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2 PONTUALIZAÇÕES SOBRE A EPISTEMOLOGIA E A METAFÍSICA DE

2.2 A Epistemologia e a Metafísica de Hume

2.2.2 O Empirismo de Hume

Apenas por meios dos sentidos não conhecemos tudo o que podemos conhecer; por vezes, temos de raciocinar. A percepção dos sentidos nos dá acesso ao modo como o mundo é, mas mesmo que soubéssemos absolutamente tudo sobre o modo como o mundo é - e não sabemos -, não saberíamos tudo sobre o mundo, pois faltaria saber como o mundo tem de ser24.

24 A ideia é que existe, para além do modo como as coisas são, um modo como elas devem ser, e consequentemente

um modo como as coisas não podem ser. Hume entende que se há um modo como as coisas devem ser, este modo deve-se às leis da lógica, que, por sua vez, devem-se à linguagem. Há, no entanto, uma forma diferente de ver as

Ora, para saber como o mundo tem de ser, ou até mesmo se há um modo como o mundo tem de ser, precisamos raciocinar filosoficamente. Hume, entretanto, acreditava que o único conhecimento substancial da realidade é o conhecimento empírico, e isto com base em uma série de argumentos filosóficos que estão no contexto do chamado “problema do a priori”, que abordaremos a partir de agora.

Uma ideia errada relativamente ao problema do a priori25 é a de que devemos classificar os filósofos como empiristas ou racionalistas com base nas suas posições relativamente ao problema da origem do conhecimento. Contudo, tal ideia é enganadora, pois não é tanto a origem do nosso conhecimento que está em causa, mas o processo de justificação último dele26. Por exemplo, tanto racionalistas como empiristas admitem que o processo de aquisição do conhecimento envolve um aspecto inferencial e um aspecto não inferencial, dependendo da verdade que é conhecida. Por exemplo, um filósofo empirista pode admitir que a justificação do seu conhecimento da matemática acontece de maneira a priori: conhecemos a sua verdade não pela experiência, mas pelo pensamento puro. Em contraste, um filósofo racionalista, tal como Descartes, pode admitir que a justificação das nossas crenças sobre o mundo exterior acontece de maneira a posteriori: conhecemos a sua verdade pela percepção dos sentidos. No entanto, o que está em causa não são as crenças simples, mas as fundacionais – aquelas que estão na base de todas as cadeias de justificação.

Um racionalista pode admitir que a fonte primária de informação empírica é a experiência sensorial: recorremos à experiência sensorial e adquirimos as nossas crenças empíricas, expressas por frases como “Está a chover”, “O quadro é branco”, “Move-se o carro”, etc. Porém, se perguntarmos como ele sabe que a sua capacidade sensorial é fidedigna - que ela

coisas; uma forma essencialista, que encerra a necessidade nas coisas mesmas, não na linguagem ou na nossa estrutura epistêmica.

25 É importante definir, ao menos de forma resumida, o conceito de a priori. Uma proposição é conhecível a priori

por um agente particular se, e somente se, esse agente pode conhecer essa proposição sem recorrer à experiência empírica, ou pelo pensamento apenas, conforme diz Texeira (2006, p.1). A expressão “pode conhecer” quer destacar que há proposições que são conhecidas a posteriori, mas que poderiam ser conhecidas a priori. Por exemplo, eu posso conhecer que 1+1=2 de maneira a posteriori, se eu consultar uma calculadora, mas poderia conhecê-la pelo pensamento puro, de maneira a priori, apenas raciocinando. Portanto, independente de como uma proposição é conhecida na realidade, dizemos que ela é conhecível a priori se pudermos conhecê-la independentemente da experiência. Em contraste, uma verdade empírica, tal como “Está a chover lá fora”, não é conhecível a priori: por mais que pensemos sobre o mundo, não temos como saber, pelo pensamento apenas, que está a chover lá fora. É preciso olhar para saber. Kripke (1980) mostrou que os termos “a priori” e “necessário” não são intermutáveis, como Hume, Kant e a tradição filosófica anterior assumiram, pois a aprioricidade é um conceito de epistemologia, enquanto que a necessidade é um conceito de metafísica. Portanto, a distinção a priori/a posteriori é uma distinção epistêmica sobre modos de conhecer, enquanto a distinção necessário/contingente é uma distinção metafísica sobre modos de verdade. Kripke, de maneira inovadora, argumentou que existem verdades a priori contingentes, bem como verdades a posteriori necessárias.

26 A justificação última distingue-se da mera justificação, pois, como o nome já diz, a justificação última é aquela

reflete realmente a realidade -, talvez ele dirá que todo o nosso conhecimento encontra a sua justificação última em certas crenças primitivas, que não podem ser reduzidas a algo mais básico, e que são a priori, como o Cogito ou Deus27, caso em que o conhecimento empírico não seria o único conhecimento substancial. Quanto ao empirista, ele pode até admitir que o nosso conhecimento da lógica e da matemática é a priori: conhecemos as verdades lógicas e matemáticas apenas pelo pensamento, nomeadamente as verdades expressas pelas frases “1+1=2”, “a=a”, etc. Porém, ser perguntarmos como ele justifica o seu conhecimento das verdades lógicas e matemáticas, a resposta provavelmente será que as asserções lógicas e matemáticas devem a sua verdade unicamente ao modo como funciona o nosso pensamento e usamos a linguagem28, não em virtude de uma realidade extralinguística; portanto, não são substanciais. Por exemplo, alguns empiristas dizem que as verdades lógicas e matemáticas se reduzem ao conhecimento analítico29, e com isso concluem que as únicas verdades necessárias são as verdades lógicas e matemáticas, pois estas, em virtude da linguagem, não poderiam ser falsas. O que decorre disso, portanto, é que as verdades empíricas são as únicas verdades substanciais; mas, por outro lado, são contingentes.

Admitindo-se que há uma diferença entre o conhecimento a priori e o conhecimento a posteriori, o empirista dirá que o conhecimento a priori não é conhecimento substancial, pois é apenas linguístico. Para o empirista, o conhecimento encontra a sua justificação última em certas crenças empíricas, enquanto para o racionalista a justificação última do conhecimento é a priori. Portanto, temos as seguintes teses:

27 Nem todas as teorias racionalistas sustentam que a existência de Deus é necessária para garantir a fiabilidade da

nossa capacidade de intuição racional, visto que a existência de Deus já é um problema filosófico tão ou mais disputável. Assim, existem teorias em defesa do racionalismo formuladas com razões independentes da existência ou não de Deus, formuladas por Bonjour (1992), Nagel (2001) e Teixeira (2003); entretanto, também há modelos teístas de racionalismo, veja-se Plantinga (1993a, 1993b, 2000).

28 Esta foi a estratégia do positivismo lógico, nomeadamente com Carnap (1963), de afirmar que as verdades

lógicas e matemáticas não precisam de confirmação pela observação, nem tampouco poderiam ser refutadas pela experiência, pois são verdades analíticas. De acordo com Carnap, verdades analíticas seriam verdadeiras sob quaisquer circunstâncias, pois são verdadeiras unicamente em virtude de fatos linguísticos e, portanto, nada dizem sobre o mundo. Ademais, o estatuto de necessidade das verdades analíticas estaria resguardado unicamente em função dos fatos linguísticas.

29 Para Boghossian (1997), neste caso, a noção de analiticidade é metafísica: uma frase é uma verdade analítica se,

e somente se, é verdadeira unicamente em virtude do seu significado. Tal definição, uma vez que assume que uma frase é verdadeira unicamente em virtude de dizer aquilo que diz, torna completamente irrelevante a função do seu significado com a forma como o mundo é. Ou seja, a sua verdade independe completamente daquilo que ela exprime ser de fato o caso. Trata-se de uma visão empirista, pois torna as verdades analíticas sem conteúdo extralinguístico ou factual: as verdades analíticas são pura tautologia. - É o pressuposto empirista de que o único conhecimento substancial é o conhecimento empírico. Boghossian, entretanto, argumenta que a noção de analiticidade é apenas a contraparte semântica da noção de conhecimento a priori e, portanto, não a explica. Por exemplo, se é suficiente que a frase diga que chove ou não chove para ser verdadeira, então ela permaneceria verdadeira caso fosse possível chover e não chover ao mesmo tempo. No entanto, isto seria absurdo, pois além da frase dizer que chove ou não chove, é necessário que o mundo seja de tal maneira que chove ou não chove e, portanto, a verdade da frase depende sim de algo acerca do mundo.

Racionalismo (RAC) Existe diferença relevante entre o conhecimento a priori e o

conhecimento a posteriori. A diferença é relevante porque o conhecimento a priori não é mero conhecimento linguístico, mas conhecimento substancial da realidade, e algo sem o qual não há justificação última para o nosso conhecimento.

Empirismo (EMP) Existe diferença entre o conhecimento a priori e o conhecimento

a posteriori, mas tal diferença não é relevante, pois o conhecimento a priori é mero conhecimento linguístico, enquanto o conhecimento a posteriori é o único conhecimento substancial da realidade, e algo sem o qual não há justificação última para o nosso conhecimento.

Os empiristas, entre os quais está Hume, ao negarem que o conhecimento a priori é conhecimento substancial da realidade, estão dizendo pelo menos duas coisas: (1) A racionalidade30 é um método inadequado no processo de aquisição de conhecimento; (2) Nada substancial pode depender do conhecimento a priori. Ora, a falta de popularidade das teorias racionalistas deve-se sobretudo aos argumentos empiristas de Hume, que serão avaliados em seguida. Mas fica esclarecido que a disputa entre o empirismo e o racionalismo não é se o conhecimento do mundo é empírico e o da matemática é a priori; o problema é o processo último de justificação envolvido no conhecimento humano, bem como se é possível um conhecimento a priori substancial da realidade31.

Hume defendeu, ao contrário dos racionalistas, que não podemos justificar, pelo pensamento puro, qualquer conhecimento substancial da realidade, pois a justificação última do nosso conhecimento depende da experiência. Ou seja, quaisquer verdades fundamentais sobre a realidade são insuscetíveis de justificação última de maneira a priori. As verdades lógicas e matemáticas – chamadas por Hume de “relações de ideias” –, ao contrário das verdades empíricas, são necessárias em virtude da linguagem e, portanto, independem da realidade extralinguística; e as verdades empíricas – chamadas por Hume de “questões de fato”

30 Com o termo “racionalidade”, queremos nos referir a todo o processo racional, seja ele inferencial ou não

inferencial, de aquisição de conhecimento. A tese de que a racionalidade é um método inadequado na aquisição de conhecimento decorre da tese de que o único conhecimento genuíno é aquele que adquirimos pela observação direta do mundo. No entanto, é argumentável que as proposições observacionais mais comuns do dia-a-dia dependem de elementos a priori. Ademais, a própria tese de que o único conhecimento genuíno é aquele que adquirimos empiricamente é uma tese impossível de ser testada empiricamente, pois se trata de conhecimento a priori, conforme argumenta Katz (1998).

31 Nem todas as propostas de justificação última do conhecimento são estritamente racionalistas ou empiristas;

existem opções que admitem conhecimento tanto a priori quanto a posteriori substancial da realidade. É o caso de Bertrand Russell, por exemplo. Na sua obra clássica “Os Problemas da Filosofia”, Russell defendeu que existe conhecimento empírico substancial da realidade, e que esse é fundamento para o nosso conhecimento, ou seja, que há conhecimento a posteriori que é fundamento de todo o conhecimento. Contudo, também defendeu que existe conhecimento a priori substancial da realidade, e que este é fundamento de todo o conhecimento. Assim, nem o conhecimento a posteriori nem o a priori é mais fundamental do que o outro.

–, dizem respeito à realidade extralinguística (EHU, 4, §1) e, portanto, são contingentes, pois referem-se unicamente ao modo como as coisas são, não ao modo como as coisas deveriam ser. A ideia de que o conhecimento empírico expressa apenas verdades contingentes choca- se com as pretensões da filosofia tradicional de ser capaz de descobrir os princípios substanciais da realidade de maneira a priori, por análise filosófica. O argumento de Hume em favor da contingencialidade das verdades empíricas é o seguinte: se a negação de p não implica uma contradição lógica (estrita ou ampla), então p é realmente possível. A negação de uma verdade lógica implica uma contradição lógica, então a negação de uma verdade lógica não é realmente possível. Mas a negação de uma verdade empírica não implica uma contradição lógica, então a negação de uma verdade empírica é realmente possível – este é o chamado Argumento da Negação (AN), que passaremos a analisar agora.