aconteceu; mas, que ao mesmo tempo o método indireto forneça um prova de que ele não poderia ter ocorrido. Trata-se, portanto, de um caso em que há um testemunho crível de um milagre, mas uma experiência uniforme contrária ao milagre. Assim, em tais circunstâncias, o defensor do milagre terá que formidavelmente mostrar que o argumento extraído da qualidade interna do testemunho é capaz de solapar ou vencer o contra- argumento baseado na improbabilidade intrínseca do evento (pelo método indireto).

Fogelin, com isso, está pensando na afirmação de Hume de que nenhum testemunho em favor de um milagre de qualquer espécie jamais chegou a torná-lo provável, nem tão pouco a constituir uma prova da sua ocorrência, pois a experiência (na qual se funda o testemunho) nos assegura da inviolabilidade das leis da natureza (EHU, 10, §35):

Assim, no todo, parece que nenhum testemunho de qualquer milagre já chegou a torná-lo provável, muito menos de constituir uma prova; e que, mesmo supondo que se tratasse de uma prova, seria contestado por outra prova, derivada da própria natureza do fato que ele se esforça para estabelecer. É apenas da experiência que provém a autoridade do testemunho humano; e é essa mesma experiência que nos assegura as leis da natureza. Quando, portanto, esses dois tipos de experiência são contrários, não temos mais nada a fazer a não ser subtrair um do outro, e abraçar uma opinião, seja de um lado ou de outro, com a confiança que surge do restante. Mas, de acordo com o princípio aqui explicado, essa subtração, no que diz respeito a todas as religiões populares, equivale a uma aniquilação completa; e, portanto, podemos estabelecer como uma máxima, que nenhum testemunho humano pode ter tanta força a ponto de provar um milagre, e torná-lo um fundamento justo para qualquer sistema de religião.

Na passagem citada, Hume parece privilegiar o “método indireto” sobre o “método direto”, uma vez que o testemunho do milagre, por melhor que seja, sempre será contestado por uma prova definitiva, que deriva da nossa experiência, a saber: as leis invioláveis da natureza.

Portanto, o que dizer da tal possibilidade do testemunho ser estabelecido pelo “método direto”? Como vimos, Fogelin pensa que a disputa entre o “método direto” e o “método indireto” nem sempre precisa favorecer o “método indireto”. Por exemplo, de acordo com Fogelin (2003, p. 16-17), se não houver uma boa razão para dar preferência a um sobre o outro (direto ou indireto), então eles se anulam mutualmente. Mas se ocorre uma mútua anulação, existe uma tendência da natureza humana para o escrutínio, que fará com que o sujeito busque por razões que superem a mútua anulação, e tais razões extras podem advir do “método direto” ou do “indireto”.

Para fortalecer o seu argumento favorável ao poder de prova pelo “método direto”, Fogelin insistirá que a afirmação de Hume de que nenhum testemunho humano pode ter força suficiente a ponto de provar um milagre (EHU, 10, §35) se refere especificamente ao testemunho de um milagre que pretende ser fundamento de algum sistema religioso, mas não exclui a possibilidade a priori de testemunhos estabelecerem a ocorrência de um milagres não- religiosos. Uma passagem crucial em favor da interpretação de Fogelin - que, segundo ele, tem sido muito negligenciada - é justamente o parágrafo 36, no qual Hume diz expressamente que “admito que, em outros casos (casos que não pretendem fundamentar um sistema religioso, Fogelin destaca), podem existir milagres ou violações do curso habitual da natureza, de um tipo capaz de admitir prova por meio do testemunho humano (isto é, pelo ‘método direto’)”70.

Hume elabora um exemplo hipotético de uma escuridão de oito dias, ocorrida no dia 1º de Janeiro de 1600, em toda a Terra. Segundo ele, se todos os relatos da história concordassem sobre tal fenômeno, e muitas pessoas de vários lugares diferentes do mundo tivessem testemunhado unanimemente o fenômeno (e, obviamente, satisfizessem os “marcos de excelência” do testemunho), então caberia aos filósofos não pôr o fato em dúvida, mas admiti- lo como verdadeiro e procurar as suas causas. Para Fogelin, portanto, está claro, com base no exemplo mencionado, que Hume reconhece que o testemunho em si mesmo (pelo “método direto”) pode superar o argumento pelo “método indireto”71.

70 Os textos entre parênteses são nossos.

71 Tão importante quanto o parágrafo 36 da Investigação, é o parágrafo 37. Neste, Hume apresenta um caso curioso,

a saber: imagine-se que a rainha Elizabeth, após a sua morte, e depois de haver permanecido sepultada por um mês inteiro, reapareça viva à vista do seu médico e de toda a corte real que a viram sendo sepultada; voltando, inclusive, a governar a Inglaterra por mais um período de três anos. Para Hume, esse caso, no que diz respeito à evidência testemunhal, está em pé de igualdade com o caso da escuridão de oito dias sobre a face da Terra, mas a reação mais plausível perante um relato como este seria negar a morte da rainha, pois uma pessoa que pense de maneira racional jamais estaria disposta a aceitar uma violação tão patente das leis da natureza. Portanto, mesmo sob os mesmos suportes evidenciais favoráveis (com a mesma base pelo “método direto”), Hume insiste que, dadas as leis da natureza, o correto seria negar a morte da rainha, visto que não se pode negar, por exemplo, que ela foi sepultada e que depois reapareceu viva. No parágrafo 38, Hume acrescenta: se o caso da Rainha estivesse ligado a algum sistema religioso, automaticamente ele se constituiria uma fraude, em razão da inserção de uma divindade

Em suma, Fogelin entende que Hume tem quatro propósitos a alcançar na segunda parte do seu ensaio, a saber (2003, p.20-21):

(1) Estabelecer que nenhum testemunho em favor de milagres jamais passou (em concreto) pelo chamado “método direto”.

(2) Oferecer um relato psicológico da aceitação de relatos de milagres, mostrando como a “paixão da surpresa e admiração” (EHU, 10, §16) decorrente de relatos de milagres pode dominar o nosso bom senso.

(3) Apontar que relatos de milagres “são observados principalmente em abundância entre nações ignorantes e bárbaras” (EHU, 10, §20).

(4) E destacar o desacordo entre as religiões que confiam em milagres como fundamento dos seus sistemas.