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Hume e As Leis da Natureza: A Tradição Regularista

3 OS ARGUMENTOS DE DAVID HUME CONTRA OS MILAGRES

3.2 O Argumento Metafísico Contra os Milagres (AMCM)

3.2.1 Hume e As Leis da Natureza: A Tradição Regularista

Apesar de Hume fazer menção às leis da natureza, ele não diz o que elas são. No entanto, podemos extrair da sua metafísica e epistemologia uma caracterização do que elas são na visão de Hume. Assim, com base nas conclusões alcançadas no ponto 2 desta dissertação, avançaremos para a caracterização das leis da natureza segundo Hume.

Antes de tudo, lembremo-nos que em 2.2.1 pontuamos que a teoria das ideias de Hume começa por pressupor que as nossas crenças perceptuais (ou simplesmente percepções) podem ser sobre aquilo que é putativamente percebido – “impressões” –, bem como sobre a representação mental que fazemos do que é percebido – “ideias” –, e que as impressões e ideias se diferenciam unicamente pelo grau de força ou vivacidade com que se nos apresentam (EHU, 2, §3). Impressões e ideias são caracterizadas consoante a sua derivação da sensação ou da reflexão (THN, 1, 1, 2, §1), pelo que podemos obter impressões de sensação e de reflexão, bem como ideias de sensação e de reflexão. Hume acrescenta que as percepções mentais se dividem em simples e complexas (THN, 1, 1, 1, §2), consoante a admissão ou não de divisibilidade, visto que as percepções mentais simples (sejam impressões ou ideias) não admitem nenhuma decomposição em unidades cognitivas mais básicas, enquanto que as complexas admitem. No caso de ideias complexas, é possível que tenhamos ideias de coisas que jamais tivemos

impressão prévia, mas apenas na medida em que se devem ao poder da nossa imaginação (EHU, 2, §5; THN, 1, 1, 3, §3).

Em se tratando de ideias simples, uma vez que elas são sempre cópias e representam exatamente as impressões correspondentes, é sempre requerida uma impressão simples prévia, pelo que Hume formula o seu Princípio da Cópia (PC) (THN, 1, 1, 1, §7):

Princípio da Cópia (PC): Todas as nossas ideias simples, em sua primeira aparição,

derivam de impressões simples, que lhes correspondem e que elas representam com exatidão.

Para Hume, bastaria perguntar-se “de que impressão deriva esta suposta ideia? E se for impossível atribuir-lhe qualquer impressão, isso servirá para confirmar nossa suspeita” (EHU, 2, §9): tal ideia é apenas produto da imaginação. Portanto, se não houver qualquer impressão simples na base ou no fundamento de uma ideia filosófica, esta deve ser rejeitada. Aplicando o (PC) à ideia de conexão necessária, que é da ordem das questões de fato, Hume chega à conclusão de que não há qualquer impressão simples na sua base (EHU, 7, §30), de modo que a ideia de conexão necessária não passa de uma mera criação da imaginação, provocada pela operação do hábito, em decorrência de uma sucessão de experiências repetidas e semelhantes. Com base no (PC), Hume, ao contrário dos racionalistas, defende que não podemos justificar, pelo pensamento puro, qualquer conhecimento substancial da realidade, uma vez que a justificação última do nosso conhecimento depende da experiência (impressões). Hume também assume que as verdades lógicas (estritas ou conceituais) e matemáticas, ao contrário das verdades empíricas, são independentes da realidade extralinguística (são “relações de ideias”), e as verdades empíricas, ao contrário das verdades a priori, dizem respeito à realidade extralinguística (são “questões de fato”) (EHU, 4, §1). Uma vez que as “questões de fato” se referem unicamente ao modo como as coisas são (e não se referem ao modo como as coisas deveriam ser), segue-se que elas expressam apenas verdades contingentes: dizem apenas como as coisas são, mas não dizem por que as coisas são como são, e não de outra forma. Ademais, se podemos conceber um efeito sem causa, bem como uma causa sem efeito, segue-se, para Hume, que causa e o efeito podem existir sem o outro na realidade; e como qualquer verdade empírica pode ser negada sem que se incorra em contradição, o contrário de qualquer verdade empírica é possível, pelo que não há necessidade nas coisas: tudo na empiria é contingente. Hume, portanto, é caudatário do contingencialismo.

Conforme vimos em 2.2.3, Hume argumenta em favor da contingencialidade das verdades empíricas com base no seu Argumento da Negação (AN), de acordo com o qual dada

uma proposição qualquer p, verdadeira, simples e com conteúdo empírico, se é logicamente possível ¬p, então ¬p é realmente possível. Como não conseguimos conceber o contrário de verdades lógicas e matemáticas sem incorrer em contradição, se segue que elas não podem ser falsas; mas como conseguimos conceber o contrário de verdades empíricas sem incorrer em contradição, se segue que elas podem ser falsas. Uma das sustentações para o (AN) é o Argumento da Inconceptibilidade (AI), que defende que se não podemos conceber que p, então se segue que p não é possível, e se podemos conceber que p, então se segue que p é possível (THN, 1, 2, 2, §8; 1, 4,5, §5). O (AN) pressupõe que se algo é logicamente possível, então é realmente possível – é a chamada ideia de que possibilidade lógica é absoluta, que baseia-se no pressuposto de que a conceptibilidade é o guia da possibilidade, e a inconceptibilidade é o guia da impossibilidade, conforme o (AI). Uma vez que a falsidade lógica e matemática são inconcebíveis, segue-se que a verdade a priori é necessária; e como a falsidade empírica é concebível, segue-se que a verdade empírica é contingente.

A metafísica de Hume mostra-se, portanto, anti-essencialista (EHU, 4, §2), na medida em que pressupõe que não há qualquer impossibilidade para além da impossibilidade lógica (conceitual ou estrita) e matemática, donde se segue que frases como “Calor é o movimento de moléculas”, “O ponto de ebulição da água no nível do mar é de 100ºC”. “A água é H2O” ou

“Nenhum objeto viaja mais rápido do que a velocidade da luz” expressam simples verdades contingentes. Na verdade, dado o anti-essencialismo de Hume, qualquer fato empírico é realmente possível, desde que não acarrete falsidade a priori.

No entanto, nós ainda confiamos em muitas crenças empíricas, por exemplo, que o Sol nascerá amanhã. A resposta de Hume para isso é que, em questões de fato, as operação mentais que realizamos para ir além daquilo que é dado imediatamente aos sentidos e à memória não se esgotam na relação de semelhança, nem a relação de contiguidade, mas em uma outra relação, a relação de causa e efeito (EHU, 4, §4). A nossa crença na relação de causalidade entre objetos explica a nossa expectativa de que amanhã o fogo continuará queimando e a água dessedentando, e não o contrário, pois um é reconhecido como sendo efeito do outro. Surge, portanto, a seguinte questão: como explicar a relação de causalidade? A doutrina de Hume postula que ela é composta de outras três relações: contiguidade, prioridade da causa sobre o efeito e conexão necessária (THN, 1, 3, 2, §11/ EHU, 7, § 29). A única relação problemática para Hume é a terceira, visto que a sua verdade exige algo para além da experiência empírica imediata. Hume propõe uma teoria redutivista da causalidade, que pretende desvencilhar-se do caráter nomológico da relação entre causa e efeito. Vejamos a definição que apresentamos de conexão necessária:

(c) Conexão necessária: É a condição de vínculo nomológico, pelo qual temos R: (x)

[P(x) → Q(y)], em que o caráter nômico de R governa a relação entre os relata P(x) e Q(y), tal que as regularidades observadas não são meros acidentes. Uma vez que R governa a relação entre os relata, R estabelece uma relação de necessitação, tal que um evento ou objeto (x), em virtude de instanciar uma propriedade P, produz (ou traz a existência) um novo evento ou objeto (y), instanciando uma propriedade Q.

A conexão necessária é uma relação de necessitação, e tal relação governa ou explica a produção do efeito pela causa, de modo que podemos esperar que quando a causa ocorre o efeito tem de se seguir; ou, dizendo de outro modo, quando temos um efeito, é porque a causa atuou produzindo o efeito. Surge outra questão, a saber: como é possível conhecermos tais conexões necessárias entre os eventos? – Pergunta-se Hume em (EHU, 4, §5). Hume repugna qualquer possibilidade de estabelecer a conexão necessária de modo a priori (EHU, 4, §11), bem como também repugna qualquer justificação a posteriori da mesma. A solução que restou a Hume foi a Teoria do Hábito (TH), na qual teremos todos os elementos para identificarmos a noção de leis da natureza para ele.

De acordo com (TH), há em nós uma espécie de disposição inata (“hábito”), necessária à sobrevivência, que é sensível à repetição, e que cria em nós certas expectativas indutivas após a experiência repetida com objetos ou eventos no mundo. A ideia de conexão necessária, portanto, é em si mesma vazia, na medida em que é um produto da nossa imaginação, que atribui aos objetos um vínculo nomológico que simplesmente está ausente deles (EHU, 7, § 28)87. Portanto, o (TH) implica o anti-realismo causal, de acordo com o qual a conexão

necessária (ou vínculo nomológico) entre os objetos ou eventos da natureza não é uma propriedade objetiva deles.

Com base em tudo isso, podemos concluir que Hume defende uma teoria regularista das leis da natureza, que é, por consequência, anti-realista e contingencialista. De acordo com Cid (2011, p.8-9), o realismo das leis da natureza defende que leis existem independente da nossa mente: leis são características da realidade extramental. Em contraste, o anti-realismo defende que leis não existem: a existência de leis é dependente da nossa mente. Porém, mais precisamente, o anti-realismo defende que leis necessitaristas não existem, visto que, para o anti-realista, as únicas leis concebíveis são aquelas que identificam-se com as regularidades.

Uma vez que Hume entende que as conexões necessárias não existem como características do mundo, pois são meras projeções mentais do hábito, segue-se ele é

87 Insista-se mais uma vez que, com base no (AI) e no (AN) é possível ultrapassar o mero ceticismo com relação à

contingencialista. Mas se as conexões necessárias não existem, então leis necessitaristas também não existem, pelo que se segue que Hume é anti-realista. Por fim, dado que Hume entende que as leis da natureza se reduzem às regularidades observadas, então se segue que ele é regularista.

As regularidades humeanas, de acordo com Cid (2011, p. 42), expressam leis com a seguinte forma lógica: ∀x (Fx→Gx). Por exemplo: “se algo é sal, então se dissolve em água”. Ou seja, as leis da natureza, para Hume, implicam apenas conexões regulares entre propriedades expressas por proposições empíricas, universais, intemporalmente verdadeiras, formuladas sem nomes próprios, cuja contraparte formal esteja na forma condicional: ∀x (Fx→Gx).

A visão anti-realista de Hume acerca das leis da natureza implica que aquilo que nós chamamos de leis tem apenas um caráter descritivo, pois são incapazes de dizer por que as coisas são como são, e não de outra forma. Ou seja, a lei descreve que o sal se dissolve na água, mas não diz por que as coisas devem ser assim, e não o contrário. Com efeito, por negar a existência de conexões necessárias, nega-se também às leis o poder de explicar as regularidades observadas. E se as leis não explicam as regularidades factuais, então elas não podem tornar impossível nada que não seja logica ou matematicamente impossível.

Reduzindo as leis da natureza às regularidades, temos uma consequência: qualquer evento empírico (inclusive supostos milagres), se ocorrer, passa a ser automaticamente parte da verdadeira descrição do mundo, pelo que as leis científicas que não tiverem sucesso em prever um evento muito inesperado, deverão ser modificadas para adequarem-se às novas regularidades. No entanto, dado o regularismo, não há nada como uma lei da natureza violada, senão que algo que pensávamos erradamente ser uma lei da natureza, mas que de fato não o era. E aqui parece que temos um grande problema, a saber: dada a noção de Hume acerca de leis da natureza, parece que não faz sentido um argumento metafísico contra a possibilidade de milagres. Como explicar o aparente inconveniente?

De acordo com o (AMCM) que nós propomos, Hume, na verdade, está argumento contra a possibilidade de milagres, e a natureza da impossibilidade em causa é a metafísica, ou seja, é como se existissem razões para além da lógica e da matemática em favor da impossibilidade de milagres. E mais, é como se as verdadeiras leis da natureza não fossem apenas fisicamente necessárias (verdades físicas no nosso mundo), mas metafisicamente necessárias (verdades em todos os mundos metafisicamente possíveis). Assim, para estabelecermos o nosso ponto, o próximo passo será argumentar que Hume, contrariamente à sua metafísica regularista das leis pressupôs no ensaio “Dos Milagres” uma forte noção de leis da natureza.